31.5.07

Democracia (ditadura) burguesa e ditadura (democracia) do proletariado




Parâmetros objetivos da alternativa socialista

Um dos artifícios mais eficientes que colaboram para a manutenção da ordem estabelecida é a inversão do ônus da prova da viabilidade das alternativas disponíveis. Graças aos bons ofícios dessa inversão, a ordem estabelecida não precisa provar sua viabilidade, uma vez que já está instalada e “funcionando”. O ônus recai indevidamente sobre a alternativa antagônica, o projeto socialista, na tentativa fraudulenta de confiná-lo eternamente a uma posição de falsa inferioridade.

O socialismo deve sim provar sua viabilidade por meio da instituição de novas mediações organizativas que coloquem as funções materiais da produção a serviço dos indivíduos sociais. Entretanto, ele deve se provar viável em relação aos seus próprios termos de referência, ou seja, tendo em vista a necessidade premente de organizar racionalmente a produção social com vistas ao atendimento das necessidades humanas e à realização dos indivíduos.

Isso só pode ser feito equacionando o tempo de trabalho socialmente necessário para atender a essas necessidades (historicamente variáveis e crescentemente complexificadas) com base no parâmetro da capacidade técnico-científica objetivamente disponível (também sempre em crescimento), na mensuração dos recursos naturais e materiais utilizáveis e da sustentabilidade ambiental de tais atividades (em escala necessariamente planetária); bem como tendo em vista o aspecto vital da gratificação humana na atividade auto-reprodutiva.

Em outras palavras, trata-se de calcular o quanto cada ser humano deve trabalhar para que todos recebam o necessário para sua sobrevivência, de modo que cada um esteja objetivamente comprometido com todos e vice-versa. É preciso também que as condições naturais e ambientais suportem uma taxa de utilização dos recursos capaz de assegurar sua renovação indefinida, de modo que o intercâmbio homem-natureza possa se repor perpetuamente. Essa medida da quantidade de trabalho, por sua vez, deve ser permanentemente ajustada para baixo pela meta de um desenvolvimento tecnológico que reduza as horas de trabalho-necessário para a reprodução social. A redução do tempo de trabalho social necessário permitirá a todos cada vez mais horas de trabalho-criativo em atividades como ciência, arte, esporte, ócio, sexo, etc.

O próprio capitalismo não atende sequer minimamente a nenhum desses critérios, e no entanto arroga-se a posição de impor o ônus da prova ao seu antagonista. Esse fenômeno caracteriza a época em que uma determinada ordem social já está paralisada em seu desenvolvimento, não oferecendo mais nenhuma possibilidade positiva para a humanidade, mas a alternativa organizativa que luta para se desenvolver em seu interior ainda não possui forças para superá-la por inteiro, sendo tolhida em seus movimentos pelas teias ideológicas da inércia histórica.

A esfera da política

Aqui examina-se apenas um dos aspectos dessa teia inercial, que diz respeito ao universo da política. A dimensão da política oferece um exemplo particularmente ilustrativo dessa peculiar inversão. Para que a inversão seja possível, é preciso que a esfera da política seja destacada artificialmente do conjunto das relações sociais pelas quais os homens reproduzem sua existência. Uma vez destacada unilateralmente, a política aparece como uma esfera autônoma, dotada de legalidade própria supostamente independente e desvinculada dos demais processos da reprodução social.

No mundo da política abstrata, é possível por exemplo criar um falso debate sobre “democracia”. Falso porque nunca atinge a dimensão substantiva das relações concretas, limitando-se aos aspectos formais. Estabelece-se uma escala de medida entre os regimes políticos com base no critério de qual deles é “mais democrático”. E o que se entende por “mais democrático” diz respeito apenas à quantidade de eleitores habilitados a votar.

A democracia é considerada com justiça a grande contribuição da burguesia revolucionária para a história da humanidade. Não por acaso, durante o século XIX, século de luta pela democratização das sociedades européias, a democracia tinha sobrenome. Era chamada de “democracia burguesa”, e com razão. A democracia burguesa consistia na possibilidade de os cidadãos elegerem os governantes, que antes eram hereditários. Entretanto, esses cidadãos que elegiam os governantes não eram o conjunto da sociedade. A democracia burguesa nasce restrita à própria burguesia, pois funcionava por meio do voto censitário. Apenas os burgueses votavam, ou seja, apenas os detentores de propriedade.

A luta pela universalização da democracia é uma luta do século XX. Foi apenas então que a democracia burguesa se tornou mais abrangente, por meio do sufrágio universal. O direito de votar, antes exclusivo dos proprietários, foi estendido também aos trabalhadores, às mulheres, aos analfabetos, aos jovens, etc. O critério de democracia passou a ser não apenas a existência de governos eleitos, mas a vigência do sufrágio universal. A prática do sufrágio universal estendeu-se da Europa para o mundo em algumas décadas.

Entretanto, a democracia burguesa deixou de ser burguesa por isso? O acesso à possibilidade de votar melhorou substantivamente a vida dos trabalhadores, das mulheres, dos analfabetos, dos jovens? Uma olhada mesmo que superficial na história do catastrófico século XX mostraria que essas camadas sociais somente conseguiram algumas limitadas melhorias por meios extra-eleitorais (extra-democráticos?): greves, mobilizações de massa, ações diretas, revoluções, guerras civis, etc.; sendo obrigadas a deixar pelo caminho um rastro de sangue e fieiras de mártires.

Sem sair ainda dessa esfera artificial da política abstrata, é preciso considerar o fato de que, embora os trabalhadores, mulheres, negros, analfabetos, etc., tivessem obtido com muita luta o direito de votar (e alguns outros direitos), invariavelmente, continuaram a ser eleitos os mesmo governantes, ou seja, os burgueses. Seria preciso adicionar então o seguinte questionamento: porque as pessoas das camadas inferiores, ao adquirir o direito de votar, não votam em candidatos de sua posição social? Supondo-se que isso fosse o suficiente para que melhorassem suas vidas (ver-se-á que não é), a democracia burguesa teria assim proporcionado o veículo adequado para a emancipação das massas.

Com base nessa suposição, estruturou-se o discurso da “democracia como valor universal”. A vigência da democracia burguesa passou a ser considerada o parâmetro decisivo para avaliar os regimes políticos. Os regimes em que o povo elege seus governantes são bons; aqueles em que não há eleições são ruins. O primarismo de um tal discurso revela a inutilidade do debate fundado sobre a unilateralização das diversas esferas de atividade humana. Tomado individualmente, nenhum aspecto da condição humana (política, economia, cultura, moral) oferece a via exclusiva para a emancipação social. Desconhecer a sua articulação dialética oferece sim o caminho certo para a catástrofe. O simples fato de promover eleições não tornou os países capitalistas melhores, assim como o simples fato de haver expropriado a burguesia não transformou os países stalinistas em sociedades socialistas.

Promover eleições e extinguir a propriedade privada dos meios de produção são medidas que enfrentam unidimensionalmente partes determinadas do problema, mas estão longe de ser a garantia para a emancipação humana. Tratam de aspectos limitados e parciais de uma realidade muito mais complexa A verdadeira garantia da emancipação está na democratização substantiva da vida social, o que vai muito além da universalização formal da democracia burguesa (e de passagem, também compreende a expropriação da burguesia).

O lugar das classes na política

Na esfera substantiva de sua auto-produção, os homens não se apresentam como eleitores abstratos, mas como membros de classes sociais. Há proprietários de meios de produção (burgueses) e não-proprietários obrigados a vender sua força de trabalho (proletários). As classes fundamentais da sociedade capitalista são os eixos estruturadores das alternativas em disputa, em torno dos quais giram as demais classes (pequena-burguesia, campesinato, etc.).

O discurso que transforma indivíduos concretos, ou seja, burgueses e proletários, em seres abstratos (cidadãos, eleitores) dissolve artificialmente as diferenças entre eles e forja uma falsa igualdade. No mundo capitalista, todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros. Por mais que todos possam votar, somente alguns podem se eleger. Somente alguns possuem o dinheiro para bancar campanhas eleitorais, ou arrecadam o dinheiro em troca de favores a serem prestados quando estiverem no governo. E sejam quais forem os eleitos, os pressupostos da ordem estabelecida jamais são questionados. A propriedade privada permanece um dogma intocável. Os bancos, os latifúndios, as megacorporações jamais serão incomodados.

A democracia burguesa concede formalmente a liberdade de expressão para que os socialistas defendam o fim da propriedade privada. Entretanto, a massa dos eleitores assimila essa idéia de forma brutalmente distorcida, como se se tratasse da expropriação de seus bens pessoais, e não dos meios de produção social. E assim, os eleitores das camadas inferiores seguem votando nos candidatos da burguesia, ainda que isso contrarie seus próprios interesses de classe. Torna-se mesmo indiferente que os candidatos da burguesia sejam egressos das camadas inferiores da população. O simples fato de ter eleito um operário não melhorou a vida dos brasileiros. Tornou-os ainda mais submissos aos bancos, aos interesses do latifúndio e das megacorporações.

Democracia formal e transformações substantivas

Praticar eleições sem que se possa optar de fato por alternativas sociais substantivamente diferenciadas equivale a perpetuar a ditadura de uma classe sobre as demais. Nada pode ser mais conveniente do que exercer uma ditadura por meio da “democracia”. Basta retirar o seu sobrenome. Encolher as palavras, ensinou Orwell, é uma maneira de encolher o pensamento e a liberdade. Ao invés do nome próprio da democracia burguesa, o dicionário de novilíngua vigente registra apenas “democracia”.

Esse é o segredo da inversão mencionada no início deste texto: fazer com que a democracia burguesa, com todas as suas brutais limitações, seja fraudulentamente designada como se fosse a democracia enquanto tal. Desse modo, a democracia concreta, que vai além do aspecto formal e procura emancipar os homens em todas as suas dimensões vitais, dando-lhe o controle total sobre o trabalho, as leis, a cultura, a moral, etc., fica permanentemente inviabilizada. A democracia burguesa, ou seja, a ditadura da burguesia, é o inverso da democracia real e um dos obstáculos para sua realização.

Contra a ditadura de uma classe, há que se contrapor a ausência de classes, o fim da separação entre dirigentes e dirigidos, o auto-governo dos produtores associados, a democracia direta por local de trabalho. É evidente que isso não pode ser obtido sem enfrentar a resistência dos que são beneficiados pela situação anterior. Para que essa resistência seja dissolvida, é preciso que o movimento dos produtores associados se torne uma força material, projetando em seu interior as relações que deverão reger a sociedade futura a ser construída. Somente a práxis auto-transformadora pode ensejar a transformação geral.

Um dos aspectos da transformação geral é a destruição do poder político como tal. Essa destruição só pode ser feita por um anti-poder transicional. Esse projeto tem um nome. Mas esse nome também está interditado pela ideologia dominante: ditadura do proletariado. Não importa a questão de conteúdo, ou seja, o fato de que essa ditadura é a única forma de democracia verdadeira, porque toma em consideração não o homem abstrato, o indivíduo-cidadão-eleitor, mas o homem concreto, que produz e se auto-produz na sua atividade material-espiritual cotidiana, o indivíduo social que não tem nenhuma de suas dimensões de objetivação (política, econômica, cultural) fatalmente apartada de si, mas as exerce por inteiro, coletiva e responsavelmente.

Importam apenas as aparências: democracia = bom / ditadura = ruim. Mas o que é democracia e o que é ditadura? Democracia de quem e para quem? Ditadura de quem e sobre quem? É impossível responder a tais questões no universo da ordem estabelecida. A multidimensionalidade das categorias sociais é dissolvida numa linearidade abstrata e vazia, na qual não há camadas nem rupturas, não há profundidade nem contradição. Todas as palavras dotadas de conotação positiva são apanágio da ordem: democracia, liberdade, realismo, responsabilidade, viabilidade, possibilidade; as palavras negativas são o estigma dos contestadores: ditadura, revolução, anarquia, caos, luta de classes.

Democracia e luta revolucionária

Não há palavrão mais feio do que esse, ditadura do proletariado, um nome que parece ter sumido da boca de muitos dos que se colocavam entre os contestadores. “Santa ingenuidade, Marx! Por que você foi inventar essa tal de ‘ditadura do proletariado’”?, eles parecem dizer, envergonhados. Para desgosto do nosso menino-prodígio, Marx, que não viveu na era do duplipensar, cultivava o embaraçoso hábito chamar as coisas pelo seu nome. Como nunca nutriu esperanças na democracia burguesa, não fazia do uso da palavra “democracia” um fetiche (um “valor universal)”, mas lutava para que a democracia se construísse na esfera da prática, para além do simples discurso. E essa construção somente seria possível justamente através da ditadura do proletariado.

Homem de vasta cultura clássica, Marx sabia que a ditadura era uma instituição típica da democracia da Roma republicana, que investia seus generais e tribunos de poderes absolutos em situações de emergência, sem que isso degenerasse em tirania, pois esse poder era devolvido logo que cessasse a emergência. A ditadura do proletariado só é necessária em face da necessidade emergencial de quebrar a máquina do Estado burguês, como ficou evidenciado no exemplo pioneiro da Comuna de Paris. Além de erudito, Marx também era bastante prático e a partir da experiência da Comuna, à qual apoiou ativamente, desenvolveu o conceito de ditadura do proletariado, descrevendo-o como um dos momentos do processo da revolução, ponto alto da luta de classes.

Luta de classes, revolução, ditadura do proletariado, tais conceitos são hoje tidos como verdadeiros palavrões, mesmo entre setores que se dizem de “esquerda”. Os conceitos perderam seu sentido e se transformaram no seu contrário. Quem fala em luta de classes e denuncia a repressão burguesa por suas vítimas é acusado de “provocar a luta de classes”, quem fala em revolução é acusado de utópico e irresponsável, quem fala em ditadura do proletariado é acusado de anti-democrático. Na era da “democracia (ditadura burguesa) como valor universal”, a “ditadura (democracia) do proletariado” é tida como sinônimo de terror stalinista.

Nesse diálogo de surdos, em que não se pode chamar as coisas pelo seu nome, o ônus da prova recai pois, de maneira invertida, sobre o projeto socialista. É preciso recusar essa inversão e trabalhar com os conceitos em seu verdadeiro significado. É preciso distinguir entre democracia formal e democracia material, denunciando a farsa da democracia representativa. É preciso lutar por uma democracia direta organizada por local de trabalho, por escola, por bairro, por cidade, em assembléias e plebiscitos regulares e abertos, que distribuam funções e mandatos revogáveis e instituam o controle social efetivo e permanente sobre o produto do trabalho social, dissolvendo a separação artificial e alienada entre economia e política.

É evidente que, aos olhos dos defensores da ordem estabelecida, da classe dominante, essa democracia direta, real e concreta, aparecerá como caos, anarquia, desordem, irresponsabilidade, violência, etc., pois será exercida contra seus interesses particularistas. Ao enfrentar-se com os interesses de classe, buscando a dissolução das classes, a democracia direta precisará impor-se pela força. Receberá o nome de ditadura, como se isso fosse uma acusação da qual se devesse ter vergonha. Pois que venha a ditadura do proletariado!

No atual momento histórico, tornou-se crucial retomar esse debate dentro da esquerda, pois não é questão de somenos importância determinar qual o método que se propõe como mediação para a transformação social. A demarcação que se impõe está em separar duas alternativas: a via morta da ditadura burguesa com sua “democracia” representativa ou formal; ou a via da democracia substantiva, real e concreta, materializada na ditadura do proletariado.

Daniel M. Delfino
12/04/2006

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