28.5.07

Debate sobre os filmes da campanha de Lula em 2002 - Parte I - Apresentação dos filmes




No dia 22/11/2004 o Departamento de Antropologia da FFLCH-USP projetou numa sessão dupla a pré-estréia dos documentários “Entreatos”, de João Moreira Salles e “Peões”, de Eduardo Coutinho, seguida de um debate com os diretores. Os dois filmes têm como tema a eleição de Lulla em 2002. “Entreatos”, como seu nome diz, trata dos bastidores da campanha eleitoral do então candidato do PT, entre 25/09 e 27/10/2002. “Peões” também foi filmado nessa mesma época, mas nele a eleição e a trajetória de Lulla são apenas um pano de fundo, pois o seu conteúdo é feito de depoimentos de grevistas de 1979-80, que refletem sobre suas vidas.

Registram-se a seguir os principais pontos discutidos no debate.

Antes da discussão com os cineastas, o professor José de Souza Martins fez uma rápida apresentação do pano de fundo sócio-histórico que permeou a ascensão do sindicalismo de Lulla e do PT no cenário do pólo industrial e operário do ABC paulista. De acordo com o professor, no período de formação de Lulla convergiram três tendências: o trabalhismo getulista, o sindicalismo do “partidão” (PC do B) e a teologia da libertação, que fez a ponte entre os outros dois. As três tendências encontraram maneiras de conviver dentro do ambiente sindical e de sobreviver ao longo da ditadura, combatendo-se e assimilando-se umas às outras, em parte se desvirtuando e em parte mantendo suas características.

O crescimento da importância sócio-política da classe operária no Brasil se deu numa conjuntura histórica favorável de crescimento econômico impulsionado pelos militares. O crescimento da época do chamado “milagre” brasileiro foi sustentado pela indústria de bens de consumo duráveis. Basicamente, as montadoras de automóveis do ABC. Dada a estreiteza da base de consumo desse tipo de produto, o ciclo de crescimento assim estruturado carecia de fôlego para se sustentar a longo prazo, sem uma expansão do mercado consumidor interno. Devido a essa base limitada, o ciclo tendia a se esgotar por si mesmo, como de fato aconteceu. O impulso de crescimento cessou. Aquela conjuntura da época da ditadura não existe mais.

A indústria automobilística continua sendo o principal motor da economia brasileira, mas com uma ocupação cada vez mais reduzida de mão-de-obra. A própria profissão de Lulla não existe mais, tendo sido substituída por máquinas e robôs. O impulso que deu origem à Lulla e ao PT já se esgotou e teve de certo modo na eleição do próprio Lulla o seu auge.

Em seguida a essa introdução, os cineastas fizeram uma apresentação de seus trabalhos. De acordo com essa apresentação os dois filmes se mostram complementares em sua temática porque isso foi de fato pensado desde o início de sua execução. Foram planejados em conjunto, com base numa divisão de trabalho entre os dois cineastas, conforme a especialidade e o estilo de cada um. Os dois filmes narram implicitamente a trajetória de Lulla, mas cada um a aborda de uma maneira diferente e oblíqua. O foco de João Moreira Salles é a campanha eleitoral de 2002, não o conjunto da história de Lulla ou do PT. O foco de Eduardo Coutinho é ainda mais transversal, pois está no depoimento dos trabalhadores que eram companheiros de Lulla por ocasião das greves que este liderou em 1979-1980.

João Moreira Salles, sempre mais loquaz, articulado e diplomático, considera bastante significativo o fato de que Lulla aceitou o projeto de ter sua campanha filmada por alguém com quem não tinha nenhum contato. Ainda mais significativo é o fato de os dois terem origens de classe as mais divergentes possíveis. Lulla é operário. J. M. Salles é filho de banqueiros, da família que controla o Unibanco, um dos maiores bancos brasileiros. Os dois não tinham qualquer contato anterior, mas Lulla aceitou o risco de ter sua campanha filmada e de que o material pudesse ser usado pelo adversário de campanha. Segundo J. M. Salles esse risco foi aceito com base na confiança que ambos tinham de que essa campanha seria vitoriosa e de que isso representava um fato histórico relevante, que merecia ser registrado.

