8.5.07

"Fahrenheit 11/09” Segundo J.J. Rousseau - Parte 2




6. A “armadilha” de Marx

Quando Marx diz que o desenvolvimento do sistema capitalista cria as condições para sua superação, isso não pode ser entendido como uma simples bravata, uma esperança utópica, um desejo sem fundamento, mas deve ser entendido como uma expressão de determinações materiais concretas inerentes ao próprio funcionamento dialético do sistema. O capitalismo não pode funcionar sem entrar em contradição consigo mesmo. O caso do filme em questão constitui um eloqüente exemplo a esse respeito.

O filme de Michael Moore é uma obra de propaganda política, mas também é ao mesmo tempo uma mercadoria. É um produto da indústria cultural, que gera lucros por meio da venda de ingressos. Os estúdios de cinema envolvidos na produção do filme não podem ignorar o seu potencial mercadológico. Os executivos dos estúdios raciocinam como personificações do capital. O capital desconhece a distinção entre o valor de uso e o valor de troca das mercadorias. Ainda que a mercadoria em questão tenha um valor de uso politicamente explosivo, ela deve ser explorada como fonte de lucro.

A transformação da cultura em mercadoria produz esse bizarro paradoxo. A verdade é uma mercadoria precificada. Existe demanda pela verdade. O público estadunidense tem sido bombardeado durante anos com mentiras escandalosas. Quando alguém se propõe a dizer a verdade, essa verdade se torna preciosa como ouro. Não há como conter a ânsia das pessoas por conhecer a verdade. Formam-se filas imensas diante dos cinemas e “Fahrenheit 11/09” quebra recordes de bilheteria.

Eventualmente, portanto, a verdade vem à tona. O predomínio avassalador da imprensa acrítica e superficial transforma a verdade numa notável exceção. A exceção, quando vem à tona, aparece como uma raridade. Aquilo que é raro chama a atenção e possui valor. Um valor mais elevado. Aquilo que possui valor elevado é uma mercadoria preciosa. Uma mercadoria que não pode deixar de ser explorada. Entregue à sua própria dialética, o sistema produz a condenação de si mesmo. Moore é o porta voz dessa condenação.

7. Um projeto “eleitoreiro”?

Dono de uma notável percepção cênica, Michael Moore lança seu filme às vésperas da eleição presidencial, que ocorrerá em Novembro de 2004. O objetivo de desmoralizar George W. Bush e impedir sua reeleição é evidente. Nesse sentido, o filme “joga para a torcida”. “Fahrenheit 11/09” é o filme dos eleitores anti-Bush. Ele é feito para que o público anti-Bush ria à vontade, vaie e xingue Bush no cinema. E consegue esse resultado. O filme não deixa de ser uma comédia em que o Presidente representa involuntariamente o papel principal de bufão, palhaço, mico de circo.

Independentemente do efeito cênico da comédia, ele apresenta dados concretos materiais de peso incontestável. O filme foi feito para ajudar a impedir que Bush seja reeleito e apresenta munição de peso para cumprir com seus intento. Mas ao lado dessa dimensão negativa, onde está a necessária contraparte positiva? A não-eleição de Bush representará a eleição de quem?

O candidato da oposição é John Kerry. Mas quem é John Kerry? O que ele representa? Todos sabem o que Bush representa: guerra, autoritarismo, repressão, mentira, fraude, corrupção, poder para as corporações, conservadorismo moral, restrições às liberdades constitucionais. Há quem concorde com isso, há quem discorde. Mas ninguém nega que se trata de um projeto, onde as partes são coerentes entre si. E quanto a John Kerry? O que ele representa? Não será ele tão somente um poste?

Se Bush concorresse contra um poste, provavelmente perderia. Assim como seu Secretário de Justiça, Ashcroft, que perdeu uma eleição ao Senado para um opositor que já estava morto. John Kerry é apenas o poste que se apresenta para ganhar de Bush. A sua candidatura se define negativamente, como uma anti-candidatura, mais do que por um projeto dotado de conteúdo próprio.

Do ponto de vista do sistema, a viabilidade da candidatura Kerry é tão somente um sintoma do esgotamento do projeto Bush. O governo Bush se tornou insustentável, tanto no plano interno como no externo. Ele é odiado por uns e visto como incompetente por outros. O seu momento passou. Cumpre ao sistema encontrar uma saída conveniente para a crise precipitada pela desastrosa administração Bush. Kerry é essa saída. A sua eleição consagrará a alternância de poder, o mito da democracia formal burguesa.

O próprio documentário anti-Bush que é “Fahrenheit 11/09” expressa essa lógica da alternância à perfeição. Há um trecho em particular bastante eloqüente em relação a essa necessidade do sistema de se reciclar periodicamente. Nesse trecho, aparecem seguidas e alternadas declarações de Bush e sua “entourage”, Cheney, Roomsfeld, Rice, Powell, etc.

Numa dessas declarações, um deles aparece para dizer que um novo ataque terrorista pode acontecer a qualquer momento. Na cena seguinte, outro desses personagens diz que as famílias estadunidenses precisam retomar suas vidas normais e voltar a visitar a Disneylândia. Em seguida, dizem que é esperado um ataque para os próximos dias. Depois, que é seguro voltar a andar de avião. E assim sucessivamente. O efeito dessas seguidas declarações, mostradas alternadamente, é devastador para a credibilidade de seus autores.

O que elas expressam porém é a necessidade que o sistema tem de se reciclar e apresentar uma nova face para legitimar sua dominação. O sistema possui uma face agressiva e outra amigável. Nessa seqüência magistral de “Fahrenheit 11/09”, o grupo de Bush é exposto ao ridículo por tentar expressar as duas faces ao mesmo tempo. A sua capacidade para isso já se esgotou, portanto é o momento do sistema realizar a troca de guardas. Sai Bush, entra Kerry.

Do ponto de vista do sistema e do seu funcionamento medido numa temporalidade histórica estendida, a alternância de poder é necessária. É necessário que existam o Presidente “mau” e o Presidente “bonzinho”. É necessário que eles se revezem. Enquanto o Presidente “mau” (Bush) avança no cenário mundial às cotoveladas, praticando uma política unilateral agressiva e expansionista, o Presidente “bonzinho” (Kerry?) silencia. O candidato Kerry não se pronunciou sobre a questão do Iraque. Não afirmou categoricamente que vai retirar as tropas estadunidenses. Não se opôs frontalmente ao processo de subjugação imperialista em curso no Iraque.

Kerry não apresentou, enfim, um projeto político simetricamente oposto ao de Bush, uma reversão completa de suas políticas, uma revisão geral da política externa estadunidense. Ele não precisa fazer isso, mas mesmo assim será eleito. Ele precisa tão somente se apresentar como candidato, e deixar que a campanha anti-Bush trate de elegê-lo. Uma vez eleito, continuará trabalhando para o grande capital estadunidense, como todos os Presidentes antes dele. Na alternância entre a face agressiva e a face amigável, o sistema preserva suas conquistas. Ele avança, sendo agressivo, mas não recua, quando se torna “manso”. Tão somente, deixa de ser agressivo.

Do ponto de vista do eleitor estadunidense, a diferença entre os projetos de Bush e de Kerry é significativa o suficiente para justificar uma troca de guarda. O filme de Moore vem bem a propósito, portanto, e cumpre sua função a contento. Ambos os projetos, porém, o de Bush e o de Kerry, se mantêm dentro do quadro de referências do sistema. Objetivamente, pouca diferença há entre os dois, o que não invalida a verdade de que a luta para remover Bush é uma luta legítima e heróica. No mundo atual, cada nesga de liberdade deve ser conquistada a um alto custo.

Daniel M. Delfino

12/08/2004

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