30.4.07

Falha na Matrix


(Comentário sobre o filme “Matrix Revolutions”)



Nome original: The matrix revolutions
Produção: Estados Unidos
Ano: 2003
Idiomas: Inglês, Francês
Diretor: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Roteiro: Andy Wachowski, Larry Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburn, Carrie-Ann Moss, Hugo Weaving, Helmut Bakaitis, Monica Belluci, Nona Gaye
Gênero: ação, thriller, ficção científica
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

“Matrix Revolutions” não entrega o que o seu título promete. Não há uma verdadeira revolução no filme. Há uma espécie de final “tucano”. Um final em cima do muro. A alegoria do filme caminha tão próxima à realidade que propor uma solução para o problema da humanidade, no cenário do filme, equivaleria a propor também uma solução para o mundo real. E isso os irmãos Wachowski não foram capazes de fazer.

O filme “Matrix Revolutions” traz a conclusão da saga iniciada em 1999 com o primeiro “Matrix” e continuada este ano com “Matrix Reloaded”. Segundo a máquina de marketing por trás dos filmes, os enigmáticos irmãos conceberam a história originalmente como uma trilogia. Agora que a história inteira está contada, considero essa hipótese difícil de ser aceita, por dois motivos.

Primeiro, a história poderia muito bem ter terminado no primeiro “Matrix”. Ali o recado estava dado. A realidade estava desmascarada como um mundo de aparências. O que aconteceria dali em diante estaria nas mãos do espectador. Cada um poderia perceber as armadilhas e enigmas da Matrix no seu próprio mundo. Se a história acabasse ali, sem as continuações, teríamos um final sombrio e ao mesmo tempo instigante, desafiador. Um filme tecnicamente inovador, visualmente sedutor e intelectualmente estimulante. Isso já é façanha suficiente para colocar seus realizadores na história. Mostrar uma vitória dos humanos sobre a Matrix, por outro lado, torna-se supérfluo do ponto de vista do conceito.

E segundo, o final oferecido em “Revolutions” não soluciona a história. Não há uma vitória definitiva de nenhum dos lados. Se os irmãos tivessem mesmo concebido a história como um todo e dividido-a em três para ser filmada, o final teria sido mais bem amarrado. Haveria uma solução conclusiva, não o final aberto que nos foi apresentado. E esse tipo de final abre a possibilidade de especulações. Há quem imagine que ainda haverá outro filme, mostrando um final “mais definitivo” para a guerra. Isso os irmãos já garantiram que não vão fazer. Segundo eles a história se encerra nesses três episódios.

Nesse caso eu tendo a acreditar neles. Acho que são suficientemente honestos para se absterem de cometer uma continuação oportunista. É claro que para uma crítica mais cínica, “Reloaded” e “Revolutions” são eles próprios duas continuações oportunistas. Há quem aplique a “Matrix” o mesmo raciocínio que se aplica às séries hollywoodianas em geral: o primeiro filme tem uma história consistente, mas as continuações são esquemas oportunistas feitos para ganhar dinheiro. A favor dessa tese, está o esquema de marketing avassalador montado para o lançamento das duas continuações, que estréiam mundialmente ocupando um número absurdo de salas de cinema. Nesse caso, “Matrix” seria apenas mais um odioso “blockbuster” hollywoodiano ocupando o lugar do cinema autêntico.

Mas essa não é a minha tese. Não acho que “Reloaded” e “Revolutions” sejam meras continuações oportunistas, apesar de ver problemas conceituais neles. Acho que os irmãos não resistiram à tentação de voltar à história, mas não souberam como terminá-la. Elevaram demais as expectativas no segundo episódio e as frustraram no terceiro. Não são meros filmes sem conceito, feitos apenas para ganhar dinheiro, porque há algumas boas idéias neles. Essas idéias apenas não são suficientes para resolver a história.

Como antecipamos em nosso comentário sobre “Reloaded”, os Wachowski deixaram a humanidade numa situação bastante difícil de ser resolvida. Como os rebeldes de Zion libertariam o restante da humanidade? O que fariam com a população humana recém-liberta de suas cápsulas e atirada de chofre ao deserto do real? Se não os libertassem, como admitir que continuassem presos à Matrix? A menos que essa Matrix fosse de alguma forma domesticada e submetida aos humanos. Reprogramada. Isso sim seria uma revolução de verdade. Como no nosso mundo real, seria uma revolução colocar as forças produtivas capitalistas a serviço da humanidade.

A série Matrix é apenas um filme, é claro. Não é a resposta para os problemas do mundo. Não é no seu pot-pourri filosófico que se deve encontrar a chave para a nossa realidade. Pode-se encontrar apenas uma ilustração dos problemas. Como filme, a série Matrix tem que se submeter a certas convenções narrativas, segundo as quais seu resultado pode ser avaliado. Uma epopéia como a desta série deve necessariamente colocar em jogo uma situação dramática de tudo ou nada: vitória ou derrota total. Essa é a fórmula clássica da mais clássica das trilogias cinematográficas. Os leitores sabem de quais filmes estou falando.

Um filme de ação funciona dramaticamente quando coloca os heróis numa situação em que podem encontrar tanto a aniquilação total de suas vidas e de sua causa quanto a vitória final sobre seus inimigos. Tudo numa mesma cartada. Na série Matrix, qual seria esse tudo ou nada? O nada seria a destruição de Zion e a continuação “ad infinitum” do ciclo de rebeliões frustradas. Tudo seria, ao contrário, a libertação da humanidade ou a submissão das máquinas, a reprogramação da Matrix, sob alguma fórmula a ser encontrada. Como não foi encontrada, os irmãos Wachowski reduziram suas expectativas.

Ao invés do tudo ou nada, o “mais ou menos” ou nada. A mera sobrevivência de Zion foi o que a vitória de Neo e dos rebeldes nos trouxe. Uma mera trégua, na verdade. Isso é “o tudo” que eles nos oferecem, e que não me contenta. O final frustrante para a trilogia tende a comprometer o conjunto da obra. A história inteira diminui em interesse se o seu final não agrada. Colocados numa hierarquia, o primeiro filme é o melhor, porque a história é perfeita, fechada e prescinde de continuações. O segundo é simultaneamente o mais belo dos três e o mais vazio. E o terceiro...

Dissemos que “Reloaded” é o mais belo por causa das cenas espetaculares e da ação vertiginosa. E é o mais vazio porque o seu conteúdo filosófico não traz nada de novo, apenas a exposição, pelo Arquiteto, pela Oráculo e por Merovingian, do ciclo de rebeliões e reinicializações por meio do qual o império das máquinas repõe sua dominação. Há quem leia o final de “Revolutions” como mais uma dessas reinicializações. Neo, cumprindo o papel de Predestinado que lhe foi prescrito pelo Arquiteto, restaura a harmonia e o equilíbrio do sistema. A guerra cessa e o sistema volta a funcionar como antes. Pelo menos temporariamente. Até que comece tudo de novo.

Essa leitura é admissível, mas com uma ressalva. Houve um ganho, dessa vez. Zion não foi inteiramente destruída, como das outras vezes. Sua população não foi dizimada. E segundo a promessa do Arquiteto, aqueles humanos que quiserem sair da Matrix, poderão fazê-los. Aparentemente, não haverá mais agentes para detê-los. Isso representa um ganho enorme em relação às rebeliões anteriores. As máquinas aparentemente admitiram que os recursos usados para administrar a anomalia (Neo), que são os agentes, acabam se tornando uma ameaça para o próprio sistema (Smith).

Ou seja, as máquinas tem que se contentar em conceder o poder de escolha aos seres humanos e o direito de saírem da Matrix. Na analogia, quem quiser se libertar do sistema capitalista pode optar para sair dele, mas apenas para ser jogado a um mundo miserável de rochas secas e céu escuro. Não há alternativa dentro do sistema, ou transcendente ao sistema, passando por sua transformação. A alternativa seria voltar a um mundo pré-Revolução Industrial, já que, uma vez estando nós dentro dela, não há mais como mudar o sistema capitalista.

Pode-se fazer apenas uma reforma, arrancar concessões. O reformismo é o projeto social-democrata, por isso brincamos que o final do filme é tucano. Houve uma reforma na Matrix. Foi o que os heróis do filme fizeram. Por isso, a comemoração da vitória em Zion é tão pouco convincente. O garoto chato que aporrinhava Neo é o portador da notícia de que os humanos venceram. Nada poderia ser mais sem graça. Apesar da convicção de Morpheus, a retirada das máquinas no momento de sua vitória parece precipitada. Apesar do intervalo no qual transcorre a luta de Neo e Smith, a retirada não deixa de dar a impressão de que elas podem voltar a qualquer momento. A vitória sem luta não tem gosto de vitória. A vitória é tão incerta que Morpheus parece não acreditar no que está vendo. O ato falho dos autores é evidente. Não houve mesmo vitória. Houve uma reforma. Não há como fazer uma revolução socialista.

Não há? Então por que o filme se chama “Revolutions”? Será que os Wachowski consideram revolucionária a filosofia que expõem? Consideram que a salvação está no tradicional bom-mocismo estadunidense que é o estofo da série? Sim, porque apesar de toda sofisticação discursiva, Matrix acaba apelando para o tradicional. Seu discurso é sofisticado, sua atmosfera é intrigante, sua pirotecnia é sedutora; mas seu conteúdo é o bom-mocismo mais tradicional.

Considero que o mérito dos filmes desta série é levar para o público de massa um pouco de filosofia. Questões como a relação entre aparência e essência, a realidade do mundo, o sentido da história, a possibilidade do conhecimento, etc.. Para uma audiência desacostumada a pensar enquanto assiste filmes, isso já é um avanço e tanto. O demérito é oferecer como resposta um tradicional manifesto de boas intenções. Nada de chocar o público, apenas confundí-lo um pouco. Nada de oferecer um final negativo, apenas um final aberto. Teria sido melhor, mais verdadeiro, se as máquinas tivessem vencido, porque essa é a nossa situação no mundo real.

Em vez disso, opta-se por agradar à necessidade de segurança e conforto sentimental do espectador. A resposta para as questões do filme, a solução para a humanidade, não está em nenhuma das sofisticações filosóficas oferecidas em forma de charada, está nas coisas simples da vida. A sabedoria está nos pequenos detalhes, nas coisas banais, nos prazeres cotidianos. A Oráculo é uma vovó simpática que faz doces apetitosos. O bem mais valioso do mundo é o amor de um pai por sua filha. O último desejo de Trinity é um simples beijo.

Os personagens que fazem a diferença são os pequenos, os simples, os Zé-ninguém. Como o garoto, com sua patética devoção a Neo, ou Zee, com seu amor cego por Link. A reposição da mesma crença tradicional de que os perdedores e esquecidos também podem chegar lá. Nada mais típico da cultura estadunidense e mais tradicional. Isso diz respeito, é claro, apenas à batalha de Zion. A guerra como um todo é decidida num outro nível, no qual se requer a intervenção de um Messias.

Neo é o salvador que se sacrifica pela humanidade. O Cristo da Era da Informática. Alguém dotado de amor para trazer equilíbrio e compaixão ao mundo das máquinas, com sua racionalidade fria e mecânica. Neo é o representante da paixão e da renovação contra o princípio da ordem e da estabilidade representado por Smith. O princípio da ordem, levado até às últimas conseqüências, até a assimilação de toda diferença, incorporando toda a humanidade para acabar com seu poder de escolha, acaba por destruir a si mesmo.

A pretensa revolução do título está aí, nessa vitória parcial sobre as máquinas. Segundo o Arquiteto, o Predestinado é a anomalia na equação resultante do desejo humano de fazer escolhas. Para administrar a anomalia, concebem-se os agentes da ordem. Quando os dois desenvolvem seus poderes ao extremo, anulam-se um ao outro. O confronto entre os dois cresce de proporções na série, até que as máquinas aprendam que o expediente de que se utilizaram para manter a ordem ameaça sua própria existência. Por isso concedem a Neo a trégua.

Nada mais hegeliano. Chegando à sua realização máxima, o princípio positivo que é Smith se transforma em seu oposto negativo, que é Neo (Novo), sendo por ele aniquilado. Ele chega a pressentir isso, no seu diálogo com a Oráculo, antes de assimilá-la, mas a visão de seu triunfo acaba por cegá-lo. Em sua arrogância, ele gargalha com a visão de uma vitória que é simultaneamente sua derrota. Pois com essa vitória mesma, seu propósito fica evidentemente esvaziado.

Mas a história continua, depois dessa síntese hegeliana. Assim como no mundo real a história continuou depois da síntese hegeliana do Estado burguês. A história continuou e impôs uma nova contradição dialética, a oposição entre capital e trabalho, que ainda aguarda a sua síntese. No filme, a síntese dos opostos também trouxe o fim de uma contradição, mas o início de uma nova situação.

O fim da história marca a transição de um mundo regido pelo destino (o Oráculo) para um mundo regido pela escolha. Como a transição que houve no mundo Antigo, com o advento do cristianismo. Passou-se de um mundo determinado pelo sentimento trágico da vida para um mundo determinado pela esperança trazida com a Boa Nova da vinda de Cristo. O mesmo acontece agora com a vinda de Neo. Na Matrix, essa transição é determinada pela decisão da própria Oráculo, que optou pela mudança, em seu jogo contra o Arquiteto. A mudança traz sempre algum risco, ela concorda. Desse risco calculado derivou a incerteza dramática que é o motor da série. O risco dos rebeldes perderem a guerra, apesar da Oráculo haver previsto a possibilidade de um Messias redimir a todos.

No fim, o conteúdo principal de toda a história é mais religioso do que filosófico. A crença no Predestinado é a esperança que move os rebeldes. Enquanto esperam pelo sucesso de Neo, cada um deve fazer sua parte, é o discurso de Morpheus, que sintetiza a esperança messiânica de um reino de Deus na terra. Morpheus é o Cruzado dessa esperança e Mifune é o samurai. Em Matrix todos os nomes tem significado histórico-mitológico. Todos os personagens são batizados com o nome de mitos. Nesse contexto, Mifune é uma clara homenagem ao ator japonês Toshiro Mifune, legendário herói de inúmeros filmes de samurai de Akira Kurosawa. A disposição fatalista com a qual o capitão Mifune enfrenta a morte na seqüência mais tensa do filme, a batalha de Zion, é digna de um verdadeiro samurai. O que o torna meu personagem preferido deste episódio.

Vacilações à parte, é preciso não esquecer que, afinal de contas, trata-se de uma simples diversão. A série Matrix é a materialização da utopia visual de uma geração de fãs de toda uma subcultura que subitamente se torna “mainstream”. Como eu disse a respeito de “Reloaded”, trata-se da realização dos sonhos de todos os fãs de histórias em quadrinho, videogames e desenhos japoneses. A recepção aos sentinelas é algo que jamais esquecerei. A sensação de pilotar máquinas gigantes e metralhar robôs a granel é tudo que eu sempre quis ver num filme de ação. Por esse aspecto, não tenho do que reclamar de “Revolutions”. Apesar dos escorregões filosóficos, pessoalmente, serei eternamente grato aos Wachowski por me proporcionarem o espetáculo da batalha de Zion.

Chegando ao final, um gato preto passa à nossa frente. A noite chuvosa se transforma numa manhã colorida. E logo em seguida, o mesmo gato passa novamente. Deja vu? O deja vu, aprendemos no primeiro Matrix, acontece quando eles mudam algo. Representa um falha na Matrix. O que será que eles mudaram?

Daniel M. Delfino

13/11/2003

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