8.5.07

A greve dos bancários de 2004




O ato de fazer greve é uma aventura arriscada na atual conjuntura econômica. A greve é uma ação na qual o trabalhador se recusa a trabalhar pelo preço que o patrão está lhe pagando. A resposta do patrão pode ser a seguinte: “se você se recusa a trabalhar por esse preço, eu posso achar facilmente alguém que o aceite”. A ameaça do patrão se torna dramaticamente plausível num momento em que o desemprego se alastra como câncer social com uma virulência assustadora. Há com certeza muita gente disposta aceitar a proposta dos banqueiros para a campanha salarial 2004, a qual os bancários estão rejeitando.

Uma interpretação otimista da greve de 2004 diria que esse fenômeno é um bom sinal, porque sinaliza que a economia está crescendo. Os trabalhadores querem a sua parte do bolo, porque há algo a ser dividido, resultado de um ciclo econômico virtuoso que estaríamos vivendo. Tal interpretação soa bastante lisonjeira para com o governo do PT e lhe seria bastante proveitoso que tal fábula se mostrasse verdadeira. Se a economia está mesmo crescendo é uma questão a ser deixada para outra oportunidade.

Voltemos ao contexto particular da categoria bancária. Se os banqueiros se dispuserem a conceder o aumento e as demais reivindicações, não será certamente porque “o bolo está crescendo”. Mesmo porque, a fatia dos banqueiros sempre foi a mais generosa, em época de vacas gordas ou magras. Se os bancários tem algum argumento a seu favor, não é a conjuntura econômica. O argumento existe, mas ele é ao mesmo tempo sintoma de uma debilidade estrutural da condição do bancário.

O bancário é um trabalhador supérfluo. Ele executa funções residuais. Os bancos podem prescindir quase que em 100% dos seus serviços. Os bancos disponibilizam aos clientes opções de serviços que dispensam a existência da agência bancária e a presença de funcionários lá dentro. Serviços por telefone, Internet e auto-atendimento (máquinas) substituem o bancário de maneira muitas vezes mais prática, embora não tão segura quanto os bancos e os clientes gostariam.

O trabalho de funcionários na agências é um custo que os banqueiros gostariam de reduzir ao máximo, idealmente tendendo a zero. Na impossibilidade de alcançar o zero, os banqueiros apelam para o funcionário fantasma, o terceirizado, em situação ainda mais precária que o bancário. O zero de funcionários em agências não será alcançado nunca, mas será ardentemente buscado pelos banqueiros. Como essa tendência vigora há décadas, o número de funcionários existente nas agências é sempre o mínimo possível. O mínimo necessário para executar as funções residuais exigidas pela massa recalcitrante de clientes e usuários que se recusa a migrar para as formas “modernas” de atendimento.

O problema aqui é que esse mínimo não é atingido de maneira “justa”. Os banqueiros não “jogam limpo” com os bancários. Não substituem postos de trabalho por tecnologia no ritmo adequado. Há sempre uma defasagem entre o que os bancos dispensam de mão-de-obra humana e o que oferecem de meios alternativos de atendimento. Os cortes acontecem antes que o volume correspondente de serviço tenha migrado para os tais meios alternativos. O resultado é que há sempre, em média, algo como dois bancários fazendo o serviço que correspondia a três.

Em todos os bancos, a folha de ponto, mesmo eletrônica, é sistematicamente fraudada. Funcionários trabalham com o número operacional de gerentes, depois que o seu horário permitido se esgotou. Precisam fazer horas extras que não são pagas, porque do contrário o serviço não será feito. Não será feito porque o volume de serviço continua enorme, a despeito das utopias tecnológicas dos banqueiros. Se não é um volume expressivo em termos absolutos, o é em relação à proporção da mão-de-obra exigida.

O fato irregular de executar o trabalho de “um bancário e meio” é o que dá a cada trabalhador do setor a base para a sua argumentação contra o banqueiro. O patrão não pode simplesmente chamar outra pessoa para fazer o mesmo serviço pelo preço rebaixado, já que os trabalhadores residuais de que dispõe são de certo modo os únicos capazes de fazer o trabalho que fazem. O bancário se tornou valioso porque é superexplorado. Ele acumula competências que não podem ser recicladas tão facilmente. Há tão poucos funcionários que cada um deles é essencial para a continuidade do trabalho. Em cada agência há funcionários que os gerentes não podem substituir, como possível represália pela greve, sob o risco de que o serviço entre imediatamente em colapso.

