30.4.07

Você já foi bem atendido por um servidor público?




Circula pela rede o seguinte panfleto, que recentemente chegou à entulhada caixa postal deste escriba (trata-se de mais uma dessas obscuras, anônimas e ecléticas mensagens típicas desse prolixo universo que é a internet):

“Reforma da Previdência:
- Você já foi bem atendido por um servidor público???
- Você já foi bem tratado por um Policial Rodoviário Federal???
- Você já ouviu falar de um Policial Federal que não tenha feito “cachorro”???
- Você já foi bem atendido por um servidor da UFPR???
- Você já foi bem atendido por um servidor do INSS???
- Você já foi bem atendido por um servidor do Ministério do Trabalho???
- Você já foi bem atendido por um servidor da Receita Federal???
- Você já foi bem atendido por um servidor do Hospital de Clínicas quando pediu uma informação???
Agora eles querem apoio popular para barrar a reforma da previdência!!!
Pois agora vamos tratá-los da mesma forma que somos tratados quando precisamos deles.
COM A MAIS PURA INDIFERENÇA!!!
Passe este e-mail para a maior quantidade de pessoas possível...”

A princípio é inevitável concordar. Pois todos temos centenas de experiências de péssimo atendimento em repartições públicas para relatar. A mensagem estaria expressando uma insatisfação bastante disseminada e de resto inteiramente justificável. Mas as conclusões a que a mensagem chega não fazem mais que reproduzir a lógica fragmentária da sociabilidade capitalista. Uma lógica que secciona a sociedade para melhor administrá-la, impondo-lhe interesses ideológicos.

O autor desse texto está confundindo os sintomas de um problema com a sua causa. Está confundindo mal-atendimento com precariedade das condições de trabalho. O problema do atendente que atende mal não será resolvido pela Reforma da Previdência. A pessoa que mandou o texto sabe que a Reforma vai ferrar com os servidores e acha isso bom.

É a revanche do cidadão/consumidor que foi mal atendido e reclama com o gerente/governo responsável pela empresa/serviço público em função do péssimo produto/serviço prestado. O gerente então corta os benefícios do atendente/servidor. Esse é mais um típico exemplo da lógica mercadológica contaminando o funcionamento da sociedade. O raciocínio do autor da mensagem é o de alguém que prefere ser tratado como consumidor do que como cidadão. Como consumidor ele é um egoísta que só quer saber dos próprios problemas e acha bom quando os outros se ferram.

Repõe-se a multimilenar lógica da dominação, exercitada desde os primórdios da sociedade de classes: jogar os dominados uns contra os outros. Os que servem e os que serão servidos. Uns se ferram sendo mal atendidos, outros se ferram sem aposentadoria. E o Estado/patrão providencia a uns o desserviço e a outros a imprevidência, conforme o que cada um exige para o outro.

Como cidadão ele deveria exigir do Estado que preste serviços de qualidade. E o Estado não é o funcionário. O funcionário não é o Estado. O servidor público é um funcionário proletarizado. O servidor no balcão de atendimento é o menos culpado pela situação caótica do serviço público. A culpa é da falta de verbas. E as verbas faltam porque os servidores de alto escalão privilegiam o pagamento de juros ao capital especulativo. E esses servidores privilegiados tem suas aposentadorias milionárias garantidas.

Ao menor sinal de mudança na sua situação privilegiada, a elite política e empresarial dirigente se mobiliza. É contra as cúpulas que se deve lutar, não contra a massa de servidores/proletários públicos. O autor da mensagem apela para a revolta que todo mundo já sentiu ao ser destratado por algum servidor. A mensagem capitaliza a revolta e instrumentaliza o ódio da massa contra seus iguais. É um golpe baixo de retórica divisionista e reacionária.

Estejamos atentos a esse tipo de manipulação.

Eu não estou negando com isso que o atendimento ao público nos órgãos oficiais seja terrivelmente ruim, porque é. É ruim porque o servidor/proletário está se vingando do público que o procura pelo seu passado no mercado de trabalho. O servidor se sente seguro no cargo público e se desforra contra a massa que não conseguiu passar num concurso. A massa é o reflexo da condição odiosa do trabalhador sob regime capitalista, que vive ameaçado pela precariedade do emprego numa conjuntura de renovações tecnológicas constantes, aplicadas pelo capital de modo tecnicamente benéfico e socialmente funesto. Já que escapou dessa condição, por meio do concurso/loteria, o servidor se vinga do público com seu despeito e indiferença para com as demandas da população a quem deveria atender.
E a sociedade segue assim dividida entre segmentos, o público e o privado, separados pela muralha da desconfiança mútua e unidos pela estreita porta da competição/loteria dos concursos. O sonho de entrar num cargo público é como o sonho de ganhar na loteria. A fascinação pelos concursos públicos, na cultura popular, equivale à de acertar as perguntas do Show do Milhão. Daí o grande apelo popular e o sucesso do programa do Silvio Santos.

No Brasil, ninguém entra para o serviço público para servir realmente ao público e sim para pendurar o paletó. Nasce daí o servidor público nelsonrodrigueano, o barnabé, o corrupto, o burocrata cartorial típico da nossa república de bananas. Ninguém é selecionado para o serviço público pelo seu idealismo, pela sua dedicação a uma causa, pelo desejo de transformar a realidade. Os servidores que trabalham com essa idéia são marginalizados pelos demais membros da categoria, acostumada com a mesmice do seu preguiçoso dia-a-dia de contagem regressiva para a aposentadoria.

Quando o governo anuncia que vai reformar a previdência, para a alegria vingativa dos que foram injustiçados por péssimos serviços, completa-se a injustiça para com os servidores que trabalham corretamente.

Enquanto um lado e o outro continuarem olhando egoisticamente apenas para o próprio umbigo, a elite acima deles continuara se refestelando a custa da miopia de ambos. O balcão tem dois lados, como tudo na sociedade.

Daniel M. Delfino

07/09/2003

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