31.5.07

O dia em que São Paulo parou




“(...) quando há grandes dificuldades e perturbações no processo de reprodução, manifesta de maneira dramática também no nível do sistema geral de valores – como a recente onda de crimes, por exemplo – os porta vozes do capital na política e no mundo empresarial procuram lançar sobre a família o peso da responsabilidade pelas falhas e ‘disfunções’ cada vez mais freqüentes, pregando de todos os púlpitos disponíveis a necessidade de ‘retornar aos valores da família tradicional’ e aos ‘valores básicos’”
István Mészáros

“Polícia para quem precisa!
Polícia para quem precisa de... Polícia!”
Titãs

“O dever de todo prisioneiro é evadir-se”
Michel Foucault

“Tell me why?
I don’t like Mondays!
I wanna shoot the whole day down!”
(Me diga por que?
Eu não gosto de segundas-feiras!
Eu quero atirar pelo dia todo afora!)
Boomtown rats

“O que não nos mata nos torna mais fortes”
Friedrich Nietzcshe

“A subversão sumiu da sociedade: não há político subversivo, não há artista subversivo, não há religioso subversivo, não há militar subversivo. O único sujeito subversivo é o bandido (...). Desapareceu o intelectual subversivo. Quem é subversivo hoje é o bandido, mas poderá vir a ser revolucionário um dia?”
Gilberto Felisberto Vasconcelos

“Um povo ignorante é o instrumento cego de sua própria destruição.”
Simon Bolívar

“A arma da crítica não pode substituir a crítica das armas”
Karl Marx




Crime e normalidade capitalista

O capitalismo é criminoso e o crime é capitalista. O crime não é uma anormalidade, uma doença, uma exceção a ser devidamente suprimida da sociedade tão logo o Brasil atinja a condição “civilizada” de “país desenvolvido”. O crime é parte da “normalidade” da economia capitalista, assim como a guerra, a violência, as crises econômicas, o desemprego, a fome, a escassez, a miséria, a doença, a ignorância, o preconceito, a neurose, o desperdício, a poluição, a degradação ambiental, os desastres ecológicos, etc. Todos esses fenômenos são inerentes e essenciais ao modo de produção capitalista. São a regra, e não a exceção. Atingem a imensa maioria da humanidade, e poupam apenas alguns poucos privilegiados.

Justamente por isso, a ideologia dominante precisa apresentar a realidade de maneira invertida, por meio do discurso domesticador formulado nas universidades, escolas, igrejas, etc., e fundamentalmente na mídia. Os meios de comunicação, instrumentos de manipulação ideológica e fabricação de consenso, trabalham para produzir uma percepção invertida das contradições do capitalismo. A mídia apresenta todos esses fenômenos como lamentáveis e temporárias exceções. Trata-os como se fossem rupturas indesejadas e imprevistas no tecido da “normalidade”. Cada aparição de um sintoma da barbárie é tratada de modo que não se possa tirar as devidas conseqüências políticas dessa aparição.

Para neutralizar os efeitos potencialmente disruptivos que a exposição da barbárie poderia ter sobre as consciências receptoras, é preciso responsabilizar o acaso, a natureza, os indivíduos desajustados, Deus, o diabo, etc.; qualquer coisa menos o sistema em si pela produção dessa barbárie. Isso acontece não porque os profissionais da mídia sejam débeis mentais (há controvérsias), mas porque é necessário que nunca se possa perceber a origem dos problemas onde eles verdadeiramente nascem, ou seja, na lógica hierárquico-conflitiva do sistema do capital que se quer preservar a todo custo.

As consciências devem ser anestesiadas para não reagir criticamente contra as disfunções do sistema. Todos aqueles sintomas da barbárie listados acima são a verdadeira face da normalidade da realidade capitalista. São manifestações por excelência da sua irracionalidade constitutiva. Representam os requisitos imprescindíveis da sua pseudo-funcionalidade distorcida. Os fundamentos materiais e necessários do bem-estar artificial da elite dominante. A única forma de extirpá-los seria extirpando o próprio capitalismo, mas isso a mídia, cúmplice desse sistema criminoso, não pode admitir jamais.

Todo o debate sobre a “violência”, o “crime”, a “insegurança”, etc.; por não levar em consideração essa vinculação do fenômeno com a totalidade sócio-histórica, resulta numa discussão patética, tagarela, debilóide, que futilmente gira em torno de platitudes como a conveniência de se impedir a presença de celulares nos presídios ou outros paliativos anódinos. Como diz a sabedoria popular, o buraco é mais embaixo.

Lei da selva e hipocrisia da lei

O crime faz parte da essência do capitalismo, em mais de um sentido. Não é preciso invocar o fato de que o capitalismo se fundamenta numa usurpação (“a propriedade é um roubo”, dizia Proudhon), de que ele se mantém com base no roubo (a mais-valia é trabalho não pago, portanto roubado aos trabalhadores) e distorce completamente o sentido daquilo que é moral e socialmente legítimo (“o que é o crime de roubar um banco comparado ao de fundar um?”, perguntou Brecht), a ponto de legitimar todo tipo de prática produtiva/destrutiva, em nome do “crescimento”, acarretando a mais irresponsável destruição das condições ambientais elementares para a reprodução da vida no planeta.

Não é preciso invocar nenhum imperativo moral genérico e abstrato para condenar esse sistema. O capitalismo é criminoso mesmo quando encarado sob o prisma das leis típicas da forma de sociabilidade que ele próprio fomenta, ou seja da sociedade burguesa. O crime é parte fundamental de suas operações mais rotineiras. Sem que as leis sejam transgredidas, nada funciona. Todo ramo de negócios é criminoso. A concorrência capitalista possui uma fachada pública, onde tudo é límpido e reluzente, e uma face oculta composta de toda sorte de falcatruas que se desenrolam por debaixo dos panos.

Em todo ramo de negócios há mil formas ilegais de se roubar os clientes, os funcionários, os fornecedores, o Estado. Há mil maneiras de burlar as regulamentações contábeis, a segurança no trabalho, as normas de higiene, os cuidados ambientais, etc. Essa é a prática sistemática de 11 entre 10 empresas capitalistas. Em todo ramo de negócios há corrupção, sonegação, propinas, caixa 2, etc. Quando não compram os fiscais e autoridades estatais dos níveis inferiores, os capitalistas, especialmente os mais poderosos e sofisticados, como os banqueiros, compram diretamente os dirigentes políticos mercenários do Estado, financiando suas campanhas eleitorais.

