8.5.07

Atenas 2004: Jogos do Medo




A memória da cultura grega não merecia uma tal afronta. A cultura que concebeu os Jogos Olímpicos como celebração da paz, festival religioso, artístico e esportivo, está sendo ultrajada pela sombra do evento atual. A presente edição dos Jogos se realiza sob um clima de medo e tensão completamente insanos e injustificáveis. As Olimpíadas de Atenas serão consideradas um evento bem sucedido se no decurso das quase três semanas de competição, nenhum atentado terrorista acontecer. A preocupação com a segurança está sendo maior do que com os recordes e medalhas. O noticiário geopolítico está ofuscando o esportivo em Atenas 2004.

Tudo isso porque o mundo globalizado não é um universo homogêneo e integrado como era a Grécia antiga. As cidade-Estado gregas suspendiam todas as guerras e hostilidades para que seus atletas e artistas pudessem disputar os jogos e homenagear Zeus. O mundo dos Jogos de 2004 é um mundo fraturado. Um mundo dividido pela política de uma mega-potência hegemônica hostil e agressiva. Arvorando-se em policiais do mundo, os Estados Unidos decretaram uma despropositada “guerra ao terror”.

E com isso, colocaram-se como alvo preferencial da fúria insana dos novos bárbaros do século XXI. Bárbaros que os próprios Estados Unidos cultivaram. Inimigos que transformaram a política em domínio do irracional e do ódio, por meio da religião. Inimigos irracionais que apenas vicejaram porque o terreno fora previamente limpo de toda forma de oposição racional que antes florescia. A oposição nacionalista, republicana, laica, popular e modernizadora que existia em regiões como o Oriente Médio foi dizimada na época da Guerra Fria. Em seu lugar, nasceram os aiatolás e mulás, que conduzem uma guerra santa em linguagem do século VIII.

Enquanto partes do mundo voltam ao século VIII ou a épocas ainda mais bárbaras, a parte moderna, civilizada, europeizada e estadunidizada do mundo tenta festejar os valores essenciais de sua cultura. Tenta de alguma maneira reatar os fios que nos ligam aos nobres gregos da época de Péricles, Sócrates, Eurípides, Leônidas, Filípides, e outros heróis do espírito e do corpo. É preciso muito esforço sofístico para enxergar alguma continuidade entre aquela cultura e a dos jogos atuais. Mas isso é assunto para logo adiante.

O que importa por enquanto é assinalar o quanto o frágil consenso em torno da “civilização” da nossa era globalizada pode ser facilmente estilhaçado pela ameaça de forças que não tem um pingo de “espírito esportivo”. Há forças que não respeitam as regras do jogo. Não acreditam em qualquer espécie de jogo. Não acreditam em nenhum dos valores propagandeados pela “nossa civilização”. Valores como democracia, liberdade, direitos humanos, tolerância civil, não dizem nada às mentes ressuscitadas do século VIII.

Não acreditam e nem podem acreditar, porque a miséria e a insanidade em que vivem são o subproduto indesejável e ao mesmo tempo a face oposta, necessária e complementar do sistema que propagandeia democracia, liberdade, direitos humanos, tolerância civil. O sistema é uma fraude, suas promessas são mentiras e os terroristas fazem questão de jogar isso na nossa cara. Não há melhor oportunidade para fazer isso do que um evento como os Jogos Olímpicos. Um evento que atrai a atenção da mídia mundial e onde ainda por cima os Estados Unidos invariavelmente são os protagonistas. Se houver vítimas de outras nacionalidades, tanto faz. “Quem não está conosco está contra nós”, pensam os terroristas e seu irmão gêmeo George W. Bush.

Evidentemente, ninguém está torcendo para que aconteçam atentados terroristas em Atenas. Mas o simples fato dessa preocupação existir já é em si um sintoma gravíssimo. Não deveria ser assim. E as coisas são assim já desde algum tempo. Basta lembrar dos atentados de Munique em 1972. As interferências políticas não são uma novidade na história dos Jogos Olímpicos da era moderna.

A rivalidade entre países dentro do sistema das nações é um problema com o qual o movimento olímpico sempre conviveu. Basta lembrar os boicotes aos jogos de Moscou em 1980 e de Los Angeles em 1984. A novidade está no fato de que a rivalidade atual rejeita o sistema como um todo, as regras do jogo e a própria idéia de jogo. A idéia de um atentado aos Jogos só pode ser concebida por alguém que está totalmente fora do sistema e contra ele. O que há a se destacar aqui é o fato dessa rejeição acontecer justamente no momento em que os Jogos retornam ao cenário em que foram originalmente concebidos. O rico simbolismo de um retorno dos Jogos ao seu cenário original fica em segundo plano em relação à constatação de uma certa falência do projeto civilizatório global em curso.

As Olimpíadas tentam ser esse evento universal que unifica a humanidade. Mas essa aspiração continuará sendo uma utopia distante, enquanto a humanidade continuar dividida no plano de suas relações concretas. Postular unidade, igualdade, fraternidade, congraçamento num mundo dividido por discrepâncias clamorosas, continuará sendo uma farsa cruel. Não há qualquer equilíbrio entre as cidade-Estado atuais, qualquer igualdade entre as nações que compõem o movimento olímpico.

Em conseqüência disso, há países que são meros figurantes na Olimpíadas, enquanto outros são os que realmente disputam medalhas. O Brasil, por exemplo, se enquadra na categoria dos figurantes. Olimpíada não é Copa do Mundo, não importa o quanto os Galvão Buenos da vida queiram acreditar que seja. Ao contrário das Copas do Mundo, nas quais a seleção brasileira é sempre uma das favoritas, nas Olimpíadas o Brasil precisa lutar de forma hercúlea para angariar um punhado de bronzes, quiçá algumas pratas e talvez um único e precioso ouro. O Brasil faz parte do 3º Mundo na geopolítica e também no esporte olímpico.

A comparação com o caso cubano é vergonhosa. Num país com apenas 11 milhões de habitantes, há dezenas de medalhistas olímpicos a cada competição. A explicação para essa discrepância está no fato de que em Cuba a educação é realmente levada a sério, ao contrário do que acontece aqui. Somos um país que muito fala e pouco faz. Muita bravata, muita “garganta”, muito “oba-oba” e pouca concretude. Um país que muito participa e pouco ganha. Mas talvez seja esse mesmo o espírito da coisa. Participar, não vencer.

No dizer do Barão de Coubertin, idealizador do jogos da era moderna, “o importante é competir”. O Barão vem de uma época em que os esportes eram o corolário pessoal da prosperidade social burguesa. Através do esporte, a burguesia européia se aristocratizou. Ser sócio de um “country club” exclusivo era o que separava a burguesia da “belle epoque” das classes inferiores. O esporte era um luxo para poucos. Eram poucos os que podiam bancar um haras para equitação, um iate para regatas, um latifúndio para o golfe. Mesmo o tênis era um esporte aristocrático, já que requer meia dúzia de juízes de linha para apenas dois jogadores.

O mesmo não acontecia com o futebol, que era o esporte das massas proletárias. A maioria dos clubes europeus do fim do século XIX foi fundada por operários. A diferença entre os esportes “burgueses” e o futebol “proletário” talvez explique o porquê de o Brasil, um país proletário na divisão internacional do trabalho, se dar tão bem neste último e tão mal nos demais. Nesse ponto, o dito do Barão de Coubertin se reveste de uma oblíqua função apologética. Já que no sistema capitalista apenas alguns poucos podem de fato vencer, os demais precisam acreditar que o importante é mesmo só competir. Precisam acreditar que a competição é justa, mesmo que ela não seja de fato.

As Olimpíadas são o festival internacional de consagração do culto ao espírito de competição. Mas existe competição e competição. Existe o cavalheiresco espírito de “agon” dos gregos, semelhante ao espírito de respeito das artes marciais orientais. E existe a competição obsessiva, paranóica, alucinada, dos esportes modernos. Há uma homogeneização de conceitos. A competição da esfera econômica se funde à esportiva e vice-versa.

Um dos aspectos do desvirtuamento do espírito dos Jogos é o fato destes haverem se transformado em uma gigantesca operação comercial. Depois que a edição de 1976 quase levou à bancarrota a prefeitura de Montreal, o sinal vermelho foi aceso no C.O.I. (Comitê Olímpico Internacional). Os Jogos seguintes (Moscou, 1980), foram bancados pelo Estado Soviético. Em 1984 (Los Angeles), o C.O.I. partiu para um novo modelo de financiamento e organização. Os Jogos passaram a ser bancados por mega-patrocinadores, grandes empresas transnacionais, que pagam fortunas pelo privilégio de fazer parte de um restrito grupo de “patrocinadores oficiais”. Os únicos autorizados a terem seus logotipos estampados ao lado dos anéis olímpicos.

O passo seguinte foi abrir a competição para os atletas profissionais de cada modalidade, visto que antes apenas os atletas amadores participavam. Com isso, a elite do esporte mundial passou a ter interesse em comparecer aos jogos. Os Estados Unidos, por exemplo, criaram o seu “dream team” de profissionais da NBA. Cada esporte praticou suas adaptações. Mediante um acordo de cavalheiros com a FIFA, foi estabelecido um limite de idade para jogadores de futebol (23 anos) para evitar que as delegações de cada país levassem seus times principais e transformassem a competição de futebol numa réplica da Copa do Mundo. FIFA e COI preservaram assim os seus respectivos territórios, como duas boas “famiglias” mafiosas.

Ambas merecem o qualificativo de mafiosas pelo modo como os componentes de suas instâncias diretivas leiloam entre as cidades o direito de sediar a competição. As cidades investem no esforço da candidatura para comprar o direito de sediar os Jogos, como quem faz um investimento comercial, com o retorno projetado através do incremento do turismo. Como as antigas famílias da nobreza italiana compravam em leilão a eleição para o prestigioso e lucrativo cargo de Papa. Uma operação comercial como outra qualquer. “Business as usual”.

A etapa final desse processo é a transformação da própria competição, que está em vias de passar de competição entre atletas para a competição entre empresas. Os fabricantes de material esportivo são nesse campo os mais inofensivos, pois representam um risco muito menor do que os fármacos que ameaçam dissolver a própria idéia de limites humanos. O doping está invadindo quase todas as competições. Em breve, se tornará oficial. Os atletas vão ser máquinas de teste dos laboratórios farmacêuticos, como os carros de fórmula 1 são para a indústria automobilística.

- x -

Com todos esses problemas, os Jogos ainda conseguem servir como uma espécie de amostra do que poderia vir a ser uma confraternização universal. Uma amostra do que a humanidade pode produzir de belo, de criativo, de sensível. Uma amostra de diversidade étnica, cultural, religiosa, ou no mínimo, de figurinos. A cada edição dos Jogos se enriquece o repertório de cenas de superação, de abnegação, de heroísmo, se assim se pode dizer. Algo que é sempre interessante acompanhar. Não são um evento para se ficar deslumbrado, mas também não para ser desprezado. No mínimo, são um evento em relação ao qual não consigo ser totalmente cínico.

Como brasileiro e torcedor de futebol, prefiro a Copa do Mundo às Olimpíadas. Mas mesmo assim, não deixa de ser interessante acompanhar algumas competições, mesmo aquelas nas quais o Brasil não tem chance de ganhar nada. O esforço das televisões tentando mostrar um brasileiro no pódio a qualquer custo é patético. A televisão tenta repetir em Olimpíadas a mesma patriotada das Copas do Mundo, o que absolutamente não cola. Por mais que se esforcem, o Brasil nunca vai se destacar numa Olimpíada.

Enquanto perdem tempo com isso, deixam de destacar o que pode haver de esportivamente belo em outras competições. Não aprenderam ainda que a lição mais valiosas dos Jogos e do esporte em geral é a de saber respeitar e se alegrar com as vitórias dos outros, não apenas com as nossas. Esse é o único bom sentido possível do “importante é competir”.

Daniel M. Delfino

08/08/2004

Nenhum comentário: