30.4.07

007 contra o fetichismo da mercadoria


(Comentário sobre o filme “007 – Um outro dia para morrer”)



Nome original: Die another day
Produção: Estados Unidos, Inglaterra (UK)
Ano: 2002
Idiomas: Inglês, Coreano, Cantonês, Espanhol, Alemão, Islandês
Diretor: Lee Tamahori
Roteiro: Ian Fleming, Neal Purvis
Elenco: Pierce Brosnan,Halle Berry, Toby Stephens, Rosamund Pike, Rick Yune, Judi Dench, John Cleese, Michael Madsen, Will Yun Lee, Kenneth Tsang
Gênero: ação, aventura, thriller
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

O novo filme de 007 é um dos melhores da série em muitos anos, se não o melhor. E isso é significativo, pois trata-se de um exemplar comemorativo, produzido para celebrar o aniversário de 40 anos da primeira aparição de James Bond no cinema. Ser o melhor de uma série de 20 não é tarefa fácil. Mas este novo Bond foi feito para ser o melhor. As vezes, quando os executivos de Hollywood decidem fazer algo bom, eles conseguem.

O filme foi feito para ser uma homenagem ao conceito de 007. Lá estão todos os ítens que fazem a delícia dos fãs da série. Os mais ardorosos vão delirar com a possibilidade de localizar referências obscuras aos filmes anteriores. Os cinéfilos comuns vão encontrar um exemplar de fino acabamento da arte tipicamente hollywoodiana de construir um filme à base de clichês.

Lá estão as bond-girls, os vilões de história em quadrinhos e seus chefes megalomaníacos, os agentes duplos, os gadgets, os improvisos à la McGyver (por meio dos quais descobrimos que McGyver era uma espécie de 007 vegetariano), a fleuma britânica, as locações exóticas, as bases secretas de arquitetura mirabolante, a ameaça à paz mundial, os esportes radicais da moda, os ítens de luxo, etc., tudo isso numa fórmula muito bem equilibrada, que funciona a contento nas mãos de um elenco entusiasmado com a brincadeira. Tudo funciona tão bem que parece ter deixado Pierce Brosnan, o melhor intérprete de Bond desde Sean Connery, à vontade no papel, a ponto de ter entregue sua melhor interpretação do personagem, a mais tranqüila.

Antes que comecem a achar que o escriba é um agente dos estúdios mandado com a missão de elogiar o filme, vamos começar: 007 é o protótipo do herói imperialista, instrumento ideológico da propaganda anticomunista da Guerra-Fria, machista, racista, elitista, hedonista, consumista. Tudo isso continua sendo válido, especialmente numa época em que Bush está à caça do próximo Império do Mal (ele está na verdade à caça de petróleo, mas prossigamos), em que satanizar a Coréia do Norte é politicamente conveniente para essa caçada, em que qualquer prurido de independência dos deserdados da periferia é tratado como ameaça terrorista (Chavez que se cuide), e que a defesa de valores politicamente corretos parece ter se tornado a única plataforma legítima para a esquerda.

Mas, como em 007 as aparências geralmente enganam, é preciso se elevar acima desses clichês. Qual filme hollywoodiano não está embebido de todos esses clichês e dos correspondentes componentes ideológicos? Não apenas 007, mas todos o estão. É preciso deixar de ser ingênuo na crítica. Se os filmes são feitos por autores estadunidenses e para um público estadunidense, o que se pode esperar além de uma defesa da ideologia estadunidense? É preciso saber continuar a ver seus filmes, mesmo digerindo esse ingrediente. Do mesmo modo que é preciso continuar comendo peixes. Basta ter o cuidado de tirar os espinhos. Do contrário, que outros filmes se poderia ver?

Se é preciso saber fazer um filme com o uso abundante de clichês, sem deixar que a mistura desande, é preciso por outro lado fazer uma crítica isenta de clichês, para estar ao nível do objeto. 007 é puro entretenimento, mais do que propaganda ideológica. Quem lhe dá o status de perigo ideológico e se contenta com isso é incapaz de penetrar no seu conteúdo de mera diversão. 007, repetimos, é puro entretenimento. Pura fantasia literária.

Onde mais, senão no entretenimento, se poderia encontrar um inglês sedutor? Quem pode acreditar numa tal fantasia? Nem os próprios ingleses, pois o intérprete clássico, que criou a persona de Bond, foi o escocês Sean Connery. James Bond é uma fantasia sexual de um escritor inglês, absolutamente inepto para fazer o que escreve no mundo real. 007 é puro trash, puro kitsch, puro fake. Um recurso encontrado pelo imaginário coletivo britânico para recuperar sua auto-estima esfacelada pelo desmantelamento de seu Império colonial. O Reino Unido não governa mais o mundo, como no século XIX. Assim, resta aos ingleses o lamentável papel de mascotes dos EUA (Blair que o diga.).

Mas para continuar por cima, os ingleses inventam um agente secreto que repetidamente salva o mundo, ainda por cima vivendo como um insolente Don Juan, tendo sempre do bom e do melhor. Os melhores carros, melhores armas, melhores roupas, melhores hotéis, melhores bebidas e é claro, melhores mulheres. Não há quem resista ao charme de Bond... James Bond. Mas isso é claro, é para inglês ver. Acredite se quiser.