O Brasil parece ter acabado de descobrir essa modalidade de crime, a compra de espaços de poder no Estado a serem ocupados por políticos mercenários expressamente pagos para apitar o jogo em favor das frações do capital que financiam suas campanhas. Esse foi o caso do PT, convertido em partido dos banqueiros via valerioduto, mala preta, mensalão, Land Rover, dólares nas cuecas, etc. Mas não há novidade alguma nesse tipo de comércio. Essa é a prática histórica e generalizada de todas as sociedades governadas pela “democracia representativa”, esse sistema político fraudulento montado para roubar o poder democrático de seu legítimo dono, o povo.

Todo ramo de negócios é criminoso, inclusive a política, e sua serva fiel, a mídia. Todos se locupletam e se acobertam mutuamente. Só isso explica o fato de que a justiça ignore completamente as modalidades de crime peculiares à classe dominante, como tráfico de influências, corrupção das autoridades, desvio de verbas, lavagem de dinheiro, fraudes contábeis, fiscais, previdenciárias, trabalhistas, ambientais, contra a saúde pública, etc. Tais crimes nunca são punidos. No máximo, fornecem roteiro para comédia, como a recente farsa da prisão de Paulo Maluf. Ao mesmo tempo, o roubo famélico dos pobres é punido sumariamente com pena de prisão, como se tivesse a mesma gravidade dos assassinatos, assaltos, estupros, etc. O empenho da polícia e da justiça para prender ladrões de galinha contrasta ignominiosamente com sua deferência para com os criminosos do andar de cima, sistematicamente deixados impunes.

A repressão contra os crimes cometidos pelos membros das classes inferiores, mesmo que sejam infrações insignificantes, tem o efeito “pedagógico” de inculcar nesses setores o respeito servil pelos princípios “inquestionáveis” da iníqua ordem estabelecida. O ladrão de galinha, por mais inofensivo que seja, assim como o ladrão famélico, que rouba por não ter o que comer, precisa ser punido com o maior rigor possível, pois o seu ato atenta contra o princípio mais sagrado dessa sociedade: a propriedade privada. É em nome da propriedade privada que todas as leis e todo o aparato do direito, da justiça, da polícia, etc.; funcionam, e não em nome da vida. No momento decisivo, o defensor da ordem mata para proteger a propriedade privada.

Como se não bastasse a evidência desse critério de classe distorcido como prova para condenar o sistema, a polícia e a justiça, num ultraje adicional, se esmeram em funcionar como carrascos das classes oprimidas, reprimindo e criminalizando suas formas próprias de expressão e luta política, como greves, piquetes, invasões, ocupações, manifestações, passeatas, etc. O Estado monopoliza legalmente a violência e a exerce ativamente em favor dos interesses da classe dominante.

“Business as usual” (Negócios como sempre)

Ninguém se salva. Todo ramo de negócios é criminoso, e inversamente, o crime é só mais um ramo de negócios. A categoria de atividade “criminosa” é uma distinção formal criada arbitrariamente pelo Estado burguês. É o Estado quem define quais os negócios que fazem parte da esfera das atividades lícitas e quais são ilícitas. Bebidas alcoólicas são permitidas (mas causam doenças físicas e psicológicas, violência doméstica, acidentes de trânsito, mortes e prejuízos enormes, tudo isso em proporções catastróficas), mas maconha é proibida. Tabaco é permitido (causando também doenças e mortes massivas e prejuízos colossais ao sistema público de saúde), mas cocaína é proibida. Qual é o critério para legalizar umas e criminalizar outras?

Resumidamente, existe um critério (existem drogas socialmente “aceitáveis” porque típicas de países “desenvolvidos” e de outro lado drogas “bárbaras” de países pobres), mas esse critério é contingente. Não leva em consideração o que é benéfico e o que é prejudicial à sociedade, mas qual grupo sócio-econômico e qual nacionalidade ganha com a proibição e qual ganha com a legalidade. Ou seja, é um critério desigual e assimétrico, como todos os que vigoram na sociedade capitalista.

O fato de que o Estado tenha declarado ilícita uma determinada atividade econômica não significa que a sua prática tende a ser extinta. Significa apenas que o seu modo de funcionamento está cercado de restrições diferentes daquelas que enfrentam as atividades “lícitas”. Os empresários dos ramos econômicos “legais” precisam rotineiramente comprar e corromper as autoridades do Estado com propinas e subornos para manter seus negócios funcionando e roubar tranqüilamente a sociedade; os do ramo “ilegal” fazem o mesmo, mas precisam também adicionalmente disputar espaço pela força das armas com o aparato repressivo do Estado.

Na disputa pelo território e pelo lucro das atividades “ilegais” com a polícia, os empresários do “crime” acabam criando subsidiariamente um outro mercado secundário de atividades “ilícitas” paralelas, o tráfico de armas. O qual por sua vez, cria o mercado de assaltos, seqüestros, seqüestros-relâmpagos, roubo a bancos, roubo de carros, roubo de cargas, etc. Essa consideração permite acrescentar marginalmente uma outra conclusão associada à presente discussão: se determinadas drogas não fossem declaradas ilegais, não haveria repressão policial sobre elas.

Sem repressão, não haveria necessidade de que os seus negociantes usassem armas. Sem que o tráfico necessitasse de armas, não haveria tráfico ilegal de armas. Sem contrabando de armas, não haveria, na mesma proporção em que acontecem hoje, os crimes de violência que aterrorizam a população: assaltos, seqüestros, seqüestros-relâmpagos, roubos, estupros, etc. E sem isso, não haveria necessidade e justificativa para a manutenção do infame aparato judiciário-policial repressivo pelo qual as classes subalternas são cotidianamente açoitadas. A guerra ao tráfico corresponde assim obliquamente ao imperativo sistêmico fundamental de manter permanentemente as massas exploradas sob a mira diária das armas dos gendarmes da ordem. Voltar-se-á a esse ponto logo adiante.

Crime e concorrência capitalista

O foco da discussão não está no crime da violência física em si (assassinatos, assaltos, seqüestros, roubos, estupros) e sim no processo social que origina a violência. Numa ordem social baseada na competição, é preciso ser muito ingênuo ou muito cínico para acreditar que todos iriam jogar conforme as regras do jogo. Os primeiros a descumprir as regras são aqueles mesmos que as estabeleceram, os setores dominantes do sistema. Os países, empresas e classes sociais que ocupam as posições de comando só estão em tal situação porque historicamente se impuseram pela força e somente se mantém como tais pelo uso reiterado da força. A violência física explícita dos setores classificados como “criminosos” é somente um reflexo da violência social implícita embutida na simples reprodução cotidiana do sistema.

A ação das organizações “criminosas” é a apenas a última de uma longa lista de violências, das quais a primeira é a própria lógica do capitalismo. A violência começa de cima para baixo, da parte do sistema, sob a forma da repressão a que todos são submetidos pelos mais variados aparatos de poder, ao longo de toda a vida, para se adaptar às exigências da ordem do capital. As estruturas autoritárias da família patriarcal e da escola burguesa, a moral autoritária da igreja, a disciplina da fábrica, do exército, da penitenciária, do hospital psiquiátrico, etc.; tudo isso constitui um formidável arsenal de destruição da subjetividade.

Desde os menores microcosmos e células reprodutivas da sociedade, como a família, até as instituições mais abrangentes, como a escola e a igreja; todas estão viciadas pelo imperativo de destruir a subjetividade criativa, reprimir a liberdade, castrar o pensamento, inibir a sexualidade, aplastar todos os possíveis traços de relacionamento humano verdadeiro. Tudo isso a serviço do imperativo de produzir cidadãos “bem-comportados”, “responsáveis”, ou seja, obedientes, submissos e incapazes de questionar, no pensamento e na prática, a hierarquia da sociedade que os oprime. A destruição em massa da subjetividade praticada cotidianamente em escala industrial e em todas as esferas é o maior de todos os crimes e de todas as violências.

A violência não é apenas física. A propaganda consumista e a imposição forçada de um estilo de vida artificial também são formas de violência contra a subjetividade. Os jovens da periferia são ensinados diariamente pela publicidade a reconhecer o que é “bonito”, o que é sexualmente atraente, o que é modelo de “sucesso”, quais os bens materiais supérfluos que sinalizam status e poder, etc. Nada mais natural do que quererem se apropriar dessa imagem pela força das armas. A força das armas é o seu canal de ascensão social, assim como a mentira, a fraude, o logro, o suborno, etc.; são as armas de qualquer grande empresário ou político “bem-sucedido”.

O crime realiza a cobrança das promessas emitidas pela onipresente publicidade do “progresso” capitalista. O crime é nada mais que uma outra face da concorrência capitalista, uma outra forma de concorrência. O empresário e o “bandido” são ambos criminosos, ambos violentos. Não há diferença de qualidade entre a violência de um e de outro setor, há apenas uma diferença na forma como são valorados pela sociedade.

A competição reinante no mercado capitalista não é uma decorrência espontânea da suposta “natureza humana individualista”; na verdade, é uma violência contra o indivíduo humano e é historicamente produzida. Relações sociais violentas produzem indivíduos violentos. Marcola é o contraponto do “self-made man”. O suposto líder do PCC é um sobrevivente da concorrência capitalista. É tanto um produto do capitalismo quanto Bill Gates, por sinal outro bandido, que não inventou os computadores pessoais, nem o Windows, nem a internet, mas se tornou multi-biliardário roubando as idéias alheias (vide o filme “Piratas do Vale do Silício”).

O que diferencia um do outro? Aparentemente seria o uso da violência. Mas o que é violência? Como vimos acima, o uso das armas é só uma das formas de violência reinantes nessa sociedade. O monopólio da Microsoft também é uma violência contra os cérebros humanos condenados a lidar com as estúpidas limitações dos seus programas de computador. A violência física e corporal da parte dos “criminosos” e a violência contra a subjetividade possuem uma mesma natureza, que se enraíza na lógica anti-humana do sistema capitalista.

Efeitos colaterais

O que distingue o assim chamado “crime” das atividades econômicas “legais” é apenas a sua forma de disputa com o Estado e com a concorrência, que impõe o uso da força armada e da violência física. Para abordar corretamente o fenômeno do “crime”, dispensando as aspas, é preciso reformular a nomenclatura. As categorias de “atividades lícitas” e “ilícitas” não dão conta de todas as dimensões do problema. As duas atividades são diferentes, mas são partes de uma mesma economia. Organizações como os bancos, os latifúndios e agronegócios, as transnacionais, as empresas de mídia, partidos políticos, etc. serão aqui doravante denominadas Organizações Criminosas que Comandam o Estado (OCCEs). Organizações como o PCC (Primeiro Comando da Capital) serão denominadas Organizações Capitalistas Reprimidas pelo Estado (OCREs).

Do ponto de vista do capital, ambas as formas de organização produtiva/destrutiva são formas “legítimas” de viabilizar os imperativos sistêmicos de valorização do valor. O capital não lhes atribui qualquer conteúdo moral diferenciado, visto que somente lhe interessam seus atributos econômicos funcionais fundamentalmente idênticos. O julgamento do capital a respeito da origem do dinheiro, que é a materialização de uma das fases de seu ciclo de acumulação, é neutro a ponto de franquear a todo e qualquer dinheiro os canais necessários para entrar e reentrar na circulação econômica e perpetuar o referido ciclo.

Tanto OCCEs como OCREs utilizam sistematicamente a lavagem de dinheiro em paraísos fiscais para “legalizar” seus lucros, e no processo, deixam como pedágio propinas aos agentes do Estado encarregados da “repressão” aos crimes financeiros. Agentes que por sua vez são subordinados a mandatários e políticos, que por sua vez, se utilizam dos mesmos esquemas para guardar dinheiro público desviado.

As finanças internacionais não funcionam sem os canais “alternativos” que permitem deslocar enormes massas de valor do capital especulativo ao arrepio das regulamentações estatais e internacionais. Essa incômoda verdade precisa ser continuamente varrida para debaixo do tapete toda vez que ela ameaça vir à tona trazendo consigo a embaraçosa obviedade de que esses mesmos canais alternativos servem também como escoadouro para o chamado “dinheiro sujo” (como se houvesse em algum lugar “dinheiro limpo”) do terrorismo e do “crime”.

Nem sempre é tão fácil esconder tanta sujeira embaixo do tapete. Há realidades que nem mesmo toda a mídia do mundo, por mais mercenária que seja, consegue ocultar. Por mais que se deseje ocultar a sua face desagradável, a concorrência capitalista insiste em se fazer valer, expondo toda sua irracionalidade e violência. Como em todo negócio capitalista, também as atividades das OCREs estão sujeitas à tradicional disputa que opõe varejistas a atacadistas. As organizações do tráfico e de outras atividades reprimidas pelo Estado (ou seja, o varejo do crime) precisam negociar suas margens de lucro com a polícia, os bancos, os políticos, etc. (os atacadistas do crime), encarregados de fazer a reciclagem do “dinheiro sujo” longe das vistas do público em geral. Tradicionalmente, a negociação entre varejistas e atacadistas em qualquer ramo se faz por meio de barganhas, blefes, bravatas, propinas, etc. No caso da relação altamente promíscua entre as OCREs e OCCEs, a negociação se faz por meio de demonstrações de força.

Eventualmente, os agentes do Estado forçam também uma renegociação do preço de sua conivência, exigindo uma fatia maior do bolo. Para isso montam o teatro de que estão “reprimindo o crime” e prendem alguns laranjas e peixes pequenos. Em outros momentos, certas organizações lutam para aumentar o espaço de poder informal de que desfrutam na sociedade, usando de força contra o Estado para obrigar o aparato repressivo a negociar. Em todos esses casos, usualmente, a negociação das margens de lucro se faz às custas das vidas de policiais e moradores da periferia.

Madrugada de mortes

Foi o que aconteceu no fim de semana do “dia das mães” de 2006, culminando na segunda-feira 15 de Maio, o dia em que São Paulo parou. O PCC desfechou uma série de ataques contra a polícia na cidade de São Paulo e na região metropolitana, combinada com rebeliões de presos em dezenas de cadeias na Grande São Paulo e no interior (que inclusive irradiaram-se para outros estados) e atentados contra ônibus na capital. O efeito combinado dessas iniciativas foi o suficiente para paralisar a principal metrópole do país. Perplexidade, histeria, pânico em escala massiva. Boataria e ameaças: bomba em aeroporto, em estação de metrô, na faculdade Mackenzie (onde o hoje governador foi reitor). Ninguém confirma nada, mas também ninguém nega categoricamente. Vive-se a mais angustiante incerteza. Toque de recolher decretado pelo PCC e desmentido pela polícia. Na dúvida, empresas fecharam as portas, escolas dispensaram os estudantes, milhões voltaram para casa mais cedo, ninguém saiu à noite.

Instalou-se um clima de filme “trash”, um surreal “Madrugada dos mortos” no mundo real. Era como se um exército de zumbis estivesse nas ruas, faminto por cérebros dos vivos. Os Cavaleiros do Apocalipse estavam à solta. O Fim dos Tempos havia chegado. Houve choro e ranger de dentes. A morte estava à espreita. A qualquer momento, a face do mal poderia despontar do outro lado da janela, na próxima esquina, do lado de fora do carro. O homem tornou-se o lobo do homem. O seu semelhante tornou-se o seu inimigo. Salve-se quem puder. A guerra foi declarada.

Essa retórica apocalíptica resume o tom dos noticiários e das conversas durante o acontecimento e imediatamente depois. Ao paralisar São Paulo, o PCC paralisou o Brasil. A mídia brasileira é paulistocêntrica. Sua programação reflete os interesses do baronato financeiro encastelado na Avenida Paulista. A Avenida Paulista viveu o pânico de ver a cidade sob seus pés paralisada de forma inédita e irradiou esse pânico para o restante do país ao qual televisivamente coloniza. O capital ali sediado amargou o prejuízo causado pela paralisação da economia, e isso, mais do que a perda das vidas dos policiais atacados, deve ter enfurecido as redações dos seus órgãos de imprensa mercenários.

Um país em guerra

Excluindo-se essa abordagem sensacionalista espalhafatosa e desproporcional, não houve novidade alguma nos acontecimentos de 15 de maio. A segunda-feira “surreal” de 15 de maio de 2006 é a rotina dos 364 dias restantes do ano na periferia. O confronto entre a polícia e as OCREs deixa suas baixas diariamente nas periferias das grandes cidades. O Brasil está em guerra civil. Os números da violência contabilizam milhares de mortes por armas de fogo todos os anos, uma estatística compatível com a de países conflagrados em guerra aberta. Os assassinatos são a maior “causa mortis” da população jovem masculina entre 15 e 30 anos, batendo de longe qualquer doença. Por conta desse massacre cotidiano, está em curso uma importante mudança no perfil demográfico da população: jovens negros do sexo masculino são uma espécie em franco declínio.

Só não enxerga essa realidade quem não quer. E não é muito difícil deixar de querer, pois basta seguir a programação padrão da mídia produzida para as camadas médias teimosamente imersas em seu patético conto de fadas. Empurra-se a “questão da violência” para debaixo do tapete da pasmaceira hedonista, consumista, inculta, pornográfica e vulgar que ocupa 99% das TVs, rádios, jornais e revistas. Apenas ocasionalmente, por alguma conveniência política torpe (campanha em favor da pena de morte, etc.) se permite um vislumbre distorcido do “monstrengo social” que dormita sob as camas da pequena-burguesia neurótica.

Mesmo assim, quem quiser encontrar notícias da nossa guerra civil não precisa ir muito longe. Todas as manhãs as páginas policiais dos jornais registram friamente as baixas da carnificina nas favelas: 5, 10, 15 mortos em chacinas. Mortos em confronto com a polícia, ou com outros “criminosos”. Mortos cujos nomes não aparecerão na televisão, quase sempre negros, desempregados e de baixa escolaridade. Mortos porque estavam no lugar errado na hora errada, porque reagiram, porque não reagiram, porque disseram alguma coisa, porque não disseram nada, mortos sob qualquer pretexto ou pretexto nenhum. Mortos porque estão “ligados ao tráfico”. Mortos porque são “criminosos”.

Criminosos segundo quem? Segundo a própria polícia? Segundo os jornais? Os mortos da periferia são executados por assassinos que nunca serão identificados. A polícia nunca esclarece esse tipo de crime, a justiça não julga nenhum desses assassinos, ninguém nunca é condenado pela morte de favelados. Os únicos condenados são os próprios mortos, executados sumariamente, sem direito de defesa, prisão especial, “hábeas corpus” e outras regalias.

Do ponto de vista da ordem estabelecida, enquanto os favelados estiverem matando uns aos outros, isso não será problema, e se a polícia os estiver matando a todos, melhor ainda. O problema acontece quando o morticínio transborda da periferia para os bairros burgueses e atinge a turma “do asfalto”, como se diz no Rio de Janeiro (cidade já de há muito habituada a surtos esporádicos, mas renitentes de “violência”, como o deste sauceiro que o PCC protagonizou em SP). Aí, subitamente, “a sociedade” descobre a existência da “violência”, por sentir na pele, por um dia, o que é o inferno que a periferia vive o ano inteiro. O dia 15 de maio generalizou a realidade da periferia para o conjunto da cidade. Isso colocou o assunto em pauta de uma forma explícita, como se só então ele se tornasse digno de ser discutido.

Para além do factóide

Isso certamente se deveu ao fato de que a iniciativa dos ataques coube à facção PCC. A organização atacou a polícia e provocou cerca de 40 mortes. Em represália, a polícia reagiu e matou em torno de 150 “suspeitos”. Depois da guerra propriamente dita, veio a guerra de boatos. Há quem acredite que as ações da polícia transcorreram na mais estrita legalidade, em obediência aos mais rigorosos procedimentos de investigação policial, recorrendo ao uso da força somente nas situações que o justificassem. Há quem dispense esse discurso pequeno-burguês hipócrita e diga claramente que “a polícia tem mesmo é que matar tudo que é bandido”.

De outro lado, há quem acredite que a polícia matou a esmo e também aproveitou para se vingar de elementos indesejáveis. Há quem diga que setores da polícia se comportam como uma quadrilha entre outras, disputando espaço e fatias do lucro com facções do narcotráfico e de outros “negócios ilícitos”. A polícia é tão odiada na periferia quanto o PCC ou qualquer organização equivalente, pelo regime de terror e arbítrio que impõe. É preciso ter isso em mente se se quer tirar as devidas conseqüências políticas do fenômeno representado pela eclosão da guerra entre o PCC e a polícia.

A guerra é a continuação da política por outros meios, segundo o general prussiano Von Clausewitz, opinião endossada por Marx e Engels. A guerra do PCC contra a polícia, além de uma operação de guerrilha urbana, adquiriu também os contornos de um manifesto político. O PCC se apresentou à sociedade como força política (ainda que não tenha propriamente um programa político, conforme discutiremos adiante). É preciso avaliar o conteúdo social dessa força política.

A origem social do PCC está nas penitenciárias do estado de São Paulo. Sua certidão de nascimento é o massacre do Carandiru. O massacre provou que a população carcerária está indefesa contra o Estado. Num país em que não há emprego, não há moradia, não há escola, não há hospital, não há transporte público, não há cultura, não lazer, etc; também não há prisões. Há masmorras medievais. O sistema prisional descumpre totalmente a sua função legal de ressocialização e reeducação dos apenados. Funciona como um depósito de gente, um sorvedouro voraz e cada vez mais insaciável. A população carcerária dobrou em São Paulo na última década, chegando perto de 150 mil condenados.

Em face da barbárie que reina nessas masmorras, com mortes, estupros, espancamento, tortura, arbítrio, abusos, humilhação, insalubridade, superpopulação, privações, violências de todos os tipos, etc., o PCC representa inquestionavelmente um esforço de organização da população carcerária para tentar reagir. Apesar de todas as distorções que discutiremos a seguir no que diz respeito ao seu “projeto”, a organização teve um papel decisivo enquanto expressão de uma tentativa da população carcerária de reagir aos maus tratos a que os presos são sistematicamente submetidos.

A ação do PCC teve inegáveis efeitos políticos. Essa afirmação não se refere ao mesquinho jogo eleitoral, em que a notória falência do sistema prisional e de segurança pública, terreno em decomposição no qual germinou o PCC, acaba inevitavelmente sendo debitada na fatura da dinastia tucana paulista e seu frio e senhorial desprezo para com todos os serviços públicos e sociais. Foi por essa via que as gangues partidárias rivais do tucanato exploraram eleitoralmente o fato. Inclusive Heloísa Helena, para indelével vergonha dos agrupamentos que a acompanham em coligação eleitoral, e que sabidamente não são gangues, porque não são como os partidos burgueses. Todos sugeriram oportunisticamente em uníssono que a solução para “o problema da violência” estaria em mais presídios e mais policiamento.

Essa abordagem também peca por unilateralismo, pois supõe que a solução para o problema estaria em que a polícia existisse e funcionasse, a justiça existisse e funcionasse, os presídios existissem e funcionassem, etc. Essa suposição se baseia no raciocínio de que uma simples mudança quantitativa no orçamento, estrutura e pessoal dos serviços públicos, entre os quais a segurança, resolveria todo e qualquer problema, ignorando a necessidade crucial de uma mudança qualitativa e radical nos seus métodos e conceitos. Esse raciocínio está na mesma linha daquele que julga que a solução para o problema da educação estaria em que se construíssem mais prédios escolares. Em todas as questões sociais, vigora esse pensamento quantitativo, produtivista, que ignora, ou finge ignorar, a necessidade indicada de uma mudança radical e qualitativa de métodos e conceitos, seja na escola, seja na saúde pública, na segurança, etc.

Mas conforme foi dito, não é disso que se trata. Não estamos discutindo os diversos programas apresentados para tratar das situações imediatas. O efeito político mencionado acima se refere ao fato de que a declaração de guerra ao Estado pelo PCC produziu um reposicionamento das classes e frações de classe em relação ao papel do Estado na repressão à “violência”.

O crime e a luta de classes

De um lado, a burguesia e a pequena-burguesia vão pedir “rigor contra os criminosos”, “rigor no cumprimento da lei”, “punição exemplar”, “mudanças na legislação”, “leis mais duras contra os ‘criminosos’” etc. Ou, dispensando os eufemismos, vão pedir diretamente a pena de morte, de preferência aquela a ser aplicada no ato pelo próprio policial, o qual é assim ilegalmente investido dos poderes de juiz, júri e carrasco. Apresentadores de TV proto-fascistas vão latir e espumar em defesa do “cidadão de bem”, “cumpridor dos deveres” e “pagador de impostos”. Vão dizer que o exército tinha que intervir, que “bandido bom é bandido morto”, etc.

Boa parte da “opinião pública” em geral e da própria classe trabalhadora vai comprar essas idéias, que contrabandeiam um mal-disfarçado e patológico ódio de classe para o discurso sobre as questões sociais. A opinião pública vai assim esquecer o fato elementar de que o combate ao “crime” por meio da intensificação da repressão, num país em que a imensa maioria da população vive num estado de calamitosa miséria, equivale a combater a umidade enxugando gelo. A miséria capitalista produz cotidianamente novas levas de recrutas para o exército do PCC, que crescerá a despeito de quantos de seus soldados forem encarcerados (ou mortos, como prefere a burguesia). Não há e não haverá aparato repressivo capaz de dar conta dessa “população excedente”, cada vez mais insolente e insubmissa. Eis o óbvio ululante da “questão da violência” brasileira.

Até um quadro da burguesia como o governador Cláudio Lembo foi capaz de dizer que a culpa do recrudescimento da “violência” é da mesquinharia da elite branca. Mas essa percepção dos fatos, embora correta, é minoritária. O que prevalece é a idéia de que “bandido bom é bandido morto”. Nesse sentido, a ação do PCC foi contraproducente enquanto estratégia de enfrentamento. Colocou a sociedade contra si e contra o seu elemento social de origem. O conjunto da sociedade vai reagir exigindo dureza contra o “crime”, e isso vai se materializar no agravamento da opressão carcerária e do arbítrio policial na periferia.

