29.5.07

Memórias de Vila Euclides




Houve tempos em que este entusiasmado leitor desejava que cada edição de “Caros Amigos” tivesse pelo menos 700 páginas para dar conta de tudo o que precisa ser dito na necessária tarefa de trazer ao primeiro plano a luta dos oprimidos. No mínimo 700 páginas de humanidade e poesia, diversidade e coerência, beleza e vitalidade, fotografia e cordel, internacionalismo e brasilidade, como antídoto contra a barbárie feroz que reina no território da imprensa yuppie vendida ao capital.

O antídoto composto por aquelas qualidades acima ainda está presente nas páginas da revista e faz algum efeito, mas dilui-se homeopaticamente contra o pano de fundo geral de capitulação. Atualmente, é preciso colocar na balança cada edição para pesar o número de páginas que valeram à pena serem lidas (em respeito aos heróis da resistência que ainda militam nesse veículo) e em seguida fazer cuidadosamente as contas antes de decidir pela renovação ou não da assinatura. A conjuntura é bastante desfavorável para que se possa permitir-se investir numa publicação sobre cujos compromissos pairam dúvidas.

Outro exemplo de plebeísmo pode ser encontrado em “Carta Capital”. Se a “Caros Amigos” capitulou ao Estado burguês, a revista do jornalista Mino Carta capitulou ao mercado. Evidentemente, “Carta Capital” nunca teve o compromisso de ser “de esquerda”, nem socialista, nem qualquer coisa nessa direção. Talvez se propusesse apenas a ser nacionalista. Não se poderia esperar nada mais avançado do que isso numa revista que tem “Capital” no próprio nome. O público-alvo ideal da revista, uma certa burguesia nacional esclarecida, deveria brotar de um setor social que não existe na prática. O fato de que esse setor social nunca passou de uma abstração que jamais adquiriu consistência histórica concreta não invalida os pressupostos de um projeto editorial perseguido com rara obstinação e louvável teimosia.

A despeito da ausência histórica desse sujeito social hipoteticamente destinatário da mensagem de “Carta Capital”, seu compromisso de fazer bom jornalismo era cumprido com independência e galhardia e realçado pelo traço distintivo peculiar de um texto primoroso cuja qualidade está anos-luz à frente do sofrível nível de redação de 8a. série de “Veja” e assemelhadas.

Mas esse bom jornalismo tem sido colocado de lado em nome da necessidade de legitimar alguns dos mencionados desvios e disparates do governo lullista. Na edição 364, de 19/10/2005, a revista deu-se ao trabalho de explicar didaticamente “O sentido da sopa de letrinhas”, título de um box na página editorial dedicado a demonstrar a necessidade do Brasil submeter-se aos critérios de gestão econômica desejados pelas agências de classificação de risco.

Diz o texto: “Se o Brasil repentinamente resolver não estar sujeito a esse tipo de avaliação, não desembolsa nada para a Moody’s, Fitch ou Standard & Poor’s, mas certamente terá dificuldades para acessar o mercado externo. Isso porque o potencial comprador da dívida brasileira não vai ficar só nas nossas boas intenções e exigirá, ao tomar sua decisão de investimento, a classificação de risco na qual nos encaixamos. Para o bem ou para o mal, essas são as regras do mercado”.

Ou seja, goste-se ou não das regras do jogo, é preciso se acostumar com elas. Quem não gostar, que enfie a viola no saco e vá para casa. Não há alternativa, como dizia Margaret Tatcher. É bom ir se acostumando, e nada de pensar em contestar o mercado. Acima de tudo, o “potencial comprador da dívida brasileira”, a quem supostamente devemos hipotecar nosso futuro, deseja um rebanho cordato disposto a ir ao matadouro sem emitir sequer um mugido de protesto. Sacrifiquemos nossa inteligência, juntamente com o gado vacum sacrificado por contaminação com a febre aftosa, em nome da tranqüilidade do mercado de “commodities”. De boas intenções, o inferno está cheio. Em matéria de submissão ao mercado, o governo Lulla sempre teve as melhores intenções possíveis.

A leitura de tal tipo de matéria na página assinada pelo acima citado Mino Carta doeu “em algum lugar entre o fígado e a alma”, como costuma dizer o próprio. Também no caso desta publicação, a única revista semanal legível no Brasil, será preciso pesar muito bem antes de se definir pela renovação da assinatura. Se o seu discurso político já soava esquizofrênico por conta da inexistência histórica do sujeito social que lhe serviria de destinatário hipotético, o estilo atual corre o risco de resvalar para o cacoete obsessivo compulsivo. Neste paupérrimo enredo, Mino Carta pode gabar-se de dizer que viu a história de luta do PT, esteve ombro a ombro com os companheiros, e pode tentar exigir que com base nesse histórico não lhe encham mais o saco.

Cada um se diferencia como pode. A crise do PT pegou significativa parcela dos intelectuais deitados no berço esplêndido da contemplação. Convém precisar sociologicamente tal omissão. O petismo da década de 1990 despontou como forma conveniente de “terceirizar” a militância por parte daqueles cujas simpatias pelas causas socialistas e populares não iam além do terreno acadêmico ou eleitoral. Em face da queda do muro (das ilusões) de Berlim, e do “fim da história”, o PT se ofereceu como logotipo publicitário capaz de aglutinar o que restasse de entusiasmo pelas “velhas utopias”. Numa década marcada pelo avassalador predomínio de idéias privatistas e livre-mercadistas, o PT era o produto da moda. “Vote no PT, compre nosso programa”. Faça a revolução por procuração.

No mesmo movimento em que se vendeu ao sistema, o PT “privatizou” junto consigo a política como instrumento de mudança da realidade. Essa opção programática inseriu-se num processo ideológico de alcance mais amplo, característico daquela década na qual perdeu-se o sentido do coletivo. Desapareceu a aura emancipatória da ação direta do movimento de massas, da mística das mobilizações que forjam laços humanos qualitativos, do caminhar ombro a ombro, da dialética que faz com que a união de muitos seja maior do que a soma de cada um. Nesse movimento de privatização, a política passou a ser algo feito exclusivamente pelos “políticos”, um monopólio privado dos marketeiros nos quais nos cabe votar e “cobrar resultados”, como quem cobra a garantia de um produto defeituoso no Procon.

Pois bem, é chegado o momento de cobrar nosso voto de volta. O fim da era da opção política por procuração incomoda os setores da intelectualidade de esquerda que tomaram seus assentos no bloco especulativo da torcida (des)organizada plebeísta. Preferem então se esconder por trás da cortina de fumaça da defesa do governo contra o fictício “golpe das elites”. Sua capitulação ao governo de plantão resulta da recusa em aceitar o fim da viabilidade histórica do programa eleitoral/reformista/petista/neoliberal. É preferível fechar os olhos a essa realidade e escolher um desafio mais simples. A luta contra o “golpe das elites” aparece como escolha conveniente nesse contexto, já que oferece um adversário de contornos bem definidos, num confortável cenário maniqueísta extremamente simplificador e reducionista.

O plebeísmo maniqueísta a que tantos se apegam parece fazer algum sentido em contraste com o predomínio avassalador do seu oposto, o fascismo latente que campeia cada vez mais desenfreado. O fascismo mostrou sua face horrenda na frase pronunciada por Jorge Bornhausen (em discurso no Ciesp em 26/08/05), quando o senador do PFL catarinense comemorou a crise do PT e da esquerda dizendo que a elite brasileira ficaria “livre dessa raça por uns trinta anos”.

O caráter particular desse fascismo que ensaia pôr as mangas de fora será analisado alhures. Para finalizar por enquanto, cumpre assinalar que o significado final da crise política, para além do embate puramente eleitoral, no qual qualquer um dos lados pode obter vantagens momentâneas nas disputas cíclicas, pode ser paradigmaticamente sintetizado na infame frase de Bornhausen. Essa frase expõe de maneira nua e crua o pensamento de que as classes subalternas não devem jamais voltar a ter qualquer peso na política brasileira.

A exclusão do povo da política é o resultado final da espúria “cópula petucana” (expressão de Gilberto Felisberto Vasconcelos, da saudosa “Caros Amigos” de luta) que une a tecnocracia neoliberal tucana à demagogia marketológica petista como faces da mesma moeda, aspectos de uma mesma alienação material e ideológica. A única resposta possível a esse verdadeiro “golpe das elites” só pode ser uma: cada vez mais povo na política.

Todo poder ao povo!

Daniel M. Delfino
07/09/2005

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