29.5.07

Eu lia a revista "Caros Amigos"




A mídia brasileira oscila miseravelmente entre o plebeísmo e o fascismo. As publicações de esquerda não sabem fazer outra coisa que não espernear contra o “golpe das elites” que tenta ignominiosamente “desestabilizar” nosso primeiro legítimo exemplo de “governo popular”. Raciocinam como se a extração social de Lulla fornecesse a absolvição imediata e inquestionável de todos os seus copiosos desvios e disparates. As publicações de direita, por sua vez, alegremente, sob pretexto desses mesmos desvios e disparates, em editoriais que transbordam de arrogância e humor negro auto-complacente, exigem o completo banimento de qualquer expressão ou intervenção das classes subalternas na política e na condução dos assuntos nacionais, às vezes dissimuladamente, às vezes em termos abertamente fascistas.

Tentar-se-á precisar neste artigo os limites do plebeísmo simplificador. Nos papiros seguintes, o alvo estará nos contornos desse fascismo latente.

Definimos aqui como plebeísmo o apego irracional de certos setores da intelectualidade de esquerda à pessoa de Lulla. Esse apego decorre de determinações históricas e sociológicas precisas discerníveis. A intelectualidade não é uma classe social, mas nasce de uma fração de classe, a pequena-burguesia, para a qual a carreira intelectual é uma das opções de vida possíveis. Já Lulla encarna o proletário clássico, o operário de fábrica. A adesão pessoal dos intelectuais plebeístas à figura de Lulla é uma espécie de “mea culpa” pelo “pecado” de terem nascido pequeno-burgueses. No contexto histórico da redemocratização, elle oferecia o conveniente exemplo material de um conceito meramente ideal, o do “povo” como protagonista da História. Para intelectuais em busca de um norte, o achado se afigurava tão auspicioso que não podia ser negado. Transformaram-se os erros em acertos, os vícios em virtudes, os limites em horizontes. Realizou-se uma adesão de tipo religioso, em torno de uma figura messiânica, tornada infalível. Nosso próprio Mandela, ou Gandhi.

Lulla se beneficia, adicionalmente, de uma somatória de fatores diversos que conspiram a seu favor para alinhavar um formidável processo de construção de imagem. Lulla é “o personagem” da segunda metade do século XX no Brasil. Colaboram para a construção desse personagem injunções transversais tais como a forma por excelência da cultura de massas no Brasil: a telenovela. Décadas de dramalhão amoldaram uma sensibilidade popular extremamente receptiva a conteúdos peculiares como a narrativa da extraordinária trajetória de vida de Lulla. Elle é o brasileiro típico, prototípico, arquetípico, migrante da seca, “self-made-man” às avessas (sindicalista e não empresário), “gente que faz”, uma história de sucesso, acima de tudo.

Sua mutação da luta social para a acomodação política paz-e-amor estava escrita nas estrelas (hollywoodianas) da estética Global, e nem acidentes de percurso como o malfadado Collor de Mello puderam impedir esse destino folhetinesco de se realizar. Apenas colaboraram para reforçar o estigma do homem persistente que não se deixa abater. O processo de mutação desdobrava-se sob os olhos de todos, entrementes, mas os traços do plebeísmo estavam tão solidamente sedimentados que a imagem do salvador da pátria tornara-se já (e ainda) indestrutível.

Essa identificação ainda rende dividendos na forma de apoio político incondicional em tempos de traição explícita, pois empresta uma sombra de credibilidade à pífia tese do “golpe das elites”. A maior expressão do plebeísmo se encontra na outrora combativa “Caros Amigos”. A revista “vestiu a camisa” do governo Lulla, no sentido futebolístico, tribal, da expressão. Para seus editores, quem se coloca pontualmente contra qualquer um dos projetos de Lulla está automaticamente alinhado na nefasta companhia da elite carcomida. Quem votou “não” no referendo do desarmamento cedeu vergonhosamente aos interesses mafiosos da “bancada da bala”, segundo a ótica da revista. Nessa ótica maniqueísta e unilateral não há nuances e diferenciações, não é possível ser de esquerda e ser contra Lulla.

Na edição no. 103, de 10/2005, o editorial desqualifica sumariamente o argumento de que “mesmo com a proibição, o comércio continuaria existindo, por meio do contrabando e do mercado negro, que são protegidos ‘pelas autoridades policiais’”. Esse argumento é chamado de estúpido porque significaria a inaceitável admissão da “falência das instituições”. O editorial se coloca, portanto, em defesa das instituições. Triste fim para essa publicação, erigir a defesa da ordem vigente como plataforma de legitimação de qualquer discurso e qualquer ação aceitáveis. As instituições já estão falidas. Não há mais chances de recuperá-las com um programa reformista de esquerda, e se houvesse, o PT teria jogado tais chances pela janela, pois está agindo na direção oposta, decompondo o Estado nacional com um programa de direita.

Uma coisa é exigir a ampliação da densidade quantitativa da atuação do Estado no campo das políticas sociais como educação, saúde, saneamento, habitação, transporte, cultura, lazer, etc., e no caso, segurança; exigência essa dotada de coerência lógica interna. Outra coisa é o fato de que uma tal ampliação quantitativa não dispensa uma necessária alteração qualitativa nos métodos e instrumentos dessas políticas sociais, fato que o pessoal da revista certamente não desconhece. No caso da segurança, por exemplo, não é qualquer polícia, ou a atual polícia, se estivesse adequadamente aparelhada, que iria acabar com a violência. Seria preciso criar uma polícia que tivesse o povo como aliado e não inimigo. Uma polícia que estivesse organicamente ligada às comunidades às quais prestaria serviço, atuando sob suas diretrizes e sua fiscalização. Para além da reconstrução quantitativa, uma mudança como essa representaria uma inversão qualitativa na política de segurança.

E uma terceira coisa, a mais importante no contexto histórico em que estamos inseridos, é o fato de que quaisquer inversões no foco das políticas de Estado, tanto quantitativas como qualitativas, exigem nada menos que a ruptura do atual modelo de Estado. E não só a ruptura do Estado, mas a do conjunto de relações sociometabólicas dentro das quais tal Estado desempenha a autoritária função de gendarme, garantindo a ordem pela força.

Os traços que subsistiram do raquítico Estado brasileiro já estão sendo implacavelmente destruídos pelo próprio governo Lulla. Nele já não resta mais nada do esqueleto esboçado ao longo de décadas por aqueles que alentavam a idéia, melancolicamente sepultada, de um projeto de nação. Na atual conjuntura histórica de recolonização neoliberal, qualquer projeto de nação viável passa necessariamente pela ruptura do Estado burguês neocolonial falido e pela construção de uma série de novas mediações auto-gestionárias de articulação do processo de reprodução material pautadas no projeto emancipatório de um novo tipo de sociabilidade. Um projeto de uma envergadura histórica tal que o PT, partido que de tão vendido já inscreveu até o superávit primário no seu programa, nem ousa cogitar.

Nem o PT ousa, nem tampouco os redatores da publicação que se constituiu em leitura de cabeceira de muitos de seus apoiadores formais, informais e subentendidos (figuras representativas do melhor do pensamento e da vida nacional que posavam lendo a revista para as fotos dos simpáticos e envolventes anúncios auto-congratulatórios sublinhados pela frase “Eu leio a Caros Amigos”), por mérito da credibilidade adquirida com o esforço heróico para “manter acesa a chama” nos últimos anos de dura luta nadando contra a maré. A ousadia morreu e levou consigo a esperança, que ficou com medo de encarar a tarefa da ruptura. Pior que a submissão aos projetos do governo Lulla, a revista capitulou ao Estado burguês (e aqui não nos referimos ao fato grave de a revista estar sendo sintomaticamente sustentada por anúncios publicitários institucionais patrocinados por órgãos das administrações federais, estaduais e municipais petistas), o que é muito mais grave como retrocesso histórico.

Incapaz de tirar as devidas conclusões do fracasso do projeto reformista-sem-reformas (ou reformista-de-contra-reformas) do PT, a revista insiste em afundar com o navio, abraçada ao mastro da desgastada bandeira da estrela vermelha. Para a “Caros Amigos”, a esquerda é Lulla, o resto é “gente ressentida, mascarada”. Na edição no. 100, de 07/2005, Marilene Felinto diz que, pior do que “...Os colunistas paus-mandados de O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Veja, Época e outras expressões do lixo em que vem se transformando o jornalismo”, só mesmo a “‘esquerda’ radical dos ‘partidos de esquerda’”. Segundo a colunista, que provavelmente se considera de esquerda sem aspas, essa “gente ressentida, mascarada” dos partidos de esquerda “bem que merecia – essa sim merecia – ser governada hoje por um misto do elitismo blasé de Fernando Henrique Cardoso com a pilantragem de Roberto Jefferson e uma pitada da excrescência do PFL cadavérico de ACM e sua versão cirurgia plástica: Jorge Bornhausen”.

Este escriba, que não tem procuração para defender os partidos de esquerda, mas não abre mão de tomar partido nessa discussão e localizar-se na mesma trincheira, considera-se no direito de perguntar: quem merece ser governado por Lulla, Palocci, Meirelles, et caterva? Quem merece os mais de R$ 100 bilhões por ano pagos aos agiotas de Wall Street? Quem merece o contingenciamento sistemático das verbas sociais? Quem merece os recessivos juros estratosféricos? Quem merece a (contra)Reforma da Previdência? Quem merece a (contra)Reforma sindical e a trabalhista? Quem merece a (contra)Reforma universitária? Quem merece o arrocho salarial? Quem merece o leilão das reservas de petróleo? Quem merece a devastação ecológica promovida pelo festejado agrobusiness? Quem merece os transgênicos? Quem merece os assassinatos de lideranças no campo? Quem merece o loteamento de cargos, o aparelhamento do Estado, o caixa 2, o mensalão, etc.?

Provavelmente o merecem os setores que acreditam piamente que esse governo está em disputa. Numa coisa eles têm razão: há uma disputa feroz pelos rumos do governo entre as diversas facções de lobistas, oligarcas, agiotas, oportunistas, rentistas, prestidigitadores, vigaristas, lúmpens, etc. Quem não quer entrar nessa disputa e tenta localizar-se na perspectiva dos setores populares em luta logo se dá conta de que o governo Lulla é tão inimigo dos trabalhadores como qualquer um dos governos burgueses anteriores.

Claro que a ação deletéria deste governo é muito mais nefasta pelo fato de que significativos setores da classe trabalhadora o viam como o “seu governo”. A aposta equivocada no projeto eleitoral cobra seu preço em despolitização e desmobilização das massas. Ao invés de educar politicamente o povo para assumir um papel protagonístico na sua própria história, o PT o desarmou por meio da esperança de melhorias a serem obtidas por meio da plataforma eleitoral. A traição subseqüente transforma a esperança desses setores em frustração, desânimo, desalento, conformismo, pessimismo. Esses sentimentos estão sendo eleitoralmente instrumentalizados pela direita, como seria de se esperar.

A crise tende a ser canalizada para o embate eleitoral de 2006, onde haverá uma polarização em torno de falsas questões, que estão longe de produzir o aprendizado e a mobilização necessárias para as verdadeiras mudanças. Especialmente quando tudo que a esquerda tem a oferecer para requentar o entusiasmo popular pelo “seu partido” é o tosco refrão do “golpe das elites”, ou nada que vá além do limitado horizonte institucional/eleitoral/reformista, condenado à frustração. Esperava-se mais.

Necessita-se urgentemente de algo mais.

Daniel M. Delfino
03/09/2005

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