Claro que para estar à altura do tempo e funcionar 40 anos depois, mesmo os clichês tem que ser atualizados. As bond-girls de hoje, por exemplo, são independentes (fala-se na possibilidade de um filme-solo da personagem Jinx). Há o cuidado de preservar certas sutilezas diplomáticas. A Coréia do Norte não é o novo Império do Mal. No filme acontece um golpe de estado da linha-dura do regime, que embarca na aventura de atacar o ocidente, recurso dramático sempre à mão quando não se quer sofre a acusação de satanizar regimes impopulares (e suprimido na legendagem da versão brasileira). O que importa é mostrar que o problema são sempre alguns loucos, ambiciosos, corrompidos, pervertidos, que querem conquistar o mundo, ou destruí-lo, tanto faz. E esse louco, o coronel Moon, foi educado e corrompido no Ocidente. Isso também é um sinal dos tempos.

No fim das contas, aí está o segredo do apolitismo de 007. O agente secreto não é a favor do capitalismo nem do comunismo. Em ambos os sistemas existem tanto os corruptos e malvados que querem provocar a destruição do mundo inteiro quanto os idealistas que querem evitar o holocausto nuclear (como o velho general, pai do coronel). O filme não se preocupa em optar por um dos sistemas. Ian Fleming, criador do personagem literário, não faz apologia de nenhum deles. 007 colabora à vontade com agentes russos, chineses, cubanos, etc. Entre si, a comunidade de espiões se entende muito bem. Dir-se-ia melhor, a comunidade dos Bon-vivants. A única competição importante para Ian Fleming é provar que Bond é o melhor, o mais refinado, o transgressor elegante. Um inglês... Acredite se quiser, eu repito.

Para não ser puramente ingênuo e fake em sua visão política, o conceito do personagem é temperado com um cinismo realpolitik. O mundo é assim mesmo. Capitalistas ou comunistas, não importa, desde que os verdadeiros e aristocráticos gentleman continuem dando as cartas. E esse divertido cinismo se torna mais um elemento cômico da fórmula fake de James Bond.

Mas tudo isso ainda não é o verdadeiro segredo do sucesso da fórmula. E aqui vai a surpresa mirabolante do filme, digo, da crítica, onde a psicanálise de almanaque encontra a sociologia de botequim: 007 faz sucesso porque personifica o fetichismo da mercadoria. Ele faz o que nenhum homem faz no regime capitalista. Ele usa as mercadorias. Como se sabe, mercadorias não foram feitas para serem usadas, mas para serem compradas. Nós, pobres mortais sedentários e consumistas, não passamos de rufiões da mercadoria. Não a consumimos de fato. Guardamos em prateleiras em casa, como objetos de coleção. Esse é o segredo da nossa permanente insatisfação sedentária e da nossa impotência sexual. James Bond consome de fato. E consumir, no sistema capitalista, significa destruir. E destruir é a fonte do tesão insuperável do agente bom de cama.

James Bond destrói as mercadorias. Esse é o seu segredo de espião. Tanto assim que os estadunidenses, povo consumista e sedentário por excelência, realizaram em “True Lies” a melhor aproximação da fórmula britânica de James Bond. Em “True Lies” a profissão de espião é apresentada como a suprema fantasia de liberação sexual de um casal de pais de família entediados. Os estadunidenses conseguem ser ainda mais entediantes que os ingleses...

Mas como eu ia dizendo, James Bond destrói as mercadorias. A cada episódio ele é apresentado a uma coleção nova de carros, relógios, apetrechos, gadgets que serão inevitavelmente destruídos ao longo do filme. O consumidor-espião está pouco ligando para seu carro. Ele o descarta sem escrúpulos tão logo uma emergência em sua missão o exige. Ele não precisa conservar seus bens. James Bond é uma espécie de Riquinho crescido.

Ele é um aristocrata, afinal. A estratégia sexual do aristocrata, no sentido biológico, consiste em demonstrar às fêmeas que pode prover ao casal tantos bens quantos forem necessários. Ele é indiferente aos bens. É isso que lhe dá segurança para seduzir. Ao dar cumprimento ao destino da mercadoria, ou seja, destruí-la, com indiferença aristocrática, 007 nos faz sentir o triunfo do consumidor finalmente satisfeito com aquilo que comprou, coisa que nunca nos acontece.

Na sua vida cotidiana, o consumidor sedentário experimenta o contrário disso. Ele é obrigado a manter seus bens, a conservar sua boa aparência, seu bom estado, para com isso construir a imagem do seu status social de pessoa bem sucedida. Essa é a estratégia sexual do subalterno. Ao assistir 007, vivenciamos por 2 horas a fantasia do espião, que é na verdade a fantasia sexual do aristocrata, que é na verdade a fantasia do consumidor com limite de crédito infinito, que é na verdade a miséria da subjetividade capitalista.

Daniel M. Delfino

24/01/2003

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