Sendo assim, com base nessa precária segurança, os bancários entram em greve e exigem a revalorização de seu serviço. O argumento é frágil, a situação é precária, a conjuntura é desfavorável. Por isso, fazer greve é, como foi dito, uma aventura arriscada, um ato de coragem. Mas não é à toa que a greve é definida como uma “luta”. O bordão já é tão velho que levou um operário à Presidência: “a luta continua, companheiros!”. Gostem ou não os adeptos das modas acadêmicas, que anuíram à morte da História decretada por um agente da CIA, a luta de classes continua.

A luta continua e este escriba/bancário não poderia se furtar a dar sua contribuição, para tentar entender (ou confundir, depende da trincheira de onde se olha) o que está se passando. Nunca é demais ressaltar que este escriba escreve na condição de bancário avulso, grevista de primeira viagem, sem mandato de delegado sindical, sem qualquer vínculo com partido político ou tendência do movimento sindical.

A ocorrência de uma greve é, do ponto de vista deste escriba, uma oportunidade para colocar em discussão o papel do setor bancário na economia. Para que servem os bancos afinal? Qual é a função de um banco na economia? Em tese, os bancos deveriam receber depósitos e remunerar esses depósitos com juros. Para fazer esses depósitos renderem, os bancos deveriam aplicá-los na produção, por meio de empréstimos a empresas e consumidores, multiplicando a riqueza da sociedade e retirando daí a sua parcela pelo serviço.

Assim reza a cartilha do capitalismo. Entretanto, isso não acontece no Brasil. Os bancos não emprestam. Quando o fazem, praticam juros proibitivos. No capitalismo brasileiro, os bancos preferem não correr o risco de se envolver com crédito. O Brasil é o paradigma mundial do capitalismo sem riscos. Os banqueiros locais preferem especular com a dívida pública do que alavancar a economia. Dívida pública que é paga pelo conjunto da sociedade.

Que os bancos privados se comportem como predadores do país é algo “admissível” dentro da “lógica” perversa que rege o capitalismo nacional. Um banco privado, como empresa capitalista que é, busca seu lucro da maneira que melhor lhe convier. Se explorar a dívida pública é melhor do que investir na produção, pior para a produção. Se a sociedade brasileira não consegue se proteger da predação dos banqueiros, pior para ela, ou seja, para todos nós, e melhor para os banqueiros. Essa é a “lógica” do capitalismo, e tem quem goste.

Que os bancos públicos ajam da mesma maneira que os privados, porém, é uma contradição flagrante. Teoricamente, os bancos públicos seriam o instrumento do Estado para intervir na economia e desempenhar o papel de que os bancos privados estão “desobrigados”. Ou seja , realizar empréstimos e alavancar a economia. Mas no Brasil, os bancos públicos remanescentes (Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal) se transformaram na última década em concorrentes dos bancos privados.

A palavra “remanescente” empregada acima serve para assinalar o fato de que, em relação ao setor bancário, a devastação neoliberal conseguiu matar dois coelhos com uma só cajadada. Primeiro, exterminou os bancos públicos estaduais, com o argumento de que eram ineficientes. O fato de que essa ineficiência deva ser creditada aos políticos corruptos que os administravam não foi levado em consideração. Essa ressalva concreta deve ser oportunisticamente desconsiderada para que se possa viabilizar o argumento abstrato de que aquilo que é público é por definição ineficiente e deve portanto ser desfeito. A instituição dos bancos públicos estava assim condenada em si. Bom por exemplo para o grupo espanhol Santander, que levou o Banespa a preço de banana, num processo criminoso de depreciação contábil de um ativo lucrativo.

O segundo passo é, em nome dessa mesma “lógica” da “eficiência”, transformar os remanescentes BB e CEF em concorrentes dos bancos privados, com a missão de disputar mercado com os bancos privados, gerar lucros por meio das mesmas estratégias e com isso ajudar a produzir “superávit primário” para o Tesouro e ajudar a pagar o serviço da dívida. Assim, os funcionários dos bancos públicos se tornam vendedores de “produtos” de seguridade, previdência e capitalização, como já eram os empregados de bancos privados.

Hoje, nada separa um funcionário do BB de um empregado de financeira que oferece empréstimos na rua São Bento, no centro de São Paulo. Ou de um operador de telemarketing que oferece serviços de telefonia. Nada os separa. Não há diferença de natureza entre a categoria dos bancários e a desses profissionais. A diferença é apenas o grau de intensidade da exploração e da competição. Também é irrelevante o fato de que os tais produtos que os bancários são obrigados a vender não representam senão uma parcela ínfima do lucro dos bancos públicos.

Pois estes, como boas empresas capitalistas que são, encontraram a melhor maneira de dar lucro, como os concorrentes do setor fazem. Ou seja, especular com a dívida pública, negociando títulos do governo. Os bancos públicos exploram a dívida pública, o que representa a esquizofrenia elevada ao quadrado. Mas isso não basta, pois é preciso apelar para outras táticas complementares. Juros altos no crédito, tarifas abusivas por serviços inexistentes, venda casada de “produtos”.

E por último, mas não menos importante, salários rebaixados. A situação precarizada dos bancários de bancos públicos é uma herança da era FHC. O tucanato criou no BB a categoria do funcionário “genérico”, os contratados depois de 1998 (como este escriba) que fazem o mesmo serviço dos antigos, por um preço bem menor. Embora contratados por concurso, os genéricos trabalham em regime CLT, enquanto os antigos ainda possuem benefícios quase equivalentes ao de um funcionário público.

Mas esses benefícios, em tempos de neoliberalismo, são considerados privilégios abusivos, que devem ser cortados, portanto voltemos à discussão em foco. Os funcionários de bancos públicos estão numa situação pior que a dos privados. Durante 10 anos os funcionários de BB e CEF não tiveram aumento de salário. Ou seja, devido à inflação do período, tiveram achatamento do salário. Os empregados de bancos privados foram mais bem-sucedidos na tentativa de se proteger das perdas, no período do tucanato adentro. Ao contrário do estereótipo que vigora no imaginário popular, os funcionários de bancos privados são hoje muito melhor remunerados que os públicos.

Muito embora, no geral, ambos tenham tido perdas. Se no período 1994/2003 o lucro dos bancos aumentou de 9,8 % para 20%, o salário dos bancários caiu de 4,3 para 2,6 salários mínimos em média, no mesmo período (dados do jornal “Folha de São Paulo”). Isso é o suficiente para justificar a greve geral da categoria bancária, unindo públicos e privados, genéricos e transgênicos. Mas o discurso de que os bancos estão tendo lucros enormes e os bancários querem sua parte pode ter alguma eficácia apenas no interior da própria categoria bancária, quando os sindicatos querem convencê-los da maneira mais fácil a entrar em greve.

Esse discurso não parece suficiente para dar conta de toda a situação. Os bancários não podem exigir apenas a sua parte na fatia roubada pelos banqueiros à sociedade. Deveriam exigir, como exigem, a mudança da política econômica que obriga os bancos públicos a gerar caixa para pagar o serviço da dívida. Sem essa exigência, a greve não passa de uma simples reivindicação econômica e não incorpora nenhuma dimensão política e social. Exatamente por isso, os bancários fazem greve este ano não apenas por aumento de salário, mas pela mudança das condições de trabalho.

O problema é que a greve é unificada, mas existem duas realidades diferentes no setor bancário brasileiro. Os funcionários de bancos privados vivem uma situação mais precária, em termos de represálias. Sentem que podem ser demitidos com muito mais facilidade que os funcionários de bancos públicos. Até certo ponto, isso é verdade. Além disso, não tiveram tantas perdas salariais nos últimos anos. Portanto, seu interesse em fazer greve é menor. Assim, são os funcionários de bancos públicos que devem parar primeiro e convencer os colegas de bancos privados a pararem também.

Numa greve, é a união que faz a força. Se apenas uma parte dos funcionários paralisa as atividades, seja numa agência em particular, ou num determinado banco, numa determinada região, a pressão sobe os banqueiros é menor. Se todos param, a situação é outra. Daí a importância dos piquetes, ou melhor, “comissões de convencimento”, para conversar com colegas e convencê-los a não entrar nas agências. Daí o trabalho da polícia do Estado, a serviço do capital, agredindo bancários, impedindo que conversem com os colegas, com o pretexto de que devem defender o patrimônio, como se os grevistas estivessem indo fazer vandalismo. Daí o trabalho da grande mídia, a serviço do capital, para jogar a opinião pública contra os grevistas, nunca contra os banqueiros.

O drama dessa atual greve é que, pela primeira vez em 10 anos, BB e CEF decidiram fazer aos funcionários as mesmas concessões que forem aceitas pela FENABAN (Federação dos bancos). Durante esses 10 anos essa foi a reivindicação dos funcionários de bancos públicos em relação aos seus patrões, sistematicamente negada pelos governos tucanos. E agora em 2004, quando BB e CEF aceitam conceder o acordo da FENABAN, os bancários de bancos privados estão menos mobilizados para a greve, pelas circunstâncias expostas dois parágrafos acima. Assim, o ônus da mobilização recai todo sobre os funcionários de bancos públicos.

Desse modo, a opção pela campanha unificada aparece como um erro estratégico gritante. Um erro decidido por quem? A liderança sindical dos bancários é filiada à CUT, que é comandada pela tendência “Articulação sindical”. A Articulação sindical, por sua vez é o braço sindical da “Articulação” propriamente dita, a mesma tendência que comanda o PT. PT, que por sua vez, é o partido que comanda o governo federal. Governo que por sua vez comanda os bancos públicos. Ou seja, no que se refere aos bancos públicos, temos a Articulação negociando com a Articulação. A primeira representa os funcionários, a segunda os patrões. Que se pode esperar de uma negociação como essa?

Há uma esquizofrenia gritante nessa situação. Se o nome “PT” é uma sigla que significa “Partido dos Trabalhadores”, porque o governo do PT não está ao lado dos bancários nessa greve? Ser o partido dos trabalhadores significa acreditar que aquilo que é bom para os trabalhadores é bom para o conjunto da sociedade. Significa defender o lado dos trabalhadores. Se as reivindicações salariais dos trabalhadores bancários fossem atendidas, isso seria bom para a economia, mesmo que limitadamente. Se suas reivindicações de mudança da política econômica e de uso dos bancos públicos e privados fossem atendidas, isso seria bom para a sociedade como um todo.

Não é para isso que o PT foi eleito? Se ele é o “Partido dos Trabalhadores”, isso significa que os partidos anteriores que nos governaram durante 500 anos eram todos o “Partido da Burguesia”. Se eles tiveram sua chance durante 500 anos, agora seria a vez dos trabalhadores tentarem sua receita. Tentassem atender as reivindicações dos trabalhadores. Ou será que o “Partido dos Trabalhadores” mudou de nome para “Partido dos Banqueiros”, sem informar ninguém?

Os cultuadores das formalidades institucionais dirão que o BB e CEF não pertencem aos partidos governantes de turno. Dirão que são instituições independentes que devem se pautar por estratégias próprias. Mas quem vive no Brasil de fato sabe o quanto valem por aqui as formalidades institucionais. Por mais que se queira acreditar no contrário, a greve e a negociação são decididas em função de estratégias políticas partidárias e de curto prazo.

A Articulação esperava resolver a Campanha Salarial 2004 sem ter que recorrer à greve, para salvaguardar a “normalidade” e colaborar com as campanhas eleitorais municipais do PT, especialmente em São Paulo. Mas o sindicato foi levado à greve pela disposição de luta dos bancários, que pela primeira vez em muitos anos parte para uma greve de grande porte. Para não ficar com a pecha de “pelegos’, os dirigentes sindicais dos bancários tiveram que aceitar a greve imposta pela base contra sua vontade e tentar pilotá-la. Assim, a greve continua.

Nós grevistas teremos que lutar não só contra os banqueiros, sua polícia, sua mídia, o governo, o PT, a opinião pública, mas contra nossas próprias “lideranças”, para tentar arrancar um acordo que não será nem de longe suficiente para cobrir as perdas salariais passadas. Colocamos “lideranças” para ressaltar que os bancários não se sentem realmente representados por seus negociadores. Os banqueiros já disseram que não fazem uma nova proposta porque consideram apenas aquela que foi acertada “de comum acordo” entre governo, sindicalistas e FENABAN. Ora essa proposta foi rejeitada em massa pelos bancários, o que significa que seus sindicalistas e seu governo subestimaram a insatisfação da base.

A categoria está insatisfeita e a greve continua. A bola está de volta com a cúpula e suas articulações, para que devolvam uma proposta decente. Não é possível saber que desfecho as negociações terão. Esse texto é escrito entre um piquete e outro (ou melhor, “comissão de convencimento”), entre uma assembléia e outra, entre uma passeata e outra. A qualquer momento, fatos novos podem surgir. Mas seja qual for o desfecho da greve, das eleições, da política econômica e do meu emprego, a luta continua!

“O que é o crime roubar um banco, comparado ao de fundar um?” – Bertolt Brecht

Daniel M. Delfino

27/09/2004

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