De outro lado, há a reação das classes sociais de onde emergem os componentes do PCC. Do seu ponto de vista, o duelo entre o PCC e a polícia é um duelo entre duas máfias. As duas são violentas, as duas são abusivas, as duas matam sem critério e sem controle, roubam, extorquem e oprimem. Mas a polícia conta com completa impunidade, devido à “legitimidade” que as classes superiores da sociedade lhe conferem.

A verdadeira imagem da polícia está nas cenas de sua ação na Favela Naval em Diadema, periferia da Grande São Paulo, flagrada pelas câmeras de TV há poucos anos. Aquele comportamento dos policiais é a regra e não a exceção. Naquele momento, houve escândalo geral, mas tão logo os holofotes da TV se afastaram, as mesmas cenas voltaram a se repetir e se repetem amiúde. Por isso, a polícia é tão odiada quanto os “criminosos”, ou no mínimo, tão temida quanto. Diante de acontecimentos como os de 15 de maio, a juventude da periferia não tem dúvidas quanto a que lado escolher. As pichações nos muros das escolas registram o placar: 1 x 0 para o PCC.

O crime e o Estado

Esse é o fato político mais relevante, o descolamento da população miserável das periferias em relação ao “Estado de direito”. O Estado nunca foi seu, nunca esteve presente, nunca ofereceu serviços básicos, nunca se interessou pelas condições de moradia, de saúde, de educação, etc., dessa população. É natural que esse segmento social não nutra nenhuma simpatia pelo Estado. O Estado não lhe pertence, não lhe representa, não fala em seu nome, não lhe subordina e não goza de autoridade e reconhecimento. O Estado inspira apenas desconfiança, ódio, medo e desprezo, e tem feito por merecê-los.

Em muitas regiões da periferia, quem exerce poder de polícia e de justiça é o tráfico, que julga e executa conforme suas próprias “leis”. O “crime organizado” centraliza e disciplina o “desorganizado”, vigiando e punindo assassinatos, assaltos, estupros, etc.; proporcionando a “ordem pública” que o Estado é incapaz de fornecer. As OCREs fazem isso no interesse da continuidade de seus negócios com as drogas. Os moradores da periferia pragmaticamente sabem que a autoridade a obedecer é a autoridade do chefe do crime local. Para o bem ou para o mal, independente de quão benevolente ou arbitrário seja esse poder, esse é o poder de fato a ser levado em consideração.

Da mesma forma, as autoridades penitenciárias não conseguem administrar os presídios sem a “colaboração” das forças internas que se estruturam em seu interior. O Estado não cumpre seu papel legal, e seus agentes armados transformam a proximidade com essa realidade em promiscuidade, associando-se às OCREs, corrompendo-se e desmoralizando-se. São organizações formadas pelos próprios presos que mantém a ordem no interior das prisões. Todos os carcereiros e administradores penitenciários sabem disso. Muitos inclusive lucram como isso. Permitem que os próprios presos entrem e saiam, assim como seus celulares e drogas, desde que paguem sua cota.

As organizações do “crime” se transformaram em instituição repressiva “terceirizada”. O PCC mantém as presidiárias e as periferias “sob controle”, já que o Estado não é capaz de cumprir esse papel. As ramificações do Estado que intervém na linha de frente da “questão social”, como a polícia e mesmo as escolas, adaptam-se à realidade que não conseguem transformar, colaborando para a manutenção da barbárie. Na sociedade de classes, o Estado existe apenas para manter as classes dominadas sob controle. Num país miserável como o Brasil, isso se manifesta como omissão, conivência, cooptação, corrupção e associação dos agentes do Estado pelas forças da barbárie.

O Estado capitalista periférico de fato não existe para servir à população nativa, e muito menos à população das periferias. Existe para servir ao grande capital global e disciplinar a população nativa por meio da força física e armada; e por meio de todos os instrumentos do multifacetado e complexo arsenal de coerção ideológica (familiar, escolar, clerical, publicitária, etc.) e de bestialização cultural. Em relação à periferia, o imperativo sistêmico se cumpre sob a forma de ausência. Todos os serviços públicos estão ausentes (não há escolas, não há hospitais, não há saneamento básico, não há transporte público, não há fornecimento de água potável e eletricidade, não há lazer e cultura, etc.). O único serviço público realmente presente é o único verdadeiramente essencial para a defesa material da ordem, ou seja, a polícia.

E a polícia não está presente para manter a paz e defender essa população, mas para massacrá-la como os demais chefes do crime fazem. A polícia reprime, oprime, discrimina, hostiliza, extorque, enquadra, dá “geral”, agride, espanca, tortura, mata. O PCC se contrapôs a esse Estado. Logo, do ponto de vista da base social de onde emergem as OCREs, especialmente da juventude, o PCC assumiu a sua representação e sua defesa. Essa é a percepção que uma significativa parcela da população da periferia tem dos fatos de 15 de maio. Não cabe aqui por enquanto discutir o quanto há de equívoco nesta percepção. O que importa é assinalar o fato objetivo de que ela existe.

Esse simples fato, para além de qualquer consideração adicional, é suficiente para apontar uma conclusão de importância crucial: se o PCC aparentemente assumiu aos olhos dessa fração da população a sua defesa e representação, isso somente pôde se dar por conta de uma tremenda omissão dos partidos de esquerda, especialmente dos que reivindicam a revolução social. A ruptura da população mais oprimida não se dá apenas ao nível de sua relação com o Estado, mas também em relação ao conjunto das forças políticas (partidos), inclusive da esquerda, que não souberam cumprir esse papel de representação e defesa da população mais pobre.

Mão de obra barata

O PCC se apresentou como força política, quer o tenha feito de maneira consciente, quer inconscientemente, mas não possui propriamente um “programa” político. O seu programa é o enfrentamento com o Estado, nos marcos de uma concorrência inter-capitalista. A sua oposição é apenas nominal e formal. Não constitui uma contradição com o capitalismo, visto que o crime, como vimos, é somente mais um negócio capitalista. A oposição do “crime” ao Estado se situa na ordem daquela que opõe sócios de um mesmo negócio em relação às suas respectivas margens de lucro.

Isso significa que, do ponto de vista da totalidade do processo social, o potencial transformador da “rebelião do crime” é insignificante ou inexistente. Por mais espetacular que seja o seu gesto marquetológico de atacar as autoridades. Para entender qualquer gesto político na sociedade de classes, é preciso investigar os seus condicionantes sociais. A política é a forma superestrutural de expressão da luta de classes que se trava no interior da infra-estrutura da sociedade. Qual é a classe social representada pelo PCC e qual o “projeto social” representado por essa classe?

O PCC nasce de um setor que está abaixo dos mais explorados entre os explorados, os trabalhadores precários, informais e desempregados das periferias mais miseráveis. O exército industrial de reserva. Abaixo desse setor está o lúmpen, a subclasse que não tem mais qualquer projeto de integração à sociedade. É nesse setor que organizações como o PCC recrutam sua mão-de-obra. As fontes de recrutamento têm se tornado cada vez mais abundantes, visto que cresce cada vez mais o setor da classe trabalhadora que não tem mais qualquer possibilidade de ser integrado ao sistema. Na atual conjuntura, o chamado exército industrial de reserva é cada vez menos industrial e cada vez mais uma reserva perpétua.

A reestruturação produtiva capitalista das últimas décadas produziu o desemprego tecnológico estrutural de massa e permanente. O exército industrial de reserva jamais será convocado para entrar na ativa, pois o sistema já não necessita mais dele como força produtiva. Essa realidade aparece, para a juventude da periferia, como desemprego crônico e vitalício. O capitalismo e o Estado não oferecem mais perspectivas para esse setor. Não há perspectiva de vida e sim de sobrevida. O PCC oferece uma alternativa. Entrar para o crime é uma maneira de não ser vítima dele. O crime proporciona poder, status, dinheiro, bens de consumo e “sex appeal”. Nada é mais natural nesse cenário do que o crescimento das OCREs.

Por outro lado, a classe trabalhadora “incluída” no sistema também não vive, mas sobrevive. Está esmagada por todas as contradições do capitalismo, como aquelas que foram citadas no início deste artigo: a violência, as crises econômicas, o desemprego, a fome, a escassez, a miséria, a doença, a ignorância, o preconceito, a neurose, o desperdício, a poluição, etc. Não há saídas por dentro do sistema para melhorar a vida dessa população. A única saída é a ruptura em direção à construção de uma alternativa societária global.

Gaza é aqui

Não é isto que o PCC está propondo. Sua proposta é um enfrentamento limitado com o Estado, e ainda assim equivocado. Já assinalamos que do ponto de vista estratégico, a sua ação contra as autoridades no dia 15 de Maio resultou numa legitimação da repressão. E quem pagou por isso foram as vítimas mortas pela polícia. Toda guerra serve como pretexto para reforçar o poder do setor mais conservador do aparato do Estado. O PCC proporcionou à ala mais fascistóide da segurança pública paulista a oportunidade para travar sua guerra particular. O “caos” e sua propaganda constante favorecem o Estado burguês e seu aparato repressivo. Daí se explica a atitude sensacionalista e espalhafatosa da mídia em relação à “violência” e a necessidade de produzir o pânico.

Estamos na faixa de Gaza, ou no sul do Líbano, onde o exército israelense diariamente faz sua colheita de corpos de “terroristas”. Estamos no Iraque, onde a CIA diariamente forja atentados contra a população civil em mercados e mesquitas para alimentar a guerra entre facções de “fanáticos fundamentalistas”, ceifando a esmo os súditos da “democracia” iraquiana. Miséria e guerra formam os elos que unem os mais distantes extremos da realidade global. Seja em Gaza, seja na periferia brasileira, o cenário é o mesmo. Tudo serve de pretexto para manter forças de ocupação e de repressão em zonas de miséria, agentes armados atuando sem qualquer controle, exercendo poder de vida e morte e agindo de forma completamente arbitrária e abusiva.

A guerra entre a polícia e o crime não é uma luta entre alternativas reais, é um obstáculo ao desenvolvimento da consciência e da organização popular. A rivalidade, o conflito, o antagonismo permanente e a guerra são condições “sine qua non” da perpetuação da sociabilidade capitalista. O capitalismo prefere manter a população refém da violência da polícia e do tráfico do que admitir o risco de que os revolucionários ganhem a consciência das massas. O “crime” realiza assim uma espécie de divisão de tarefas com o Estado para reprimir os trabalhadores. Tudo o que contribui para impedir a revolucionária unidade das massas exploradas é usado para dividí-las. O capitalismo divide artificialmente o proletariado entre brancos e negros, corintianos e palmeirenses, bandidos e evangélicos, etc. E com isso impede a sua necessária e decisiva unidade de classe.

Do ponto de vista da oposição ao Estado e ao sistema, a censura que se pode fazer ao PCC é semelhante àquela que Lênin dirigia aos setores do movimento revolucionário russo que faziam uso de métodos terroristas. Segundo Lênin, o método dos terroristas para libertar a população russa estava equivocado porque não colocava como protagonista a luta organizada das massas para revolucionar suas condições de vida. A censura é semelhante mas não é igual porque não se pode comparar o PCC com os adversários de Lênin. Os terroristas russos estavam equivocados, mas eram heróis da causa revolucionária. Os soldados do PCC não estão a serviço de nenhuma causa, mas de um projeto que não aponta nenhuma perspectiva transformadora. Nem sequer para a limitada realidade dos presídios que supostamente “legitima” a criação da organização.

Espertamente, o PCC mimetiza o discurso dos movimentos reivindicatórios, e de maneira caricata, se auto-denomina como “partido”. É evidente que não se pode comprar o discurso da mídia sobre os “bandidos”; mas do mesmo modo não se pode também comprar o discurso do próprio PCC ao supostamente se colocar “contra a opressão carcerária”. O PCC se levantou contra a opressão das autoridades, mas instalou a sua própria opressão sobre os presos, os foragidos, associados, familiares, etc. O simples ato de romper a mediocridade da rotina da megalópole capitalista periférica não faz da OCRE uma força libertadora. A violência pura e simples não constrói nada. Seus efeitos são fugazes e enganadores.

Do interior dos presídios, a organização saltou para os bairros da periferia e passou a dirigir “atividades criminosas” também fora das prisões. O projeto dessa empresa capitalista armada é tão destrutivo quanto o das empresas “normais”. A saída representada por essa alternativa é a morte. Morte para todos ao seu redor, para seus membros e seus adversários, e para a população pega no fogo cruzado. Os soldados do PCC vão matar e vão morrer em confronto com a polícia, com outras organizações ou com seus próprios “companheiros” de armas, na disputa interna por frações de poder. A luta do PCC não vai trazer liberdade a ninguém, mas pode trazer dinheiro, prestígio, carros, mulheres para alguns de seus líderes. O lúmpen que ingressa nessa organização tem como objeto de desejo esses ícones do consumismo capitalista (no qual inclusive as mulheres são objetos).

Perguntas

É difícil vislumbrar em tal projeto os traços de um “banditismo romântico” a la Robin Hood. É mais fácil ver nele um elemento da decomposição social, como foi o caso do cangaço nordestino. O qual, aliás, foi empregado pelo Estado para reprimir os verdadeiros revolucionários. Basta lembrar que o notório Lampião recebeu anistia do governo, patente de capitão e benção do Padre Cícero para se engajar no combate à Coluna Prestes. O PCC é o cangaço urbano.

As lições a serem aprendidas pelos revolucionários são de outra natureza. Os ataques de 15 de maio foram apenas o primeiro apito na panela de pressão. A primeira rachadura na vitrine do Brasil neoliberal. O câncer social da miséria capitalista está corroendo o país em suas entranhas. O fortalecimento do PCC é um sintoma dessa doença a exprimir a fragilidade do Estado semi-colonial brasileiro. Um Estado falido, “mínimo”, desmoralizado, incapaz, foi obrigado a negociar com o PCC a cessação das hostilidades. Um punhado de homens armados organizados via celular consegue paralisar a maior cidade do país. Bastou um deles em cada presídio.

O que aconteceria se uma organização realmente revolucionária, com um projeto e um programa revolucionários, tivesse um homem em cada favela do país? O que uma organização revolucionária poderia fazer se tivesse real inserção nas massas, com capacidade para organizar os setores mais explorados da população? Se estivesse dialogando com essa massa, falando sua linguagem, morando em seus bairros, respirando o ar que respira, partilhando dos mesmos sentimentos? São essas as perguntas que a esquerda revolucionária deveria estar se fazendo. As respostas não serão encontradas em antiquados manuais.

Respostas

Toda estratégia de “combate ao crime” que não se baseie num projeto muito mais amplo de erradicação da miséria social não passa de oportunismo eleitoral. A miséria gera o crime, e a miséria só pode ser minorada por meio do movimento organizado da classe trabalhadora. As greves, ocupações, invasões, manifestações, ações diretas coletivamente organizadas, são a única maneira de modificar a realidade em favor dos trabalhadores. Apenas a classe trabalhadora pode transformar a realidade devido ao papel de centralidade que ocupa no sistema capitalista.

As últimas décadas presenciaram um esvaziamento das lutas da classe trabalhadora no Brasil. De um lado, o desaguar de décadas de luta na esterilidade da ilusão eleitoral em torno do PT foi um fator ideológico poderoso de contenção das lutas. De outro, o capital seguiu aplicando seu projeto de “reestruturação produtiva”, que se materializou em desemprego tecnológico, terceirização e precarização do trabalho, produzindo como resultado final a fragmentação da classe trabalhadora, a destruição da sua identidade coletiva e o retrocesso da consciência.

Ambos os processos seguem avançando em nossos dias, com conseqüências cada vez mais nefastas. As conquistas passadas dos setores organizados da classe trabalhadora estão sendo erodidas lenta, mas continuamente, no compasso das sucessivas (contra)reformas neoliberais. O proletariado tem cada vez menos a configuração dos metalúrgicos, petroleiros, bancários, professores e servidores públicos que protagonizaram o ciclo de lutas que deu origem ao PT e à CUT. Tem cada vez mais a imagem dos superexplorados contratados temporários, precários e terceirizados. Os quais estão cada vez mais próximos do subemprego e da economia informal. Economia informal que por sua vez cede cada vez mais contingente para o lúmpen dos desempregados perpétuos.

As organizações políticas da classe trabalhadora perderam de vista essa mudança de localização e de perfil do proletariado, tornando-se assim incapazes de oferecer respostas à altura das atuais necessidades históricas da classe.

A esquerda que se reivindica leninista aponta com presteza os desvios “terroristas” da estratégia do PCC e a sua inutilidade para a luta revolucionária. A luta armada, o “foquismo”, o “guerrilheirismo” e o terrorismo são formas de luta adequadas para situações muito específicas, pois a forma privilegiada de luta do proletariado é a insurreição urbana de massa. Isso permanece válido, mas não pode servir como despistamento para ocultar a contraparte dialética do processo. É preciso criticar o “terrorismo” do PCC, mas é preciso também criticar a omissão da esquerda. O “desvio terrorista” de um PCC desvinculado de qualquer projeto político emancipatório não é senão a contraparte dialética do “desvio pacifista” de uma esquerda incapaz de incorporar ao seu projeto o indispensável conteúdo subversivo.

Se a esquerda não se coloca categoricamente como força a serviço da emancipação e da necessária destruição do sistema, os “criminosos” fazem isso em seu lugar. Os atentados do PCC quebraram a passividade da rotina cotidiana. A rotina bovina dividida entre casa-trabalho-escola e casa-boteco-igreja em que vegeta a classe trabalhadora foi perigosamente estilhaçada pela ousadia dos “criminosos”. A rotina não é indestrutível, provou-se. É essa prova que deve ser aproveitada como ponto de partida positivo. Essa percepção de que a rotina pode ser quebrada está submersa em camadas de confusão ideológica na consciência adormecida das massas potencialmente revolucionárias.

Mas a evidência cabal da destrutibilidade do sistema foi espetacularmente trazida à tona. O pânico e a paralisia da classe dominante no dia em que São Paulo parou não eram o medo da revolução. Mas tiveram um sabor semelhante ao que acontecerá numa revolução. Esse aspecto ficou no ar, em suspenso, à espera da devida síntese conclusiva. Ainda que de forma nebulosa, a evidência da destrutibilidade do sistema continua presente e constitui uma valiosa lição a ser aprendida. E depois de naturalmente armazenada no inconsciente coletivo, deve ser devidamente explorada pelos revolucionários no momento oportuno para os verdadeiros e decisivos enfrentamentos.

A rebelião da periferia, colada com um programa socialista, possui o mais explosivo potencial revolucionário. A juventude da periferia também necessita da experiência radical. A juventude burguesa inventou os esportes radicais, o “bungee jump”, o pára-quedismo, etc. A juventude da periferia saiu para atirar nas delegacias de polícia. Aderir ao crime é o seu esporte radical. É preciso explicar antropologicamente e psicanaliticamente a aparição do PCC. A cidadania burguesa domesticou o animal humano, o crime aparentemente o “libertou”. Mas essa libertação só será completa através da revolução.

O sentido de aventura, de desafio, de perigo, de confrontar-se com o medo, de colocar a própria vida em risco, também é um componente da experiência subversiva e revolucionária de que necessitamos. Se é verdade que as greves, ocupações, invasões, manifestações, ações diretas coletivamente organizadas, são a única maneira de modificar a realidade em favor dos trabalhadores, também é verdade que a revolução não pode se pautar apenas pelo acesso a bens materiais. Deve prover algo mais, um sentido humano e coletivo para a vida.

A maior de todas as revoluções burguesas, a de 1789 na França, começou com a destruição de um presídio: a queda da Bastilha.

Daniel M. Delfino
02/08/2006

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