8.5.07

Eu não sei fazer poesia, mas que se F$#@*!!”




“A juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante”. Esse profético verso de uma antiga canção dos Engenheiros do Havaí me veio à mente por ocasião de uma recente experiência estética e auditiva extremamente desagradável.

Observando a relação entre o governo Lula e a mídia (ver “Quem não tem colírio usa óculos escuros”), este escriba mencionou que não assiste televisão, nem lê jornais ou revistas, e que prefere trabalhar com informações de segunda mão, de fontes confiáveis, de quem assiste e de quem lê. Para o fim a que se destina este comentário, cumpre acrescentar que este escriba também não ouve rádio.

Não ouvir rádio, assim como não assistir televisão, significa que não se acompanha atentamente o que se passa nesses veículos. Isso não exclui o fato de que eventualmente, como qualquer ser deste planeta, animado ou inanimado, este escriba está exposto à televisão. E também ao rádio. Assim como estamos expostos à poluição, aos raios cósmicos, às enchentes, etc.. Há situações em que não há escapatória, nas quais acaba-se sendo obrigado a ouvir a música que outra pessoa escolheu.

A outra pessoa, no caso, é um executivo de gravadora, que por meio do expediente chamado “jabá”, paga às rádios para que toquem centenas de vezes por dia a música produzida nos tubos de ensaio de sua empresa, a gravadora. Por meio da repetição “ad nauseum” da mesma música, letras e melodias imprimem-se no cérebro das pessoas expostas, tendo como resultado uma espécie de condicionamento pavloviano (A respeito deste condicionamento, consulte-se o colega Flávio Calazans, devidamente habilitado em biopsicomidiologia e muito mais competente que este escriba para tratar do tema). Tal expediente, o jabá, faz com que milhões de pessoas adquiram CDs dessa música feita em linha de montagem.

Ocorre que, numa dessas situações em que involuntariamente somos expostos à escolha musical de outrem, aconteceu a tal experiência aditiva e estética extremamente desagradável. A banda Charlie Brown Jr. saiu-se com a seguinte pérola: “eu não sei fazer poesia, mas que se f$#@*!”, na “canção” intitulada “Eu não uso sapato”. O “verso” que diz “eu não sei fazer poesia, mas que se f$#@*!” destacou-se do restante da “composição”. Pois ao contrário do conjunto de frases desconexas que preenchem o conteúdo das “letras”, esta frase pareceu propor-se a ser um esforço de articulação racional de conceitos, na tentativa de enunciar uma espécie de “manifesto”.

Quando disse “eu não sei fazer poesia, mas que se f$#@*!”, o vocalista tentou dizer alguma coisa, embora evidentemente tenham lhe faltado os recursos expressivos para fazê-lo com propriedade. O que ele tentou dizer com essa frase é que “não preciso escrever letras de música com inteligência para fazer sucesso.” Tal raciocínio, enunciado tão pobremente naquela “canção”, padece de alguns equívocos os quais cumpre aqui assinalar.

Em primeiro lugar, esse pensamento confunde “poesia” e letra de música. A poesia é uma coisa, a letra de música é outra. Embora haja compositores que, por força de sua sensibilidade literária, alcem-se à condição de poetas, como um Vinícius de Moraes ou um Chico Buarque.

Não me atrevo a dizer que esse “verso” esteja tentando desqualificar Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski, Adélia Prado, Hilda Hilst, Mário Quintana, Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa, Castro Alves, Gregório de Matos, Camões, Dante etc., e toda a nobre linhagem que vem desde Homero. Não posso conceber que esse “verso” esteja jogando na lata de lixo a poesia enquanto tal. A arte que durante séculos foi o momento mais elevado da literatura, a mais refinada expressão do pensamento humano e de sua capacidade de descrever e dar sentido ao mundo interior e exterior, aos sentimentos e às coisas. Não, não me atrevo a conceber tal ousadia. A acusação é tão grave que anula a si mesma, pois para cometer um crime dessa gravidade seria preciso que o réu em questão, o “compositor” do “verso” infame, tivesse envergadura intelectual para saber o que é poesia, coisa que ele não tem. Restrinjo-me à suposição de que o autor esteja se referindo a letras de música.

Quando o “cantor” diz “eu não sei fazer poesia, mas que se f$#@*!”, fico a imaginar: “que se f$#@*!” quem? Quem, cara pálida? Que se f$#@*! a poesia? Será essa a intenção dessa frase? Nesse caso, por que a poesia há de ser f$#@*!? Pelo fato de que o “poeta” que “compôs” esse “verso” não sabe compor? A poesia será f$#@*! porque o “autor” decidiu não fazer poesia? Quando enuncia esta primorosa declaração, este “autor” deixa subentendido que, caso soubesse fazer poesia, ele a faria. Entretanto, ele não sabe. E nesse caso, cabe perguntar: será que a poesia está mesmo perdendo alguma coisa pelo fato de que esse “autor” decidiu que não precisa compor? Só de imaginar o tipo de “poesia” que este “poeta” alçaria de sua lira, tremo de medo.

Não, não quero acreditar que o “autor” desse “verso” esteja mandando a poesia se f$#@*! Talvez esteja confessando que ele próprio está f$#@*! Talvez ele esteja admitindo que, de fato, não sabe fazer poesia, que por causa disso está f$#@*!, mas tudo bem. Isso não é problema. Ele pode conviver com isso. Só temos a lamentar o fato de que este “autor” esteja abrindo mão da oportunidade de partilhar a imensa riqueza humana e os incomensuráveis tesouros de sensibilidade e sabedoria acumulados pelos venturosos séculos em que o fazer poético era mais valorizado. Azar o dele. Se está abrindo mão do prazer e da vitalidade proporcionados seja pelo hábito de ler, seja pelo de cultivar a verdadeira poesia, azar o dele. Está mesmo f$#@*!

Especulamos que o “verso” citado dirija-se aos compositores em particular, não aos poetas em geral. Prefiro acreditar que o “manifesto” se restringe ao universo das letras de música. Para tratar da segunda ordem de confusões ali expressa, é preciso desfazer um certo equívoco terminológico disseminado e consagrado pelo uso geral. Quando se diz “música”, em geral está se falando de uma “canção”. A música é uma composição que articula melodia, harmonia e ritmo. A música pode estar ou não acompanhada de letras. A música erudita geralmente é instrumental, mas pode eventualmente estar acompanhada de uma letra. Como a “Canção da Alegria”, composta pelo poeta Schiller para acompanhar a 9ª. Sinfonia de Beethoven.

Evidentemente, não é deste tipo de música que o “verso” de “Eu não uso sapato” está falando. Pelo menos, espero que não. Acredito que esteja falando do tipo de canção que as rádios veiculam por obra e graça do jabá com o objetivo de “fazer sucesso” e ganhar dinheiro. O tipo de canção designado como “música pop”. É dentro do contexto da “música pop” que esse “manifesto” deve ser apreciado. Mesmo porque, é dentro do universo da “música pop” que a atitude e a forma se tornam mais relevantes que o conteúdo.

O “verso” citado faz sentido na perspectiva de que, para fazer sucesso no universo da “música pop”, não é preciso qualquer elaboração intelectual. Desdobrado em prosa, o “verso” diria mais ou menos o seguinte: “Sim, eu não sei fazer poesia, eu sou um bárbaro, um tosco, um grosso, um bruto, um neandertal, mas isso não importa. Não importa porque sou eu que prendo e arrebento, eu que mando, eu que estou em todas as TVs e capas de revistas, eu que sou famoso e tenho dinheiro, eu que cato todas as menininhas. Sou eu e não esses idiotas que gostam dessa babaquice chamada poesia.”

Nessa época de sensibilidades embotadas, esse tipo de manifesto encontra ressonância e aceitação por parte de certa parcela do público jovem. O mais inacreditável no fenômeno explicitado por esse verso não é o simples fato de que ele tenha sido expresso, mas a assustadora constatação de que numa certa dimensão, ele tem razão. Essa “música” faz sucesso. Há jovens capazes de se identificar com a idéia de que a poesia é uma “babaquice”, assim como quaisquer coisas relativas à intelectualidade, e de que ninguém precisa disso para “se dar bem”.

Esticando ao máximo os limites da tolerância, é possível enxergar alguma dimensão “libertária” no pensamento que esse “verso” está tentando expressar. Uma tentativa ingênua e imediatista de “emancipação”, aspiração que constitui a própria essência do rock como gênero de música. Entretanto, mesmo nessa dimensão, esse “verso” constitui algo que não posso admitir. Que se criem bandas de rock para expressar o que quer que seja, para combater o sistema, para se emancipar dos pais, para fazer arte, para ser livre, para mudar o mundo, para “catar umas menininhas”, tudo isso é legítimo e admissível. Quem nunca usou camiseta do Iron Maiden, que atire a primeira pedra (mantenho algumas no meu guarda roupas).

O problema é que mesmo nessa perspectiva, esse “verso” é ruim e burro. Como estratégia de composição, revela uma atitude calculada, refletida, deliberada, de enunciar um “programa” estético. O “autor” imagina que está fazendo rock, mas está panfletando em favor da ignorância. A motivação panfletária é problemática para qualquer arte, independentemente de qual seja causa. a arte não pode explicar o que pretende fazer, ela deve obter o que pretende representando a sua intenção. O malfadado verso é ruim porque explica ostensivamente a proposta do grupo, que não deve ser explicada. Deve ser posta em prática. Você não diz “eu não sei fazer poesia, mas que se f$#@*!”. Você faz isso. Quem sabe fazer canção pop rebelde faz música sem poesia, burra e divertida, honestamente e sem manifesto.
E vamos todos estupidamente bater cabeça com os Ramones: “Hey, ho, let’s go!!”

Daniel M. Delfino

24/07/2004

Nenhum comentário: