31.5.07

O equilibrista bêbado: como Lula seguirá traindo os trabalhadores




Há um ditado popular segundo o qual alguém pode enganar muitos por algum tempo, ou enganar alguns por muito tempo, mas jamais enganar muitos por muito tempo. Lula contrariou o ditado, pois segue enganando a uma vasta maioria há bastante tempo, e acaba de reeleger-se para o segundo mandato com uma política absolutamente contrária aos interesses de seus eleitores. Há décadas sustenta-se essa ilusão de que Lula representa os trabalhadores brasileiros, desde quando o ex-metalúrgico era o “líder da oposição”. Mais do que simples engano subjetivo dos eleitores que acompanharam toda sua trajetória, e daqueles que a ela aderiram em 2002 e 2006, trata-se aqui de um processo de inversão ideológica de consideráveis proporções.

A inversão ideológica é o processo por meio do qual uma determinada classe social, no caso os trabalhadores, eleitores de Lula, pode ser levada a endossar os interesses da classe dominante como se fossem os seus próprios. Os trabalhadores seguem acreditando piamente no Estado burguês e no seu salvador da pátria de plantão. Os banqueiros, latifundiários, industriais, especuladores internacionais e corporações transnacionais, verdadeiros senhores do governo Lula, agradecem. A ideologia não é um simples engano, mas um processo social bastante complexo. Para que a inversão ideológica seja eficiente, necessita de determinadas condições materiais.

A viabilidade eleitoral de Lula e a mistificação ideológica correlata se escoram na periclitante viabilidade da gestão neoliberal do capitalismo periférico. A economia brasileira pode arrastar a sua lenta e contínua decomposição desde que o processo seja apresentado como manutenção da “estabilidade”. Nesse ponto a aparência é tudo, a propaganda é a alma do negócio. A burguesia brasileira e seus trôpegos esbirros no Estado equilibram-se como podem na corda bamba do capitalismo global, fazendo o possível para salvaguardar seus ganhos e descarregando os prejuízos no lombo da classe trabalhadora. Para que o embuste funcione é fundamental que o processo apareça de maneira invertida como a única forma possível de “gestão responsável” da economia. Descarregar os prejuízos do capitalismo brasileiro sobre os trabalhadores sem que haja a devida resistência exige uma sofisticada arte. É para esse papel que as habilidades de Lula são requeridas.

A decomposição da economia

É preciso entender as formas concretas pelas quais a economia brasileira tem se relacionado com o capitalismo global para precisar como a sua decomposição afeta de maneira diferenciada as várias classes e frações de classe da sociedade. O padrão deletério de subordinação do Brasil se expressa essencialmente por meio de uma brutal desnacionalização. As variáveis decisivas para o funcionamento da economia brasileira não estão sob controle nacional.

As operações das transnacionais aqui instaladas estão transformando o país em plataforma de exportação para os mercados mundiais. O mercado interno de bens industriais está cada vez mais reduzido. Os bens de maior valor agregado, que exigem tecnologia avançada, investimento em pesquisa científica, mão de obra qualificada, etc., não são projetados e nem sequer inteiramente fabricados aqui, apenas montados. O setor dinâmico do capitalismo, que nunca se instalou completamente no Brasil, está indo embora antes mesmo de ter chegado. Está em curso uma violenta desindustrialização, que se dá pelo fechamento de fábricas, pela dissolução das cadeias produtivas, pela perda de tecnologia.

E evidentemente, pelo desemprego. O modelo de plataforma de exportações exige o rebaixamento dos custos com mão de obra em cada país aos padrões internacionais, ou seja, ao nível mais baixo possível, determinado pelo de países onde a força de trabalho é praticamente semi-escrava, como a China. Para se adaptar a essa estrutura de custos em escala mundial, as transnacionais precisam ter a “flexibilidade” para se desfazer de estoques de mão de obra tornados “supérfluos” num determinado elo nacional da cadeia global do capital. Ou seja, precisam ter a liberdade para, a qualquer momento, em qualquer país onde estejam instaladas, demitir, rebaixar salários, precarizar condições de trabalho, etc. É por isso que o capital exige também o fim dos contratos coletivos, das organizações sindicais, das normas de proteção ao trabalhador, impondo a terceirização e outras formas de superexploração.

Ao mesmo tempo, aumentam as exportações de produtos agrícolas e bens primários. Há mais de uma década o “agro-business” se tornou a principal fonte de superávit na balança comercial. Se no período colonial tivemos o ciclo da cana de açúcar e no Império o do café, o neocolonialismo do século XXI nos trouxe ao “ciclo das commodities”. Florestas estão sendo derrubadas para dar lugar a plantações de soja, de cana de açúcar (para produção de etanol) e pastagens para o gado. Em algumas décadas, um solo antes exuberante terá se transformado em vastas extensões estéreis de terra desertificada. Mas até lá, os latifundiários e seus sócios nas transnacionais transgênicas já terão faturado a sua parte e a nossa “balança de pagamentos” apresentará “números equilibrados”. O futuro está sendo irresponsavelmente hipotecado para cobrir os desfalques do presente. Nesse quesito, os predadores que atualmente saqueiam o Brasil se beneficiam também de uma conjuntura externa excepcional na qual a forte demanda internacional por “commodities” favorece extraordinariamente as exportações.

A balança comercial favorável tem sido o principal sustentáculo da propalada “estabilidade” da economia. Isso a despeito de que o real esteja supervalorizado em relação ao dólar, o que origina constantes queixas dos exportadores. O estreitamento do mercado interno, por sua vez, incomoda a burguesia industrial. O único setor beneficiado em tempo integral é o mercado financeiro, onde os bancos e os especuladores faturam fortunas à custa dos títulos públicos, indexados a juros estratosféricos.

Haja o que houver, o pagamento dos juros da dívida pública deve ser preservado como prioridade absoluta do governo. Todos os demais gastos podem ser “contingenciados”. Os investimentos públicos, os programas sociais, a educação, a saúde, o saneamento, a infra-estrutura, os aposentados, os servidores públicos; tudo é colocado para escanteio no momento de decidir o que deve ser pago e o que pode esperar: a dívida pública é o único compromisso sagrado. Esse compromisso é o único que é cumprido religiosamente, não admitindo sequer a mais leve cogitação de que seja interrompido, sob pena de desencadear a ira do mercado e a pronta condenação por parte dos editorialistas de economia na mídia burguesa.

O programa da burguesia.

Esse modelo de “gestão responsável” da economia possui margens estreitíssimas de manobra. Não é fácil preservar uma “estabilidade” sempre precária. De todos os lados surgem clamores por modificações que possam tirar o país do marasmo das “décadas perdidas” sem crescimento. Mas as mudanças cogitadas situam-se sempre no patamar de alterações infinitesimais na taxa de juros, no câmbio, na “meta de inflação”, etc. Nada que possa resolver de fato uma situação estrutural de decomposição e desnacionalização avançada. E muito menos, nada que possa resolver os problemas da classe trabalhadora. O governo Lula tenta se mover no interior dessas margens estreitas, sem ousar jamais empreender qualquer movimento capaz de subtrair o país dessa lógica nefasta.

É por isso que o seu governo se resume a um exercício constante de puxar o cobertor, ora para cobrir os pés, ora a cabeça. O cobertor é simplesmente curto demais, já que, como foi dito, a dívida pública é o único compromisso sagrado, cumprido religiosamente, e não sobra mais nada para cobrir o restante. Esse exercício constante de inutilidades da obtusa política econômica “ortodoxa” precisa contentar a cada momento um setor diferente da burguesia: ora os exportadores, ora os industriais, e sempre os banqueiros. Ao mesmo tempo, é preciso engendrar alguma pirotecnia, como o Fome Zero no primeiro mandato, e agora o PAC, para dar assunto para os jornais e deixar a opinião pública discutindo inutilmente sobre as futilidades de ocasião.

Entretanto, isso parece ainda ser pouco. A burguesia reagiu ao PAC sem o menor entusiasmo. Seus porta-vozes na imprensa fizeram questão de lembrar que o pacote proposto está longe de ser o bastante para “destravar o crescimento” (leia-se, os lucros da burguesia). O capital quer sangue. Todas as formas clássicas de diminuir os custos, como as demissões, arrocho salarial, terceirização, precarização, deterioração das condições de trabalho, etc.; precisam cronicamente ser reforçadas pelo saque direto aos fundos públicos produzidos pelos trabalhadores. Os fundos administrados pelo Estado para cobrir as despesas com previdência e assistência social estão na mira dos abutres do mercado.

A mídia burguesa, portando-se com a cafajestagem que lhe é peculiar, não pára de bombardear a opinião pública com a mentira do déficit da previdência, de modo a aplainar terreno para a reforma que se anuncia como “urgente” e “inevitável”. Ao mesmo tempo, fala-se também na necessidade de “flexibilizar” a legislação trabalhista (ou seja, cortar direitos históricos e devolver o proletariado brasileiro aos primórdios da revolução industrial), e como medida paralela, reformar a legislação sindical (ou seja, burocratizar ainda mais os sindicatos para perpetuar a ditadura das atuais direções petistas e truncar no nascedouro qualquer possibilidade de resistência e luta).

O anúncio do PAC não pôde obscurecer a evidência de que as reformas da previdência, sindical e trabalhista, etc., que são as medidas efetivamente desejadas pelo capital, continuam na pauta. O PAC é apenas a oferta inicial de Lula para começar a negociar com a burguesia os rumos do 2º. mandato. As contrapropostas estão sendo feitas no bojo do arrastado processo de composição do ministério (ou seja, loteamento do Estado pelas camarilhas partidárias). Ao dar a cada um a sua parte, Lula espera soldar a unidade com a burguesia para somente então desferir o golpe de misericórdia das reformas.

Mas o fato de que seja apenas uma distração pirotécnica, acochambrada às pressas para dar aos jornais algo que comentar até a apresentação definitiva das reformas, não faz com que o PAC seja inofensivo. Pelo contrário, trata-se sim de um ataque bastante sério, que inclusive antecipa sub-repticiamente alguns pontos das reformas. O PAC consiste num programa para dar isenção de impostos para os empreendimentos da burguesia e fornecer infra-estrutura para esses empreendimentos à custa de dinheiro público (através das PPPs que vão produzir centenas de crateras pelo Brasil como a do metrô de São Paulo). Ao mesmo tempo, para cobrir o rombo causado por esse saque aos cofres públicos, anuncia-se o arrocho salarial (congelamento dos salários e superexploração dos servidores), o achatamento das aposentadorias (desvinculação dos reajustes do índice de correção do salário mínimo) e o corte de despesas públicas (dos gastos em saúde, educação, etc.). Aquilo que é apresentado como solução de todos os problemas é na verdade um conjunto de ataques que precisa ser combatido pela organização dos trabalhadores.

O impacto sobre a classe trabalhadora

As diferentes frações da burguesia digladiam-se em busca das formas de assegurar seus lucros num mercado em contínuo estreitamento. O acirramento da concorrência, ao invés de produzir benefícios para o consumidor e para “a sociedade em geral”, como deliram os manuais acadêmicos de economia, faz com que a burguesia corra para buscar socorro nos cofres do Estado. Ao Estado, pois, na sua qualidade de comitê gestor dos negócios capitalistas, cabe tomar as devidas medidas, como o PAC, para relançar a lucratividade dos empreendimentos. Mas o Estado neocolonial brasileiro já tem um dono, o capital financeiro internacional. Portanto, sobram pouco mais do que migalhas para essa lumpem-burguesia nacional. A única solução, do ponto de vista da classe dominante, é atacar os trabalhadores.

Como foi dito, essa é a função de Lula. O ataque aos trabalhadores precisa ser distribuído de modo a impedir que a resistência se unifique. É preciso dividir para conquistar. A classe trabalhadora não é homogênea, pois se divide em diversas frações e setores. Há uma gradação de diferentes condições de organização que vai desde os setores mais estruturados, que pertencem a categorias com fortes sindicatos e organismos de representação, até aqueles que estão no mercado informal, fazendo “bicos”, desempregados, à beira da indigência, etc. A tática de Lula no governo consiste em impedir que todos esses setores se unifiquem numa perspectiva classista. Se o grau de consciência de classe do proletariado brasileiro já era baixo, o PT fez com que se rebaixasse ainda mais, desde quando ainda era “oposição”, ao deslocar todas as forças sociais mais organizadas que o apoiavam para a via morta da disputa eleitoral.

Como decorrência dessa estratégia petista, essas forças sociais mais coesas abandonaram o enfrentamento cotidiano com o capital e tornaram-se vítimas passivas de um retrocesso avassalador. A ofensiva do capital desfechada em nome da “reestruturação produtiva” instaurou o paradigma da competição individualista no interior dos locais de trabalho, destruindo os laços de solidariedade de classe, o sentimento de pertencimento a uma coletividade e os pilares de uma visão ideológica alternativa de mundo. Há cerca de duas décadas a classe trabalhadora brasileira experimenta um processo de decomposição material, organizativa e ideológica. Os setores mais organizados, como os servidores públicos, professores, bancários, petroleiros, metalúrgicos, etc., estão sendo violentamente esmagados por demissões, arrocho salarial, perda de direitos, terceirização, precarizações, deterioração das condições de trabalho, etc.

Entretanto, esse setor foi justamente aquele cujas lutas na década de 1980 serviram para construir o PT e a CUT. E hoje é justamente o grupo lulista no PT e na CUT que controla de modo ferrenhamente stalinista os sindicatos e organismos de representação da classe. O controle stalinista do PT asfixia a democracia interna nesses organismos e impede que neles ocorram o debate, a organização e a mobilização. Não se organizam greves, não se realizam assembléias, não se publicam boletins sindicais, não se desenvolvem atividades culturais e de formação. Desaparece a perspectiva classista. Sem organização e representação adequadas as lutas não se desenvolvem. A revolta contra as situações de superexploração e abuso, que explode naturalmente em cada indivíduo no seu cotidiano de trabalho, se transforma em desespero mudo e isolado. O horizonte do coletivo como fundamento material e ideológico para a resistência se dissolve e os planos da burguesia passam sobre esses trabalhadores como um rolo compressor.

Entre a perplexidade, o desânimo, a frustração e a decepção generalizados, uma geração de lutadores vai para casa, se acomoda, deixa de combater, à espera da aposentadoria (enquanto ainda existe aposentadoria). Esvai-se no esgoto da traição petista a memória da tradição de organização coletiva e luta dos batalhões pesados do proletariado brasileiro. Logo, o setor que é justamente aquele teria melhores condições de reagir contra o ataque geral aos trabalhadores está de mãos atadas, prostrado de joelhos antes mesmo de entrar em combate.

Ao mesmo tempo em que acorrenta os setores mais organizados e de maior tradição de luta, o governo anestesia a miséria dos setores mais desorganizados através de políticas compensatórias como os bolsa-esmola, pró-Uni, etc.; de acordo com a receita neoliberal do Banco Mundial para aplacar os miseráveis nos países periféricos. Assim, Lula pode aparecer demagogicamente como “pai dos pobres”, ao mesmo tempo em que atua concretamente como mãe dos ricos. As políticas compensatórias propiciam o aliciamento clientelista do eleitorado, tornando os trabalhadores mais pobres fanaticamente leais a Lula, mas não lançam nenhuma base sustentável para que essa população possa sair da eterna situação de dependência, porque isso exigiria uma mudança completa do sistema social e econômico.

Essa mudança está fora de qualquer cogitação. As mudanças planejadas para o 2º. mandato de Lula são as chamadas “reformas” neoliberais, que vão no sentido oposto. Na verdade, são contra-reformas que no limite reduzirão todo o proletariado brasileiro a uma gigantesca massa pauperizada, flexível, descartável, disponível, desfrutável e barata. A burocracia petista fará o meio de campo entre essa massa desorganizada e barbarizada e os gerentes das transnacionais. E com a cumplicidade mercenária da canalha midiática, poderá apresentar os trabalhadores organizados que ousarem resistir como “privilegiados” que não reconhecem “tudo que está sendo feito pelo país”.

A armadilha eleitoral

Não será do bolso da burguesia, presenteada com mais e mais isenções de impostos, que sairá o dinheiro dos “investimentos” do PAC e dos bolsa-esmola, mas dos próprios trabalhadores: dos cortes de gastos na educação e na saúde, da tributação regressiva, do arrocho salarial dos servidores, do congelamento das aposentadorias, etc. Ao invés de lutar contra os limites do capitalismo selvagem, os trabalhadores brasileiros são convidados por Lula a colaborar com a burguesia, financiando a estabilidade dos lucros da classe dominante nacional e internacional (e com as migalhas que sobram, financiando a esmola que aquieta os mais pobres entre os pobres).

A assim chamada “estabilidade” da economia se escora numa bolha de pseudo-prosperidade capitalista. Essa pseudo-prosperidade é frágil como uma bolha de sabão quando confrontada com a virulência das crises do mercado global que fatalmente a abaterão, mais cedo ou mais tarde, mas tem se mostrado resistente como uma muralha para conter a possibilidade de que a classe trabalhadora se organize e se mobilize para conquistar suas reivindicações históricas. O PT se agarrou a essa bolha de pseudo-prosperidade como limite de toda política, ou como diria o próprio FHC, como “utopia possível”. E com a adaptação do PT a esse programa (adaptação que, aliás, já vem de longa data), o proletariado brasileiro ficou órfão de uma autêntica perspectiva de classe.

Diante dos ataques que os trabalhadores já vêm sofrendo há décadas na esteira da chamada “reestruturação produtiva”, o PT, enquanto direção reconhecida pelas massas, demonstrou a mais vil cumplicidade com os planos do inimigo de classe. A chegada de Lula ao governo em 2002 foi somente o complemento de uma longa trajetória de traição de classe e acomodação. A burguesia perdeu a credibilidade para administrar a catástrofe social brasileira com seus próprios quadros e precisou a contragosto terceirizar o serviço para os neopelegos do PT. E os neopelegos desempenharam a função com tal empenho que tornaram-se idênticos aos políticos tradicionais. O PT se transformou num partido burguês sem burguesia. Essa mutação já estava esboçada há décadas no programa de colaboração de classe, mas somente veio à tona definitivamente através dos escândalos de corrupção, de mensalão a dossiê, passando por dólares na cueca e quebra do sigilo do caseiro.

No contexto da crise precipitada pelos escândalos de corrupção e da subseqüente disputa eleitoral, houve quem tentasse apresentar a campanha oportunista dos partidos burgueses e da mídia contra Lula como um ataque contra o conjunto da classe trabalhadora. O importante nesse caso seria derrotar a “direita golpista”. Todo o primeiro mandato, com todos os erros acumulados, foi esquecido. Houve quem comemorasse entusiasmadamente a vitória de Lula na disputa interburguesa de facções, como se fosse uma vitória do “campo popular e democrático”. O problema é que a derrota do PSDB não mudou absolutamente nada. É sempre ótimo ver a burguesia babando de raiva, mas isso não resolve o problema. Não enche a barriga de ninguém. A fugaz alegria com a raiva da direita é mais do que compensada pelas reiteradas agressões do (des)governo da esquerda que a direita gosta. Com um “esquerdista” como Lula, a burguesia não precisa de lacaios de direita.

A candidatura da direita serviu apenas para dar o susto no PT, para lembrar que daqui a quatro anos será preciso devolver o bastão da governabilidade do Estado burguês. É claro que, no calor da disputa, a campanha da “oposição” tentou desqualificar o PT naquele que era o “seu terreno”, o da “ética na política”, expondo um escândalo de corrupção atrás do outro. Mas, ironia das ironias, o PT derrotou os partidos da burguesia no terreno deles, ou seja, no da gestão neoliberal da economia.

A grande massa do eleitorado não se deixou impressionar pelo tom “ideológico” da disputa pela “ética” (“todos são iguais”, “todos roubam”, “que ganhe o menos pior”, etc.) e tentou basear-se na sua própria percepção dos fatos. Com base na suposta “estabilidade” da economia, do plano real, da baixa inflação, das condições materiais discretamente melhores, da bolsa-esmola para os pobres, etc.; os eleitores de Lula julgaram objetivamente seu governo como melhor que o de seus predecessores. A economia em decomposição jamais foi questionada a fundo como tema de campanha. O vício pôde ser assim apresentado como evidência da virtude. Os trabalhadores avaliaram o governo Lula com o paupérrimo parâmetro dos governos burgueses precedentes.

Desse ponto de vista brutalmente empobrecido, as melhorias cosméticas num ou noutro setor podem ser consideradas como “avanços” de proporções monumentais. Cabe aos intelectuais da “esquerda” petista (com a colaboração de apoiadores alojados em publicações “independentes” como “Carta Capital” e “Caros Amigos”) amplificar ao infinito o alcance na verdade rasteiro dessas supostas melhorias, absolutamente precárias e conjunturais, e acima de tudo desligadas de qualquer eventual “mérito” da gestão lulista. Com isso, podem dar ao confronto eleitoral passado os contornos de uma batalha épica entre o “candidato dos ricos” e o dos “pobres”. A “esquerda” petista pode assim também continuar tranqüilamente aninhada sob a asa do governo burguês de Lula, e ao mesmo tempo ainda pretender exibir orgulhosamente suas impecáveis credenciais “populares”, “democráticas” e até mesmo “socialistas”. E o que é mais importante, manter seus cargos no governo, no PT e na CUT.

A esquerda na encruzilhada

A bolha de sabão de pseudo-prosperidade e “estabilidade” capitalista na qual Lula flutua virá à pique mais dia menos dia. Em algum momento do atual mandato a crise virá à tona. Nesse momento a burguesia irá ao ataque exibindo as presas. As reformas serão exigidas a toque de caixa, em regime de urgência, dada a situação de “emergência nacional” devidamente amplificada pelos arautos do pânico na mídia, como de praxe. Uma rápida campanha terrorista da imprensa burguesa, funcionando como amplificador da paranóia dos especuladores do mercado financeiro, bastará para reduzir a pó os tais “sólidos fundamentos da economia brasileira” que proporcionaram a enganosa estabilidade e a conseqüente tranqüilidade de Lula no primeiro mandato. Toda a conversa mole dos “fóruns da sociedade civil” como o da previdência será dispensada num minuto diante da necessidade de obedecer incontinenti o “diktat” do mercado.

As reformas que ainda não tiverem sido impostas virão num golpe só. Aquilo que começou como um governo com vagos tons populistas, que alguns ainda insistem em tentar mostrar como uma “vitória da esquerda”, terminará como uma ditadura explícita do mercado financeiro. É muito difícil prever o momento exato e a intensidade da próxima crise. A única coisa certa é que ela tornará ainda mais clara a opção de Lula de governar para o capital.

Alguns setores de vanguarda já perceberam o caráter desse governo. Trata-se daqueles que já travaram enfrentamentos com o lulismo no primeiro mandato. Esses setores iniciam uma reorganização em torno de entidades como Conlutas e Intersindical, impulsionadas por partidos como PSTU e PSOL, além de outras organizações da esquerda. Em comparação com a reorganização dos anos 80, que construiu o próprio PT, a CUT, o MST, etc., o atual processo ainda é bastante incipiente, embrionário, restrito à vanguarda, com pouca audiência entre as massas. No Encontro Nacional de 25 de março de 2007 os setores à frente da reorganização lograram uma importante vitória inicial ao constituir um Fórum Nacional de Mobilização contra as reformas, o qual incorporou, para além do movimento sindical, forças do movimento popular, como os sem-terra, sem teto, pastorais sociais, etc.

A caracterização mais precisa desse Encontro e do Fórum, das forças que o constituem, dos métodos de organização, do programa que foi fechado, etc., não será discutida aqui, no final deste artigo, para não sobrecarregá-lo, e também para não violentar um tema que merece apreciação mais cuidadosa. Para finalizar o que viemos tratando ao longo do texto, o que importa ainda é assinalar o quanto o fenômeno do lulismo será nefasto para a esquerda brasileira considerado historicamente.

O lulismo nasce do petismo e dele se distingue, especialmente a partir da chegada do grupo lulista ao governo. Na medida em que o governo se constitui como algo do tipo daquilo que os analistas chamam de “governo de coalizão”, por conter em si vários partidos, sem uma maioria nítida, o que se tem é um governo de Lula, e não do PT. O PT é uma das forças do governo lulista, e não a predominante. A abordagem de Lula para o PT é instrumental, ou seja, visa constituí-lo em sustentáculo do poder pessoal lulista, tanto quanto os demais partidos. Uma vez que as principais crises do primeiro mandato acabaram sendo atribuídas a ações de “aloprados” da direção do partido, o PT se converte em obstáculo para a manutenção do poder de Lula, e não instrumento. Nesse caso, a lógica do poder burguês leva Lula a rifar o PT, cortando seus vínculos com o partido.

Para continuar como supremo mandatário do Estado burguês, Lula teve que descarregar sobre o PT a responsabilidade de todos os erros que colocaram em risco a reeleição, e com isso ele conseguiu desmoralizar o conjunto da esquerda. Quando chegou ao governo em 2002, Lula o fez escorado na crença das massas que nele votaram de que a gestão de um candidato do PT seria finalmente a alternativa ao neoliberalismo em vigor. Lula estava identificado com o PT, e este com a idéia de esquerda. Quando os escândalos de corrupção vêm à tona, o PT passa a ser sinônimo de corrupção, e conseqüentemente, também a esquerda. A esquerda em geral passa a arcar com o ônus da corrupção dos dirigentes do PT, sem que tenha tido qualquer influência diretiva nos rumos do governo neoliberal do presidente petista.

Na cabeça das massas, o PT representava aquilo que conheciam como esquerda. Essa imagem tinha contornos bastante vagos, incluindo desde uma nebulosa lembrança da idéia de socialismo, até o ridículo choro das piedosas ladainhas da moda sobre “cidadania”, “inclusão”, “justiça social”, “ética na política”, etc. Ora, a desmoralização do PT, que viu toda a sua direção e seus principais quadros no governo (Dirceu, Genoíno, Gushiken, Palocci, Berzoini, etc.) sucumbir nos sucessivos escândalos de corrupção, equivaleu à desmoralização dessa idéia de esquerda perante as massas. Os ideólogos da direita aproveitaram a confusão ideológica das massas para apresentar a débâcle moral do PT como a suposta “prova dos nove” da “inviabilidade do socialismo”, do pendor “ditatorial” e “autoritário” da esquerda, das tendências “antidemocráticas” inerentes ao ideal revolucionário, das veleidades conspiratórias do “leninista” José Dirceu, etc.

A mistificação e a confusão se tornaram a regra do debate. A esquerda foi ideologicamente massacrada, embora a responsabilidade do fiasco coubesse ao PT, que não é esquerda, posto que é instrumento do capital. Essa desmoralização atingiu não apenas uma organização ou outra em particular, mas o conjunto das idéias de esquerda. E por tabela, o conjunto das práticas associadas à esquerda, como as greves, ocupações, assembléias, etc. Ninguém quer começar tudo de novo, já que o PT “provou” que isso “não funciona”. Esse retrocesso ideológico é apenas uma amostra dos problemas que a esquerda em processo de reorganização terá que enfrentar.

Como se não bastasse, setores da esquerda petista, num acesso explícito de masoquismo, chamam as massas a votar em Lula, prestigiando o líder que as massacrou, em nome da necessidade de “derrotar a direita”, a quem Lula, no final das contas, sempre obedece. Os quixotes dessa “esquerda” petista investem histericamente contra os gigantes imaginários da “direita golpista”, enquanto Lula segue imperturbavelmente entronizado nos moinhos de vento, moinhos satânicos da desnacionalização, da privatização, do desemprego, do arrocho salarial, da superexploração, da miséria, da degradação ambiental, da violência contra os sem-terra, da opressão contra os negros, as mulheres, a juventude e os homossexuais, da corrupção, da bestialização cultural, etc. Seria cômico se não fosse trágico.

Daniel M. Delfino

14/02/2007

P. S. Para não dizerem que não falei de poesia, um clássico samba de outros carnavais, hino da época da luta pela anistia, nos legou a lírica imagem do bêbado que se equilibra num fio de esperança, convidando-nos a sonhar. Num indigno pastiche dessa imagem, Lula passará à história como o equilibrista bêbado que fez de palhaços os trabalhadores brasileiros, no circo da burguesia.

O bêbado e o equilibrista

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
A lua, tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens lá no mata borrão do céu
Chupavam manchas torturadas, que sufoco
Louco, o bêbado com chapéu coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil, meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente a esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar

(João Bosco e Aldir Blanc, 1979)

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