Eduardo Coutinho, mais arisco porém mais engraçado, destacou, em tom de queixa bem humorada, que não há uma obra escrita que sirva de referência sobre as greves do ABC, obra que seria tarefa da Universidade realizar. O principal aspecto destacado por Coutinho em relação a seu filme é o fato de que os grevistas de 1979-80 são operários de 1ª. geração, que vieram direto da roça. A grande maioria dos grevistas não tinha qualquer experiência anterior de luta sindical ou de qualquer movimento social. Para aquela geração, a mudança de suas vidas não passava apenas pelo percurso de conseguir um emprego na cidade grande, mas pela ação coletiva de transformação das condições de existência social. Não se deixaram simplesmente adestrar pela disciplina de trabalho capitalista, mas foram além e desenvolveram a consciência de sua capacidade de ação coletiva.

Depois da apresentação dos filmes pelos cineastas, foram feitas várias rodadas de perguntas, das quais se apresenta aqui uma condensação. Evidentemente, não se tratava de um debate sobre o governo Lulla. Os cineastas não se propuseram a isso. Apresentaram-se como artistas independentes que são e nessa qualidade esperavam ser questionados. Não lhes cabia defender ou criticar o governo Lulla. Tampouco a própria realização dos filmes pode ser atribuída a uma ou outra intenção. A possível relação entre os filmes e o governo Lulla é debatida em outro texto desta série. Neste momento restringimo-nos aos aspectos técnicos e estéticos dos dois documentários.

A grande questão que inquietava o público e que surgiu e ressurgiu em vários momentos do debate, principalmente em relação a “Entreatos”, foi a seguinte: até que ponto os personagens são verdadeiros? Até que ponto Lulla está encenando um personagem e até que ponto está sendo “ele mesmo”? Lulla está encenando o tempo todo ou não? Trata-se de um tipo de questionamento “impaciente”, que não quer considerar o filme em si mas os aspectos de sua produção.

A produção de um documentário como “Entreatos” implica uma relação de confiança. Lulla não permitiria que qualquer equipe tivesse acesso às imagens que João Moreira Salles teve, é a suposição da platéia. Desse ponto de vista, permanece em aberto a questão de saber se o diretor, em retribuição à confiança nele depositada, teria se autocensurado e produzido um filme favorável ao seu objeto. Será que os fatos mais relevantes nos entreatos da campanha teriam sido de fato registrados?

Esse tipo de questionamento atacava diretamente a própria credibilidade dos cineastas enquanto artistas independentes. João Moreira Salles respondeu com bastante elegância e manteve a discussão nos aspectos técnicos e estéticos dos documentários. A resposta à inquietante questão foi de que não existe personagem verdadeiro. Qualquer câmera estimula a representação. Não há algo como uma “câmera natural”. Não há como saber como Lulla seria sem a presença da câmera. Não há meio de saber como seria o comportamento de uma pessoa sem que haja uma câmera para filmá-lo. E havendo câmera, há encenação. A menos que Lulla não soubesse da presença da câmera. O que seria no mínimo eticamente questionável, além de fugir totalmente da natureza de um documentário. Tratar-se-ia de espionagem, não de cinema.

J. M. Salles nos lembra uma cena fundamental de “Entreatos”. Em determinado momento José Dirceu quer saber quem é a equipe que está filmando a reunião. Se é uma equipe da campanha de Duda Mendonça ou a quem está subordinada. Aquela equipe não pode ver tudo. Aquela reunião não podia ser filmada. Desse modo, ficamos sabendo através do próprio documentário que, se houvesse alguma coisa considerada imprópria de ser filmada, a equipe da campanha teria impedido o acesso da filmagem.

Algo como um potencial financiador de campanha indo propor negociatas escusas, oferecendo dinheiro em troca de favores do futuro governo; algo desse tipo permanece sendo uma eterna suposição de quem não tem acesso aos bastidores “reais” de uma campanha. Não é o objetivo de um documentário como “Entreatos” surpreender uma suposta cena “picante” como essa. Logo, as 240 horas de gravação não reproduzem 100% da campanha. A propósito, o cineasta lembra que o material bruto de onde saiu “Entreatos” estará futuramente à disposição dos pesquisadores interessados, talvez ali mesmo na própria USP.

J. M. Salles está consciente de que o filme tal como foi editado agrada ou desagrada conforme a posição de classe do espectador. Segundo ele o próprio Lulla não vai gostar do filme, porque não retrata o seu acolhimento pelas massas. “Entreatos” apresenta apenas cenas internas, “íntimas” da campanha, sem tomadas externas espetaculares. O filme foi pensado com esse objetivo minimalista. Mas é claro, não se tratava de retratar a intimidade num estilo “Big Brother”.

O interesse estava no personagem Lulla. E sobre esse personagem se diz, entre outras coisas, que está sempre bem humorado, o que é algo digno de se destacar numa cansativa maratona eleitoral. Pareceu surgir uma espécie de consenso no sentido de que o Lulla de 2002 é a “verdade” do Lulla de 1978. Ele teria sido sempre simpático e conciliador. Apenas por acidente ou incompetência colou-se-lhe uma imagem de opositor “radical” e raivoso. A questão foi assim explicitada: Lulla sempre foi conciliador, mas não sabia se marquetear? Na opinião de Salles, sim, Lulla sempre foi o que é agora, um conciliador. É um bom sinal o fato de que ele tenha permitido a feição do filme. Com a eleição, o mal-entendido foi desfeito. Ou, uma vez que o mal-entendido foi desfeito, tornou-se possível a eleição.

O cineasta avalia a trajetória de Lulla como uma regressão de 1980 a 1989, uma descaracterização que o teria afastado de sua essência. Depois disso temos uma volta à origem de 1989 a 2002, que teria devolvido Lulla à sua natureza afável, o que seria positivo. Evidentemente, trata-se do ponto de vista de um banqueiro. Que vive de cinema, é claro, mas ainda assim um banqueiro.

A respeito de “Peões”, tivemos mais elogios do que perguntas, mais empolgação do que questionamento, mais comoção do que análise. Não que o filme seja puramente emocional, mas o seu aspecto mais relevante acabou sendo a inevitável simpatia despertada por seus “personagens”. É curioso como, para uma certa intelectualidade “esclarecida” ali presente, o povo brasileiro ainda é desconhecido. O desconhecimento explica a surpresa de todos com a insuperável verve desse povo brasileiro mais uma vez redescoberto pelo cinema. A surpresa de quem parece não viver no mesmo país e para quem o fascínio desse povo ainda é novidade.

Mas é claro que nem tudo são flores na recepção aos “Peões”. Foi mencionada a mesquinha tentativa da grande imprensa de partidarizar grosseiramente o debate sobre o documentário. Trata-se da Folha de São Paulo, notória trincheira do tucanato ressentido, que quis de alguma maneira jogar areia no ventilador. A Folha tentou criar a sensação de que houve cenas prejudiciais a Lulla que teriam sido cortadas. Mais exatamente, o depoimento de uma das personagens que menciona a proverbial inclinação etílica do companheiro Luís Inácio. Inclinação esta que, por obra do infame Larry Rother (a quem a Folha talvez considere modelo de jornalismo), já é mundialmente conhecida, portanto não teria mais danos a causar.

Mesmo assim, quiz-se insinuar que este depoimento foi cortado por ser politicamente inconveniente, reprovando-se o cineasta por ter “censurado” seu próprio filme e indispondo-o com uma de suas entrevistadas. Como se o diretor não houvesse editado outros 29 depoimentos filmados para chegar ao formato final do filme. Como se não lhe coubesse autonomia criativa para avaliar a adequação estética de seu próprio trabalho. O diretor explica que a personagem em questão simplesmente destoava do perfil do filme e discrepava da proposta geral. A menção às bebedeiras de Lulla seria o menor dos motivos para editar qualquer uma das falas.

De qualquer maneira, o estrago já está feito. Há o risco de que o debate sobre essa personagem censurada prejudique a recepção do documentário. Mas para o cineasta, o episódio já está superado. Veterano do ramo, Eduardo Coutinho conhece os riscos do ofício de se filmar a realidade e mostra-se tranqüilo com a perspectiva de sua criatura caminhar com suas próprias pernas. Bem-humorado, ele diz que nunca volta à “cena do crime”. Seja por um mau motivo como esse ou por um bom. Por isso, ainda não sabemos se a faxineira Zélia viu o filme que ajudou a salvar...

Daniel M. Delfino

23/11/2004

P.S. Filmes comentados:

Nome original: Entreatos
Produção: Brasil
Ano: 2004
Idiomas: Português
Diretor: João Moreira Salles
Roteiro:
Elenco: Lula, José Dirceu
Gênero: documentário

Nome original: Peões
Produção: Brasil
Ano: 2004
Idiomas: Português
Diretor: Eduardo Coutinho
Roteiro:
Elenco: Maria Socorro Morais Alves, José Alves Bezerra, Zacarias Feitosa de Morais
Gênero: documentário

Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

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