28.5.07

Corinthians e MSI: o futebol imita a vida




O futebol é uma metáfora para a vida. Esse clichê mais do que gasto readquire validade concreta a cada vez que os lances do jogo reaproximam os descaminhos do futebol dos meandros do atraso brasileiro. O Corinthians está perto de assinar um acordo com o “fundo de investimentos” estrangeiro MSI. As negociações terão uma rodada decisiva em fins de Novembro. Nos noticiários esportivos, dirigentes e oportunistas de plantão, de todos os calibres, aparecem a todo momento para confirmar e também para negar a assinatura iminente do acordo e a chegada da Terra Prometida, ou do purgatório, conforme seus interesses paroquiais.

O acordo submeterá firmemente a direção do clube, mais ou menos nos mesmos termos em que os acordos com o FMI submetem o governo brasileiro. Aí está a validade da metáfora. O microcosmo futebolístico corintiano espelha o macrocosmo histórico e sócio-político brasileiro. Há uma série de paralelos entre ambas as situações, senão vejamos.

1 – (A) O MSI promete ao Corinthians trazer dinheiro para pagar as dívidas, comprar jogadores e levar o time a conquistar títulos. (B) O FMI promete ao Brasil dólares para equilibrar as contas externas, manter a estabilidade do real e ajudar o país a crescer.

2 – (A) Em troca dos investimentos realizados, o MSI exigirá a parte do leão em toda a renda que o Corinthians gerar durante 10 anos. (B) Em troca do seu apoio o FMI exige do governo brasileiro uma fatia brutal da arrecadação pública, sob a rubrica de “superávit primário”, além do veto a políticas estratégicas de desenvolvimento, da venda de estatais, corte de investimentos públicos, corte de gastos com educação, saúde, etc.

3 – (A) O acordo a ser firmado com o MSI é de alçada da diretoria do Corinthians, que conta com a absoluta desconfiança, senão aberta hostilidade, de grande parte da torcida, especialmente os setores mais mobilizados, como a Gaviões da Fiel. (B) Os acordos com o FMI, assim como a ALCA, OMC e outras siglas sinistras, são firmados nas altas cúpulas da diplomacia e da tecnocracia do governo. Não estão sujeitos a confirmação por meio de plebiscito ou consulta popular, como seria de direito. Não são na verdade nem sequer expostos ao povo, como se não lhes dissessem respeito. Como se o famigerado “superávit primário” não fosse produzido pelo trabalho, pelo sangue, suor e lágrimas da grande massa do povo brasileiro.

4 – (A) O dado mais importane da questão, porém, é que o Corinthians, assim como o conjunto dos clubes do futebol brasileiro, não precisa do dinheiro sujo do MSI. Qualquer clube de massa do Brasil pode viver da renda gerada por sua torcida. Basta que a administração seja transparente. Afinal, a matéria-prima do futebol, o jogador brasileiro, continua sendo o de melhor qualidade no mundo. E o combustível do futebol, a paixão do torcedor, especialmente no caso de uma torcida como a do Corinthians, continua sendo suficiente para impulsionar o clube a qualquer conquista. Basta que haja planejamento. (B) Assim como o Corinthians, o Brasil também não precisa do FMI. O país tem recursos mais do que suficentes para se desenvolver sem os grilhões da dependência externa. O Brasil tem a seu alcance a possibilidade de fazer do seu território e da sua população o fundamento para um salto qualitativo no seu desenvolvimento. O Brasil possui condições únicas no mundo para liderar a transição do padrão energético dos combustíveis fósseis para o das energias alternativas, renováveis e sustentáveis (hidrelétrica, eólica, solar, biomassa, álcool, etc.). E esse é apenas o primeiro dos exemplos.

O Brasil possui ainda condições privilegiadas para liderar o mercado de agricultura e pecuária orgânica, extrativismo sustentável e farmacopéia ecológica. Possui as maiores fronteiras agrícolas do mundo, a espera de serem racionalmente aproveitadas por uma agricultura familiar, comunitária, cooperativa, orgânica, ecológica e sustentável. Possui o maior foco de inovação social e política no mundo, o MST, comprometido exatamente com esse modelo criativo de economia do setor primário, o único capaz de romper o círculo vicioso do nosso desenvolvimento bloqueado.

Possui com isso as ferramentas para escapar das corporações do agro-negócio, com sua agricultura predatória intensiva em agrotóxicos, pesticidas e transgênicos, versão reciclada das monoculturas coloniais de exportação. O Brasil pode, por meio de uma reforma agrária maciça, com ocupação coletiva do solo, criar um gigantesco mercado interno, gerando milhões de empregos e de consumidores. De quebra, pode com isso esvaziar as grandes cidades, com todos os efeitos colaterais positivos que isso representa para a qualidade da vida urbana.

