31.5.07

Os 300 de Esparta e as batalhas do presente


(Comentário sobre o filme “300”)

Nome original: 300
Produção: Estados Unidos
Ano: 2006
Idiomas: Inglês
Diretor: Zach Snyder
Roteiro: Zach Snyder, Kurt Johnstad
Elenco: Gerard Butler, Lena Headey, Dominic West, David Wenham, Vincent Regan, Michael Fassbender, Tom Wisdom, Andrew Pleavin, Andrew Tiernan, Rodrigo Santoro, Giovani Cimmino, Stephen McHattie, Greg Kramer, Alex Ivanovici, Kelly Craig
Gênero: ação, drama, guerra
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/



“Leônidas te pede que se erga. Eu peço apenas que se ajoelhe”
Xerxes em “300”



Frank Miller é o mais importante autor de histórias em quadrinhos nos Estados Unidos, tendo sido responsável pela aparição de obras-primas como “A queda de Murdoch” (história magistral do personagem “Demolidor”, que o projetou para o estrelato instantâneo), “O homem sem medo”, “Electra Assassina”, “Ronin”, “Cavaleiro das trevas”, “Batman – ano 1” e toda a série “Sin City”. Seu talento como roteirista e ilustrador o alçaram à condição excepcional de autor independente, que produz à margem das grandes editoras Marvel e DC Comics, com total liberdade de criação e mercado cativo para qualquer trabalho que sai de sua prancheta.

Destacando-se no deserto de criatividade em que se tornou a indústria estadunidense de quadrinhos há várias décadas, Miller já foi cortejado pelo cinema no passado, quando colaborou como roteirista para “Robocop” 2 e 3. O resultado filmado ficou tão grotescamente distante de suas idéias originais, por conta das interferências absurdas dos executivos, que o autor jurou nunca mais trabalhar para Hollywood. A promessa só foi quebrada em 2005, quando o esperto diretor Robert Rodriguez mostrou que era possível levar uma das histórias de “Sin City” para as telas sem descaracterizá-la, produzindo por conta própria um trecho de alguns minutos de filmagem tão literalmente fiel ao original que prontamente convenceu Miller a ser seu parceiro na produção do filme completo.

O sucesso artístico de “Sin City” fez com que o exigente e ressabiado Miller baixasse a guarda em relação a Hollywood. Antenado, o diretor Zach Snyder, responsável pelo pequeno clássico de terror “Madrugada dos mortos” (2004), usou do mesmo método de Rodriguez para adaptar para o cinema outra pérola de Miller, o álbum “300”, que conta a história do rei Leônidas e dos 300 soldados de Esparta que detiveram a invasão persa na Batalha das Termópilas, em 480 a. C. O filme de Snyder levou a história para as telas de modo quase tão literal (veremos que há algumas infidelidades) quanto o que foi feito anteriormente com “Sin City”, preservando no geral a visão bastante peculiar do autor sobre esse episódio histórico.

O universo de Frank Miller, seja nos quadrinhos ou no cinema, não é dos mais comerciais e palatáveis para qualquer audiência. As histórias são violentíssimas, invariavelmente sanguinárias, resvalando no mau gosto; e também muito sensuais, provocantes, cínicas, repletas de humor negro e absurdo, moralmente complexas e povoadas por personagens ambíguos. O imaginário do autor, influenciado pela leitura voraz do monumental mangá japonês “Lobo Solitário” e dos gibis estilo “noir” do seu mestre Will Eisner; é acentuadamente masculino (o que não é o mesmo que machista), fatalista a ponto de ser cruel e chocante na sua dureza. Miller vê o mundo habitado por fortes e fracos, sendo os fortes aqueles que perseguem seus desejos sem hesitar e enfrentam a morte com audácia (o que não significa que ele não tenha simpatia e sensibilidade para com os vencidos da sociedade). Seus heróis também transpiram inteligência, malícia e humor, o que colabora para torná-los irresistíveis (o que também não é o mesmo que invencíveis).

A sensibilidade bastante peculiar do autor foi preservada na transposição de “300” para as telas. O episódio das Termópilas foi enriquecido com uma série de liberdades poéticas. Na estética “milleriana” os 300 espartanos são como samurais prontos para morrer, treinados desde crianças na arte da guerra; e Leônidas é um típico herói noir, apaixonado e amargurado, que sabe o que o futuro trará e tenta tirar algum prazer dessa sabedoria. O heroísmo dos gregos é artificialmente revestido de um bizarro sabor “samurai-noir”. Os anacronismos não param simplesmente nos aspectos formais, mas vão até os fundamentos da argumentação dramática.

Para justificar a necessidade de defender a Grécia da invasão persa, o autor usa como argumento a defesa da liberdade, da justiça, da democracia e da razão. Ora, nenhum desses conceitos nem sequer existia para os gregos, e muito menos para os espartanos, com o mesmo significado que nós lhes damos hoje. Os gregos tinham sim uma noção de sua dignidade e das características peculiares do seu modo de vida, tanto assim que denominavam “bárbaros” àqueles que não falavam a sua língua e não partilhavam os mesmos costumes. Consideravam os bárbaros inferiores e apropriados somente para a escravidão ou a morte. Os gregos eram de fato um povo especial no mundo antigo, e de fato deram origem à liberdade, à justiça, à democracia e à razão, mas de um modo muito embrionário, que não se pode confundir com as idéias modernas que temos desses conceitos.

A democracia era restrita aos cidadãos livres. Os escravos e as mulheres não participavam das decisões. Na urbana e cosmopolita metrópole comercial de Atenas, floresceu uma classe de trabalhadores e artesãos que venceu a antiga aristocracia e instalou a democracia direta das assembléias em praça pública, mas ainda excluindo os escravos, estrangeiros e mulheres. Na interiorana e obscurantista Esparta, os aristocratas se transformaram em soldados em tempo integral, para submeterem as constantes revoltas dos escravos e das cidades vassalas da região da Lacônia. Os espartanos eram um caso único na Grécia em que os cidadãos (somente os do sexo masculino) se dedicavam a treinamento militar desde os 7 até os 60 anos de idade.

Quando Leônidas encontra o exército da cidade aliada da Arcádia, ele brinca com o fato de os soldados árcades serem todos voluntários, pedreiros, comerciantes, etc., que por ocasião da invasão persa pegam em armas para lutar; enquanto que seus espartanos são todos soldados “profissionais”, guerreiros em tempo integral. Do ponto de vista grego, isso não fazia os espartanos serem vistos como superiores, mas pelo contrário, como semi-bárbaros. Os cidadãos dos outros Estados gregos tinham orgulho de serem trabalhadores livres e de lutar por suas cidades, e por isso tais cidades não precisavam de exércitos permanentes como Esparta. Podiam contam com voluntários entusiasmados em caso de guerra.

Os gregos (livres) de modo geral se dedicavam à arte, à cultura e às atividades cívicas, mas também sabiam da necessidade de lutar. Buscavam um equilíbrio em que cabiam aspectos do soldado, do orador e do artista para compor o seu ideal de cidadão. A exceção era precisamente Esparta, onde os cidadãos somente se dedicavam à guerra. Não é por acaso que Esparta não legou à humanidade, como fizeram copiosamente seus primos gregos, nenhuma obra de filosofia, direito, teatro, poesia, música, matemática, ciência, pintura, escultura, arquitetura, etc., capaz de perpetuar seu legado na História. Talvez tenha deixado a educação física, que também é muito importante, mas é pouco.

Há outros aspectos desse obscurantismo militarista espartano que chocam a sensibilidade contemorânea: os recém-nascidos deficientes, fracos e doentes eram jogados de um penhasco. Em Esparta somente poderiam viver aqueles cujos corpos fossem considerados adequados para a guerra, no caso dos homens, ou para gerar soldados, no caso das mulheres. Ou seja, os espartanos praticavam a eugenia milênios antes dos nazistas. Mas hoje podem ser considerados heróis no cinema... Frank Miller não escondeu esses aspectos mais chocantes do modo de vida espartano. Não teve pudores “politicamente corretos” ao caracterizar o traidor Ephialtes (personagem histórico real) como um deficiente físico que escapou da sina de ser jogado à morte no penhasco.

Para contrabalançar a crueza espartana (ou para preencher tempo sobrante de filmagem, uma vez que a história em quadrinhos original é muito curta), o diretor Snyder inseriu uma subtrama que não constava nos quadrinhos, em que a rainha desmonta um complô de políticos traidores vendidos aos persas que havia impedido Leônidas de usar todo o exército na guerra e obrigou o rei a partir com somente 300. Temos aqui uma coleção de pequenos absurdos históricos. Em primeiro lugar, em Esparta não havia uma separação entre uma camada de “políticos” e a dos nobres militares que decidiam fazer ou não a guerra. Essa separação é típica do imaginário popular estadunidense, onde se pensa que o exército do país só não consegue vencer as guerras (como a do Vietnã) porque os políticos traem os soldados. Filmes como os da série “Rambo” se dedicam a explorar comercialmente esse tipo de vontade de satisfação de um povo que se sente traído por seus políticos e que quer fazer a guerra até o fim. O público estadunidense consegue assim ser mais reacionário do que seus políticos. Snyder contrabandeia subterraneamente parte desse discurso para “300”, fazendo justiça ao desejo de sangue do público por meio da atitude da rainha.

Aqui temos uma segunda inverdade histórica: ainda que em Esparta houvesse uma assembléia em que os notáveis pudessem deliberar “democraticamente” sobre os rumos da cidade, nessa assembléia jamais uma mulher teria a palavra. Nem mesmo uma rainha. A função das mulheres espartanas, como a própria rainha expôs ao embaixador persa, é parir soldados espartanos. E mesmo isso jamais lhes daria a autoridade para estar presente junto ao rei e dirigir-se ao embaixador persa. Se havia um lugar na misógina Grécia em que as mulheres tinham ainda menos valor, esse lugar era Esparta.

Se a caracterização dos gregos tem alguns problemas, a dos persas não fica atrás. Na estética de Miller, os persas se parecem mais com africanos do que com asiáticos do oriente próximo. Os Imortais de Xerxes (guarda do Imperador, elite do exército, único setor “profissional” das tropas persas, que realmente existiu, e foi derrotado pelos 300) são apresentados como ninjas japoneses. O imperador Xerxes é mostrado como um semi-deus andrógino. Essa apresentação é apenas parcialmente verdadeira.

Convém lembrar que os gregos também sabiam apreciar as virtudes de seus adversários. Xenofonte, mercenário e suposto discípulo de Sócrates como Platão, escreveu uma obra chamada “Ciropedia”, ou “educação de Ciro”, descrevendo elogiosamente o príncipe persa Ciro, o jovem. Seu homônimo ancestral, fundador do império persa, diferentemente do Xerxes de Miller, partilhava dos mesmos infortúnios de qualquer soldado raso, dormindo em tendas e comendo ração de campanha. Isso relativiza o tratamento unilateral e maniqueísta típico do cinema estadunidense, fortemente exacerbados no filme.

Mas não se pode ser muito severo com um trabalho como “300”. De saída o exagero visual, o excesso de violência, os personagens caricaturais, o tom estilizado, indicam que se trata de uma brincadeira ligeira, apesar de suntuosa, abordando um determinado tema histórico. Essa ligeireza desautoriza qualquer apreciação excessivamente detalhista, convidando à indulgência crítica e ao deleite visual descomprometido. “300” não é um filme pretensioso como o “Alexandre” de Oliver Stone, e por isso mesmo é menos problemático.

Por falar em deleite visual, o público feminino e homossexual será instantaneamente magnetizado pela exposição massiva dos corpos masculinos seminus dos soldados espartanos, todos em excelente forma. Por falar em homossexualidade, é oportuno lembrar também que esse conceito não existia na antiguidade, nem entre os gregos nem em nenhum outro povo. Os antigos não dividiam a sexualidade entre “hétero” e “homo”, como fez o cristianismo, e permitiam que o desejo fluísse livremente entre os corpos, sem que isso tivesse implicações morais. O filme de Snyder não pôde ser inteiramente fiel nesse ponto, pois teve que cobrir os espartanos de tangas, que inexistiam no gibi.

Para concluir, o que faz com que um filme violento, caricatural, historicamente impreciso, que comete infidelidades em relação à obra original e que manifesta rasgos reacionários possa conter alguma lição valiosa?

Todo verdadeiro artista, como Miller, é capaz de enxergar, apesar dos traços ideológicos próprios da sociedade em que sua obra se enraíza, onde está a questão fundamental a ser apresentada como objeto de reflexão ética relevante e como tema esteticamente válido, e também é capaz de dar a resposta correta para essa questão. No caso de “300”, o conflito fundamental está exposto de forma lapidar na frase que escolhemos como epígrafe, atribuída a Xerxes: “Leônidas te pede que se erga. Eu peço apenas que se ajoelhe”.

A alternativa contida nessa frase é a mesma que atravessa toda a história da sociedade de classes: ou nos ajoelhamos perante os poderosos ou lutamos. A frase de Xerxes é a de todos os dominadores da História. Eles não nos pedem senão que nos ajoelhemos perante eles. Quão fácil é se ajoelhar! Quão fácil é render-se, resignar-se, conformar-se, vender-se, esperar, deixar passar, adiar, ceder, obedecer!

Fazemos isso todos os dias, na medíocre batalha diária pela abjeta sobrevivência no mundo capitalista. O sistema sabe recompensar aqueles que se ajoelham, como Ephialtes. Leônidas ironizou de forma precisa e devastadora essa recompensa, quando desejou a Ephialtes “que vivesse para sempre”. É essa a vida eterna e a recompensa que os poderosos oferecem: a sobrevida, a submissão e a negação da vida autêntica.

Em contrapartida, quão difícil é lutar! A postura de Leônidas é a mesma que nos pedem todos os revolucionários: que nos ergamos! Morrer de pé é melhor do que viver de joelhos, tanto nas Termópilas como hoje.

Daniel M. Delfino
15/04/2007

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