30.4.07

Eu também quero votar para Presidente dos Estados Unidos!




A recente eleição de Arnold Schwarzenegger para o governo do Estado da Califórnia é uma demonstração do grau de despolitização do mundo nos anos 1990. Uma massa pequeno-burguesa de profissionais da “Nova Economia”, insulados em seus condomínios fechados, acostumada a ver o mundo através da TV a cabo, acaba por ver no Exterminador o candidato ideal para limpar o estado da escória dos negros, chicanos e cucarachos em geral. Schwarzenegger torna-se o “Governator”. O problema é que o eleitor de Arnold não votou no ator, que como qualquer pessoa tem o direito de exercer uma opinião política. Seja essa opinião qual for. O eleitor de Arnold votou no personagem e nisso há uma grande diferença.

O personagem da ficção deixa de ser uma fantasia da imaginação e passa a ser veículo de uma ideologia. A imagem ficcional domina a realidade política. Se a ficção se torna política, a política se tornará também ficcional. Ou já se tornou. Como disse Michael Moore ao receber o Oscar, o atual governo dos E.U.A. ganhou uma eleição fictícia para promover uma guerra por motivos fictícios. A eleição de Arnold vem apenas confirmar a estetização da política americana.

A estetização da política, denunciada por Walter Benjamin, consiste na transformação da democracia em espetáculo. No espetáculo a razão cede lugar às sensações. O candidato a vencer as eleições não é o que apresenta a plataforma mais razoável, mas o que constrói a imagem mais palatável, que mais agrada a sensibilidade popular. Assessores de imprensa estão sempre a postos para dizer o que o público quer ouvir: se quer agressividade, se quer humildade. Campanhas são articuladas para ofertar a dose certa de tempero para satisfazer a necessidade emocional do povo. Algo do tipo “Lulinha paz e amor”.

A escola de política espetacularizada foi aperfeiçoada pelos nazistas na década de 1930. Os filmes promocionais de Leni Riefenstahl mostravam as grandes manifestações de massa dos nazistas como momentos de comunhão social e unidade emocional, usando a estética para criar uma identidade de sentimentos capaz de justificar a destruição dos diferentes e indesejáveis. Estética, emoção e higiene eram os motes básicos dos nazistas.

Goebbels, o ideólogo da propaganda nazista, buscou na publicidade estadunidense os artifícios para criar a atmosfera de onipresença das idéias e formas nazistas. A publicidade criava a compulsão pela participação no consumo. O conteúdo do consumo da publicidade nazista era a figura do “führer”. O líder supremo em campanha salvacionista pela defesa da raça. A solução final para as veleidades imperialistas alemãs. A sociedade totalitária, seja ela nazista, stalinista ou capitalista, exige o espetáculo onipresente da propaganda. Exige o reforço permanente de sua mentira, para que ela se torne realidade. Seja essa mentira o mito da raça pura ariana ou o mito do “destino manifesto” dos povos anglo-saxões de civilizar o mundo.

Na “democracia” estadunidense deste século XXI, a imagem de inocência e heroísmo que o eleitor tem de si ganha um decalque caricatural na figura de seu presidente auto-proclamado defensor do mundo livre. E de brinde vem a figura do governador-ciborg sem cérebro. Schwarzenegger governador é o complemento ideal da era Bush e o sucessor perfeito para o presidente.

O único detalhe é o dispositivo constitucional que proíbe estrangeiros de concorrer à presidência dos Estados Unidos. Um detalhe que, fosse a conjuntura de forças um pouco mais favorável, os republicanos removeriam da Constituição com uma presteza nunca vista, agora que encontraram seu candidato ideal. A esse respeito, a própria Hollywood, em “Demolidor”, realizou os sonhos dos republicanos, quando Stallone se deparou com um presidente Schwarzenegger num futuro imaginário.

Mas Hollywood o fez, é claro, em tom de galhofa. Sem dimensão do ridículo, homens capazes de elevar Bush à presidente pensarão também em concretizar a piada e elevar Schwarzenegger. A mentira e o ridículo tem que ser levados às últimas conseqüências. Nesse terreno, recuar, voltar atrás, admitir um erro é fatal. Por isso é preciso insistir na mentira, como faz Toni Blair na Inglaterra, a respeito da morte do cientista David Kelly. A desfaçatez consumada pode ser vendida como firmeza, porque sempre haverá incautos prontos a comprar essa tese.

“Nasce um idiota a cada minuto”, diz o ditado dos estelionatários e trambiqueiros. Sempre haverá idiotas prontos a acreditar nas palavras do líder, simplesmente porque ele é o líder. Desconfiar do líder, para o cidadão estadunidense médio, seria a ruína de seu pequeno mundinho de contos de fadas, sua “América” (sic) ideal. A mentira escandalosa dos pretextos para invasão do Iraque é apresentada com uma desfaçatez inaudita, como decorrência da absurda guerra contra o terrorismo. Sustentar mentira a todo custo torna-se uma questão crucial para a manutenção do atual grupo no poder.

O grau de entorpecimento da opinião pública estadunidense pode ser demonstrado com uma comparação simples. No seu segundo mandato, Bill Clinton quase foi destituído do cargo por uma acusação de infidelidade sexual. Para o público estadunidense, tornou-se assunto de extrema importância saber se Mônica Lewinski havia feito ou não “blow job” no presidente. A integridade do político na sua vida pessoal é mais importante do que qualquer coisa que ele faça na vida pública.

Isso porque a autoridade de seu poder político se funda mais na sua autoridade moral pessoal, como pessoa exemplar, do que na escolha soberana do povo que o elegeu. Porque esse mesmo povo concebe seu país, por sua vez, como um exemplo de moralidade a ser seguido pelas demais nações. Essa ideologia messiânica da “cidade na colina” puritana é a mistificação com a qual se recobre a pretensão estadunidense de estender o seu capitalismo ao restante do mundo.

Que o presidente invada um país e destitua seu governo (por mais tirânico e corrupto que seja) com alegações falsas, não é importante. George Bush não terá um obcecado Kenneth Starr, o promotor “independente” que atazanou a vida de Clinton, investigando os podres de seu governo. Se o presidente fez alguma coisa errada, ele o fez lá fora, longe das vistas dos espectadores. E, mais importante, o fez com o zíper da calça fechado. Diante desse paradigma de moralidade, todo o tipo de mentira é aceitável.

Invadir um país com pretextos falsos é permitido. Farrear com as estagiárias, não. Um espetáculo de incoerência que escancara a falsidade da ideologia estadunidense. Não se trata de levar ao mundo subdesenvolvido a “democracia” ou as instituições superiores, mas de submetê-las ao capital estadunidense. Submeter suas riquezas naturais, como o petróleo e a Amazônia, às transnacionais.

Fantasias e mistificações à parte, as transnacionais não brincam em serviço. Quando se trata de impor seus interesses, fabricam um candidato, fraudam uma eleição e impõem um presidente fantoche ao país mais poderoso do mundo. O protecionismo e o unilateralismo campeiam abertamente, sob o pretexto de defender os interesses estadunidenses. Mas os E.U.A., como qualquer país capitalista, está dividido em classes sociais. E há uma classe operária preterida pelo corte de impostos dos ricos, pelo corte de gastos sociais, empobrecida com a recessão, escaldada pelo desemprego, revoltada pela vaporização de suas aposentadorias em fundos de pensão temerários.

O governo Bush é portanto tão ruim para o povo de seu país como para o resto do mundo. E mesmo para o grande capital estadunidense, a imagem de um país imperialista agressivo deixa de ser bom para os negócios, pois passa a suscitar antipatia de possíveis consumidores no resto do mundo. O estilo Exterminador de Bush pode ser bom apenas para o complexo industrial-militar. O qual terá que se ver com outros setores do capital e do povo estadunidense. Depois dessa aventura, é possível que tenha que se encolher com o rabo entre as pernas.

Ou, como tudo é possível, não é improvável que tente um novo golpe. A corrida paras eleições presidenciais de 2004 já começou. Dada a estrutura “sui generis” do sistema eleitoral estadunidense, sem horário político gratuito para os partidos na TV, cada partido depende de doações para comprar espaços de publicidade e colocar sua campanha no ar. Por meio de doações, setores econômicos compram o candidato que quiserem e tornam seu governo refém dos interesses particularistas que representam. Como o setor petroleiro-armamentista comprou o candidato Bush, financiou sua campanha e pautou seu governo.

Prometem repetir a dose no ano que vem. Foi anunciado um orçamento de campanha de cerca de U$ 250 milhões, cinco vezes maior do que qualquer candidato democrata jamais sonhou em arrecadar. Bush está a procura de sócios para legitimar sua tentativa de continuar a farra com o orçamento público do país. Não faltarão aventureiros inescrupulosos dispostos a embarcar nessa.

O sistema político estadunidense é expressamente mercenário. O político se elege para conceder verbas e contratos públicos para as empresas que financiaram sua campanha. Às vezes, ele nem precisa esperar pelas eleições regulares. No caso da Califórnia, um “recall” foi convocado no meio do mandato do governador do partido democrata. Na cédula do recall, o eleitor deveria escolher entre a destituição ou não do atual governador.

Mas na mesma cédula, aqueles que optassem pelo “sim” deveriam apontar já o seu candidato para substituir o governador. Na mesma cédula! Ao invés de se fazer duas votações separadas, misturam-se as duas. O governador assim eleito representa, no máximo, teoricamente, apenas a metade dos eleitores mais um, pois há uma outra quase metade hipotética que votou “não” à destituição. E dentre os que votaram sim, nem todos os eleitores votaram em Schwarzenegger, pois havia outros 134 candidatos. 134! E sem segundo turno! Qual é a representatividade de um governador assim eleito? Qual a porcentagem dos votos que obteve em relação ao número total de eleitores que compareceram à votação (o voto não é obrigatório) e ao total da população do Estado?

A representatividade do candidato eleito pouco importa. Quando se trata de colocar um garoto-propaganda do porte de Schwarzenegger no palanque de Bush em 2004, qualquer manobra é válida. A campanha para o recall rapidamente encontra financiadores e o movimento pela destituição do governador ganha força e lobby na mídia sempre interessada em factóides. O público vibra com o bizarro. O circo toma conta da política. Isso é só uma amostra do que nos aguarda na campanha de 2004. Um espetáculo que com certeza valerá o ingresso. Ao contrário da maioria dos filmes de Schwarzenegger, especialmente os recentes.
Depois do que aconteceu na campanha de Bush em 2000, o mundo inteiro está convidado a assistir de camarote. Todos esperam ansiosos pelo anti-Bush. O homem capaz de derrotar a besta. Antes, o processo de escolha dos candidatos presidenciais dos E.U.A. era um fenômeno confuso e obscuro para o restante do mundo. De repente, surgiam lá os engravatados brancos de meia idade no posto de presidente. Era tudo que se sabia, tudo que nossa curiosidade alcançava.

Acontece que com a globalização, o posto de presidente dos E.U.A. passou a ser ainda mais importante. Isso porque a política de todos os países passou a ser determinada pelo chamado “Consenso de Washington”. Um conjunto de idéias gestadas na capital estadunidense, para atender interesses estadunidenses. São esses interesses que realmente contam. Se alguém quer realmente mudar alguma coisa no mundo, precisa mudar, em primeiro lugar, lá onde as decisões são tomadas verdadeiramente.

Porque aqui, acabamos de aprender amargamente, eleger um presidente não muda nada. Esse presidente continua sujeito a obedecer as políticas ditadas de fora por FMI, BID, OMC, ALCA, etc.. Pode-se mexer em qualquer coisa, menos no sacrossanto superávit primário exigido pelo “consenso”. A dívida está em primeiro lugar. Logo, eu repito, se os países pobres do mundo inteiro querem mudar alguma coisa, precisa mudar lá em cima, onde essas decisões são tomadas.

Se os E.U.A. falam em nome do mundo, oferecem-se como modelo para o resto do mundo e querem obediência do resto do mundo, eles devem conseguir o respeito do resto do mundo. Os bilhões de miseráveis dos países pobres não tem o mesmo dinheiro dos lobistas das indústrias petrolífera-armamentista. Mas os seus interesses são por isso menos legítimos? Os seus direitos são menores? É justo que um punhado de executivos rapinantes determine os destinos da política mundial? Porque não dar direito de voto a todos os miseráveis do mundo na sucessão de Bush?

Eleger o presidente num país periférico não serve para nada. Eu quero mesmo é eleger o presidente dos E.U.A.!

Daniel M. Delfino

13/10/2003

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