O Brasil possui instrumentos como o BNDES, o Banco do Brasil, a Petrobrás, a Embrapa, com capilaridade em todo o território nacional e competência técnica nos respectivos campos para realizar as articulações desse mercado interno em torno de um projeto estratégico e autônomo de desenvolvimento nacional.

Tudo isso ainda sem mencionar o potencial também gigantesco de atividades suplementares, como o turismo (praias, florestas, pantanal, etc.), que ainda não foi sequer arranhado, em face de suas possibilidades de aproveitamento profissional. Possui ainda uma indústria cultural a ser construída sobre as bases de uma cultura riquíssima (músicas, danças, festas, comidas, bebidas, trajes, teatro, cinema, televisão, literatura). Dentre essas atividades suplementares, existe também o esporte, onde, além do exemplo do futebol, há todo um potencial a ser profissionalmente trabalhado no campo dos chamados esportes amadores. Basta lembrar das Olimpíadas, onde a cada edição pipocam casos de sucesso no atletismo, judô, natação, iatismo, e agora, ginástica olímpica, que apesar de todo o descaso público, realizam performances dignas.

5 – (A) No quadro de um modelo alternativo para o futebol, o esporte brasileiro poderia finalmente demonstrar todo o seu potencial como força econômica. Um campeonato brasileiro bem organizado poderia ser a verdadeira NBA do futebol mundial. A fórmula de disputa em pontos corridos parece porém ter chegado tarde demais, com pelo menos 10 anos de atraso. O doente está na UTI e talvez já esteja para além de qualquer ajuda. Serão necessários ainda vários anos para que o campeonato chegue ao número razoável de 18 ou 20 times, e para que esse calendário racional dê resultados na profissionalização da gestão dos clubes.

Ao invés de enfrentarem a tarefa da profissionalização, porém, os dirigentes do futebol brasileiro, como os do Corinthians, estão vendendo o clube. Ao invés de vender o espetáculo, estão vendendo os artistas. Evidentemente, a profissionalização só pode ocorrer quando for banida a atual casta dos pré-históricos dirigentes coronelistas e vitalícios do futebol, que enriquecem enquanto seus clubes se afundam em dívidas milionárias e os times se desfazem a qualquer aceno de dinheiro estrangeiro aos jogadores.

(B) Se há uma casta reacionária empreendendo o metódico suicídio do futebol brasileiro, também o há no topo da política nacional. Todas aquelas propostas de desenvolvimento, como reforma agrária, incremento do mercado interno, difusão do crédito na sociedade, esbarram na oposição maciça de uma pseudo-elite reacionária. Contra qualquer proposta de alternativa, essa classe esbraveja por meio de seus bem-pensantes e bem pagos lacaios da mídia, vomitando dogmas do tipo “a propriedade é sagrada”, “exportar ou morrer”, “controle dos gastos públicos”.

Tudo está invertido. Controla-se o que o governa gasta com o povo (saúde, educação, segurança, etc.), mas não se controla sua dívida com os agiotas estrangeiros. O governo pode emprestar o quanto quiser para banqueiros e para as mais do que suspeitas “parcerias público-privadas”, mas não pode emprestar para o povo.

Essa classe dominante míope, radicalmente divorciada do povo, no poder desde as Capitanias

Hereditárias, continua servilmente prestando vassalagem às cortes e FMIs estrangeiros. Taticamente, essa pseudo-elite fóssil pode se dar ares de modernidade e democracia assimilando no governo partidos que vieram da oposição. Mas esse partido precisa, para sequer ter chances de participar do jogo, assinar o regulamento já traçado. O figurino já está dado e é preciso dançar conforme a música.

O governo do PT finge que está sendo muito “moderno” e assina os tais acordos e se compromete até o pescoço com o núcleo da política anti-nacional dos governos anteriores. Do mesmo modo que a diretoria do Corinthians finge que está sendo muito moderna e busca “parcerias” no exterior. Se não há um projeto estratégico de desenvolvimento no país nos moldes daquilo que especulamos acima, também não o há no futebol. Se o futebol está buscando suas saídas em espúrias associações com “parceiros” estrangeiros, a gestão estratégica dos rumos do país está também reduzida a uma política econômica monomaníaca, com fixação em taxa de juros. O Corinthians está hipotecando sua camisa e sua tradição, do mesmo modo que os dirigentes do país estão hipotecando nosso futuro às metas do FMI.

Assim como o espetáculo do futebol-arte brasileiro agora está sendo jogado nos gramados da Europa, o espetáculo do crescimento da economia brasileira continua sendo uma ficção estatística contabilizada nos balanços do cassino financeiro globalizado.
O futebol imita a vida ou a vida imita o futebol?

Daniel M. Delfino

14/11/2004

Nenhum comentário: