30.4.07

A farsa do desemprego




O desemprego é uma farsa. Mais do que isso, é um falso problema. Tenho pena das pessoas que procuram um emprego como se isso fosse a solução de seus problemas. E tenho pena dos governos que pensam que sua missão é gerar empregos. Nada pode ser mais absurdo do que esse programa, “gerar emprego”. O fato de que esse tipo de programa de governo e de obsessão pessoal tenha se tornado uma febre mundial apenas mostra decisivamente o quanto o mundo inteiro está de cabeça para baixo.

O trabalhador não tem que mendigar por alguma coisa para fazer. A idéia de “gerar emprego” como programa de ação dá a impressão de que não há nada de importante para ser feito no mundo. Inventa-se uma atividade, que não existia antes, só para dar ocupação para uma massa de desocupados, sem qualquer relação com as necessidades concretas da sociedade. É patético e ridículo.

Tome-se o exemplo oposto. Há indústrias voltadas para a destruição de sociedades e indivíduos, mas que são sustentadas sob o pretexto de que “geram empregos”. Indústrias como a de armas, de cigarro e de bebidas alcoólicas, que trazem incomensuráveis danos e prejuízos, pessoais e sociais para a humanidade inteira, mas que, uma vez que já estão instaladas, devem continuar girando, já que “geram emprego”. Ou seja, para o sistema, não interessa o que é necessário para a sociedade, mas o que pode lhe gerar lucro. Essas indústrias da destruição não produzem coisa nenhuma que seja útil, mas produzem valor para o capital, portanto devem ser mantidas, o que representa um absurdo clamoroso.

Insisto em que o trabalhador não precisa procurar emprego. Precisa de trabalho. A sociedade não precisa “gerar empregos”. Precisa atender necessidades humanas. Tome-se o exemplo do Brasil. O Brasil é um país pobre, sem infra-estrutura. Um país ainda em construção, com misérias e carências gigantescas. Uma sociedade racional trataria de atender essas necessidades: moradia, saúde, educação, transportes, saneamento. Existe muito trabalho a ser feito, como qualquer um pode ver.

Existe muito trabalho a ser feito, assim como existe muita gente em busca de trabalho. Porque não se juntam a fome e a vontade de comer? Porque não se organizam os trabalhadores para satisfazer as necessidades dos próprios trabalhadores? Qual a necessidade de que haja empresas como intermediárias do processo? Certamente não é uma necessidade técnica, inerente ao processo econômico-reprodutivo da sociedade. O que impede os trabalhadores de se organizarem de forma auto-gestionária é a falta de consciência dos próprios trabalhadores.

A necessidade da intermediação do capital no processo econômico-reprodutivo da sociedade é apenas uma necessidade cultural e ideológica, social e política, totalmente artificial. A necessidade de se manter o “status quo” da sociedade capitalista brasileira. Uma sociedade capitalista capenga e incompleta, mas ainda assim capitalista. Os trabalhadores precisam de emprego e a sociedade precisa de trabalho, mas uma coisa não pode resolver a outra, porque no regime capitalista ambos são reféns das necessidades do capital.

O trabalhador só pode trabalhar se com isso conseguir satisfazer aos critérios parasitários da sobrevivência do capital. Só há trabalho onde há oportunidade de lucratividade para o capital. Só há oferta de emprego quando há possibilidade de extrair mais valia e acumular capital. Se a perspectiva do mercado não é favorável, o trabalhador continua desempregado, as máquinas continuam paradas, as carências sociais continuam sem resolução.

O absurdo desse sistema é manifesto. O trabalhador só tem emprego se o capital considerar que haverá mercado para vender mercadorias. Só haverá mercado se houver consumidores. As pessoas só poderão ser consumidores se tiverem renda. Só terão renda se tiverem emprego. Só terão emprego se o capital achar que terá lucro. E assim sucessivamente, num círculo vicioso de alternativas mutuamente condicionantes e reciprocamente auto-restritivas. Para sair desse círculo vicioso, requer-se a ação de um agente externo, que é o Estado, o qual por meio da geração de crédito e dívida, provê a liquidez para que o sistema volte a circular.

O Estado realiza a mágica de voar puxando-se para cima pelos próprios cabelos. Essa solução é evidentemente artificial. A conta do sistema capitalista não fecha. Se não há emprego e não há renda, não haverá consumidores, e se não houver consumidores, não haverá emprego nem renda. O sistema se auto-restringe e exclui massas imensas e países inteiros de qualquer possibilidade de trabalho ou de renda. Apenas em ciclos econômicos ascendentes há possibilidades limitadas de inclusão. Esses ciclos são estimulados por duas alternativas: endividamento ou inovação tecnológica.

Se todas as dívidas fossem cobradas e todos os títulos resgatadas, o sistema implodiria. Ele só se sustenta sob o pressuposto de que essa cobrança não irá acontecer. O mundo não olha para o abismo de dívidas sob seus pés, mas para as nuvens no céu, em busca de sinais de uma prosperidade que nunca vem. Vive-se a ditadura do curto prazo. Ninguém olha para os próximos 10 ou 20 ou 50 anos, apenas para o próximo exercício fiscal. Medem-se as possibilidades ínfimas de crescimento em porcentagens insignificantes e todos cruzam os dedos na expectativa de que essas possibilidades se realizem. Ninguém pode aspirar nada além disso.

Mencionei acima que uma das saídas para o crescimento econômico é a inovação tecnológica, como aconteceu recentemente através da chamada “Terceira Revolução Industrial”, que trouxe a robótica, a informática, a internet e as telecomunicações. Essas inovações trouxeram períodos isolados de crescimento econômico, em certos países isolados, mas sempre com desemprego. Na atual conjuntura econômica mundial, não existe emprego estável. No atual sistema produtivo, a tecnologia se tornou inimiga do homem. A tecnologia, ao invés de gerar tempo livre, gera desemprego. Esse é outro absurdo manifesto do sistema do capital.

A ciência e a tecnologia não estão a serviço do homem, mas do capital. Numa sociedade racional, uma nova tecnologia serviria para diminuir tempo de trabalho, não para demitir trabalhadores. Por exemplo, quando se inventam catracas eletrônicas para ônibus, ao invés de demitir os cobradores, diminuiria-se a jornada pela metade e se empregariam os cobradores como motoristas. Os trabalhadores teriam assim um tempo livre adicional para atividades criativas, ou para trabalhar em outro emprego. A inovação teria se produzido a seu favor e não contra eles. Como não estamos numa sociedade racional, os trabalhadores são demitidos, em nome do progresso.

O progresso é sinônimo de avanço avassalador do mercado. O mercado invade todos os setores e todos os países. Torna-se um mercado global. Em nome do mercado, não existe mais estabilidade nos empregos. Quem está empregado hoje pode não estar mais amanhã. Não há mais estabilidade e tranqüilidade para exercer qualquer profissão. Hoje em dia tudo é competição, tudo é tensão, tudo é nervosismo, corrida contra o tempo, necessidade de se atualizar e “se reciclar” para se manter “empregável”.

Ironicamente, o sonho do trabalhador de hoje é voltar aos “Tempos Modernos” de Chaplin, onde tudo que tinha que fazer era apertar parafusos. Era terrivelmente explorado, mas pelo menos não tinha que pensar. O pensamento do sistema era reservado ao exército dos burgueses e pequeno-burgueses, como seu privilégio e sua atribuição específica no interior do sistema produtivo. Hoje o proletário também tem que pensar, tem que se interessar pelos rumos da empresa e do país, tem que “vestir a camisa”, incorporando exigências e preocupações antes peculiares à classe dirigente burguesa, herdando um ônus adicional sem compartilhar os bônus da situação.

O trabalhador sente como se fosse sua culpa o fato de estar desempregado e reduz sua auto-estima, seu interesse pela vida e até seu desejo sexual. O desempregado se reduz a um ser humano pela metade. A essa altura, já está claro que não escrevo isso para dar algum consolo a quem está desempregado. Antes, pelo contrário, para deixar preocupado quem está empregado. Não existe emprego estável no mundo, repito. Não existe sequer uma classe dominante burguesa estável. A burguesia está sujeita à mesma competição estressante da caça por mercados. Isso é reflexo da transformação do capitalismo globalizado em um sistema mundial conduzido por megacorporações nas quais o papel produtivo da classe dominante é irrelevante ou inexistente.

A burguesia, como camada social que se define pelo vínculo da propriedade dos meios de produção, é tecnicamente inútil para o sistema produtivo. Cabe-lhe ser substituída por uma subclasse de gerentes e administradores, até mesmo executivos milionários, mas essencialmente proletarizados. O burguês tem que trabalhar tanto quanto o proletário. O burguês se proletarizou, mas o proletário não consegue mais se aburguesar. As portas estão fechadas. Apenas uma elite parasitária de rentistas tem segurança em suas aplicações financeiras. Isso enquanto conseguir manter o mundo inteiro refém do capitalismo cassino parasitário.

Todo emprego é precário. Até mesmo o de Presidente da República legalmente eleito. Que o digam De La Rúa da Argentina, Sanchez de Lozada da Bolívia, Shevardnadze da Geórgia. Quando o mercado está insatisfeito e o consumidor percebe que comprou gato por lebre, ele se revolta e vira a mesa. O mundo de hoje está interligado pelo mercado e pela competição. A qualquer momento, um concorrente do outro lado do mundo pode roubar uma fatia de mercado, derrubar uma empresa, um ramo de atividade, um país inteiro. Isso sem falar nas instabilidades do mercado financeiro, que não negocia mercadoria nenhuma, mas tem o poder de derrubar economias, produzir recessão e fabricar desemprego em massa.

O assim chamado “comércio mundial” é um teatro do absurdo. Quando se fala em comércio, a primeira imagem que se tem é a de um grupo de vendedores oferecendo mercadorias a serem livremente escolhidas por compradores eventualmente interessados. No que se refere ao mercado mundial, nada é mais falso do que isso. O comércio mundial é qualquer coisa menos “livre comércio”. É um jogo da batata quente. Cada um tenta empurrar suas mercadorias aos outros. Cada país diz ao outro: “aceito comprar uma certa quantidade dos seus carros se você aceitar comprar uma certa quantidade do meu trigo.” Disputa-se a imposição mútua de cotas de venda. Ser vendedor é estar por cima, ter vantagem, empurrar mercadorias, que na verdade são um problema para o outro.

Ser comprador é ser logrado, ludibriado, fraudado, engrupido, enganado, vencido. O que isso tem a ver com as finalidades da economia, de alocar adequadamente recursos produtivos e atender necessidades? Cada governo deve se esforçar para empurrar mais exportações para outros países e deve evitar que seu país importe para não gerar déficit comercial. Para exportar, deve baixar os custos de produção. Como a margem de lucro do capital é um limite intransponível para o Estado, a corda arrebenta do lado mais fraco, através da tentativa de reduzir os custos do trabalho. Reduzir os custos da mão de obra significa reduzir salários, estender jornadas, precarizar direitos. Rebaixando a renda do trabalhador, porém, reduz-se o mercado interno, cria-se mais desemprego, pobreza e violência.

Mas é isso que todos os governos insistem em fazer, baixar os custos da mão de obra, sob o pretexto de flexibilizar o mercado. Inclusive o governo do Partido dos Trabalhadores (sic) no Brasil, que acena com propostas nessa direção, dando continuidade à agenda neoliberal de FHC. Esfacelada a CLT, teremos de vez o reino do salve-se quem puder, a volta das jornadas de trabalho dignas das minas de carvão da Revolução Industrial inglesa. Sob o pretexto de “gerar empregos”...

Não acho que a vivência de quem escreve seja o critério decisivo para avaliar a validade do que foi escrito. Acho que uma tese deve ser avaliada pelo seu significado intrínseco e não pela origem de quem a emitiu. O que escrevi aqui deve ser verdade ou não por si só, não pelo fato deste escriba estar empregado ou desempregado. Mesmo assim, é importante esclarecer este ponto. Trabalho desde os 11 anos de idade, já estive em seis empregos diferentes, sendo que apenas meu emprego atual é formal e devidamente registrado.

Não tenho qualquer ilusão quanto à continuidade desse emprego atual a médio e longo prazo. Como caixa de banco, sei que minha profissão é perfeitamente inútil. Minha matéria de trabalho, papel moeda, folhas de cheque, boletos de cobrança, é completamente obsoleta, pois há alternativas tecnicamente viáveis de meios eletrônicos de pagamento à disposição para substituí-las. Continuo empregado apenas enquanto houver resistência cultural dos clientes do BB a usar máquinas de atendimento e internet.

Meu emprego é precário como qualquer outro. Mas meu verdadeiro trabalho, ainda que não remunerado, é escrever, uma função que considero socialmente mais útil. Se não servir para mostrar que o mundo inteiro está de cabeça para baixo, pelo menos mostra decisivamente que eu sou o único que estou louco.

Daniel M. Delfino

11/01/2004

Um comentário:

Anônimo disse...

Texto interessante porque eivado de um realismo idealista que também não deixa de ser racionalista.
Também se me coloca essa questão do défice de consciência em realação aos iraquianos. Se são pobres e destroem os seus hospitais, casas e mercados mais pobres ficarão e maior será a distância em relação aos ricos... Porque não negociar bem o preço do petróleo e investir bem esse dinheiro?
Mistério? Ou apenas porque a religião não deixa crescer a racionalidade do indivíduo???
De Portugal.HR. Continue com as suas reflexões.