28.5.07

Para além do capital: 2ª leitura




Há cerca de um ano este escriba comentou as impressões de sua primeira leitura do livro “Para além do capital”, de István Mészáros, apresentando a obra nos termos mais favoráveis possíveis. Finalizada agora uma segunda leitura chega o momento de retificar e enriquecer aquele comentário.

A retificação diz respeito especialmente à escolha do título utilizado para o comentário de então: “Um outro mundo é possível: ‘Para além do capital’”. Esse título acabou por associar o conteúdo do livro ao movimento do Fórum Social Mundial (F.S.M.), que adota como slogan a frase “um outro mundo é possível”. A retificação que aqui se faz se propõe a assinalar que o livro de Mészáros vai muito além da afirmação básica contida nesse slogan, pois procura delinear de forma muito concreta e palpável de que maneira “um outro mundo é possível” para além das estreitas determinações do mundo do capital.

A escolha do título para um texto é por vezes um dos momentos mais difíceis de sua elaboração. No caso específico a escolha se deu por uma consideração de ordem menos conceitual do que prática: de que maneira tornar o texto mais atraente para um maior número de pessoas? O slogan “um outro mundo é possível” usado como título do comentário foi considerado como suficientemente amplo para atrair todo um vasto espectro de leitores unidos pelo mínimo denominador comum de rejeitar o mundo atual tal como ele está. O subtítulo do comentário, “Para além do capital”, que é o próprio título do livro a ser comentado, sinaliza de que maneira este escriba considera possível um outro mundo, ou seja, pela superação das limitadas margens do mundo do capital.

Entretanto, essa sinalização não parece agora suficientemente clara. Se o subtítulo determina e precisa o sentido do título, por sua vez o título, dialeticamente, subordina e obscurece o sentido do subtítulo. O subtítulo indica que “um outro mundo é possível” somente em se partindo “Para além do capital”, o que corresponde muito fielmente à posição contida no livro (e às intenções do escriba). Mas o título “um outro mundo é possível”, pode dar margem à problemática interpretação de que o livro “Para além do capital” endossa sem maiores problemas o movimento que usa essa frase como slogan, ou seja, o movimento do F.S.M.. A retificação aqui proposta diz respeito à necessidade de reparar a ambigüidade em que se origina essa possível interpretação limitadora.

Evidentemente, o livro “Para além do capital” concorda em termos gerais com o slogan “um outro mundo é possível”, pois esse é seu ponto de partida necessário. Em seu próprio conteúdo, o livro parte concretamente do pressuposto de que, sob os marcos da sociabilidade do capital, nenhum mundo é possível. Considerando-se a necessidade imperiosa de construir uma nova forma social, em face da inviabilidade crônica do sistema do capital, a rejeição do mundo tal como está (em nome do “outro mundo possível”) é o pressuposto lógico anterior a qualquer frase como o título do livro “Para além do capital”. É assim que o título escolhido para o comentário anterior se justifica ao menos parcialmente.

O livro é nesse sentido parte do esforço do autor para colaborar na construção do “outro mundo possível”. O próprio Mészáros esteve presente como palestrante em todas as edições do F.S.M., explicitando suas posições com base em um acordo político básico com os demais participantes do evento. Essa concordância lógica e política de princípios não pode ser confundida com um endosso completo. Se a frase “um outro mundo é possível” pode ser considerada positivamente um mínimo denominador comum de todos os movimentos que lutam pela transformação social, em seu sentido negativo ela não passa disso, ou seja, de um ponto de partida muito mínimo e limitado.

Sob esse ponto de partida mínimo abre-se um amplo guarda-chuva de posições políticas e teorias sociais, debaixo do qual está abrigado Mészáros e seu livro, mas estão também teses e programas que guardam muitos elementos de atraso e imprecisão que inviabilizam as margens objetivas de ação transformadora conseqüente. Evidentemente, o F.S.M. não é um movimento monoliticamente organizado, mas, como seu próprio nome diz, um espaço de discussão, para o qual convergem inúmeras tendências unificadas por aquele mínimo denominador comum de defender o “outro mundo possível”. Se esse mínimo denominador comum é suficientemente amplo e democrático para abrigar a todas essas correntes e tendências, o que constitui seu aspecto positivo mais louvado; é também suficientemente vago e impreciso para não ter resultados teóricos e organizativos praticamente aplicáveis numa intervenção material imediata.

Essa análise dos pontos positivos e negativos é a mesma de todos os que se debruçam sobre o fenômeno do F.S.M., porém nesse momento é oportuno aprofundá-la de um ponto de vista “meszariano”. Para dizer de modo bastante direto, qualquer que seja o “outro mundo possível” proposto pelos participantes, se não se rompe com a lógica do capital, ainda se trata do “mesmo mundo” dentro do qual é impossível continuar vivendo. Dentre os participantes abrigados sob o vasto guarda-chuva do F.S.M. estão inúmeros movimentos, tendências, correntes mais ou menos organizadas, partidos e até governos que NÃO colocam a necessidade da ruptura com a lógica do capital como ponto de partida para a realização do “outro mundo possível”.

Esse “outro mundo possível” que não rompe com a lógica do capital seria um mundo onde as meias-medidas de controle “social” tentariam atenuar o caráter essencialmente desumano do sistema, sem ousar conseqüentemente desmontá-lo como um todo, ou sequer desafiá-lo. Medidas como o perdão das dívidas dos países miseráveis, a taxação dos capitais especulativos, os esforços pela paz nas zonas de conflito, o reforço de instituições de ajuda humanitária como as da ONU, a implantação de regulamentações como as do Protocolo de Kyoto, etc., são todas muito desejáveis, mas muitíssimo limitadas.

Ainda que tais concessões limitadas pudessem ser arrancadas ao capital (nada indica que possam sê-lo) pelas vias institucionais da política burguesa, ou seja, partidos social-democratas ou verdes, isso somente seria factível num contexto em que as margens de acumulação do capital comportassem uma acomodação parcial de interesses materiais entre as frações particulares dos diversos capitais nacionais. Ora, o contexto vigente expressa precisamente o contrário, ou seja, um conflito aberto entre os diversos capitais nacionais em busca de ciclos de lucratividade cada vez mais estreitos, precisamente porque precariamente lastreados em surtos de especulação financeira desregulamentada e desvinculada das trocas econômicas materiais, nas quais esbarra-se numa mal-disfarçada guerra protecionista por mercados.

Sem um movimento social de massa como base material de tais demandas “anticapitalistas”, as conquistas “humanizadoras” assim obtidas seriam retomadas no minuto seguinte, assim que as necessidades da acumulação impusessem uma nova escalada da disputa entre as frações do capital. Ainda que a iniciativa do F.S.M. fosse bem sucedida e encaminhasse para que o conjunto das forças sociais organizadas conseguisse emergir unificado como interlocutor global do sistema do capital, não haveria com quem dialogar, pois o sistema do capital global pode ser qualquer coisa menos um interlocutor racional, dada a sua articulação necessariamente hierárquica e conflitiva.

Se em seu centro o sistema é representado pela máfia do petróleo e dos mísseis de Bush, na periferia ele encontra sua personificação na turma do mensalão de Lulla. Ambos representam interesses parciais e limitados, como os da indústria armamentista e do petróleo, e os dos bancos, respectivamente. Esses interesses continuam a se impor substantivamente na esfera material da reprodução social, ainda que possam ser contestados formalmente na esfera da luta política. Isso acontece porque a esfera da política, na qual atuam preferencialmente os participantes do F.S.M. que não apontam a necessidade da ruptura com o capital, na verdade, a maioria deles; é precisamente a esfera em que se legitima cotidianamente a continuidade da forma de controle sociometabólico determinada pelo capital. O Estado é um componente inseparável do sistema do capital, e não há como superar um desses componentes sem superar simultaneamente o outro. É por isso que o mundo que não rompe com o capital continua sendo o “mesmo mundo impossível”.

A tese da unidade fundamental entre capital e Estado, que juntamente com o trabalho assalariado constituem o tripé do sistema, é uma das teses centrais de “Para além do capital”, o que expressa a radicalidade da obra. Radicalidade que o diferencia substancialmente do eclético guarda-chuva onde foi arbitrariamente colocado por aquele título um tanto infeliz aplicado no comentário do escriba.

Explicando-se assim o lugar especial que ocupa Mészáros no debate proposto pelo F.S.M., é necessário ainda de algum modo tentar indicar aqui de maneira um pouco mais precisa porque as posições contidas em “Para além do capital” o tornam tão peculiar. Reafirma-se o que foi dito no comentário anteriormente publicado: tentar “condensar” ou “resumir” o conteúdo de uma obra dessa envergadura no espaço como o de uma resenha neste blog é uma ousadia que resvala na irresponsabilidade criminosa, se se quer ser minimamente fiel a esse conteúdo. Entretanto, formular uma linha geral de interpretação que possa servir de indicação e guia para quem se propõe a ler o livro é o dever de quem se arrisca a resenhá-lo, especialmente por uma segunda vez.

Sem ser um livro de História propriamente dito (ainda que se apóie copiosamente em fatos e exemplos concretos), “Para além do capital” empreende uma releitura radical do século XX, de modo a colocar em seus devidos lugares as questões que a ideologia apologética do capital apresenta de ponta-cabeça. O século XX é visto como aquele em que se deu uma tentativa fracassada de substituir o capitalismo pelo socialismo. Dado esse fracasso, o capitalismo se reafirma historicamente como o único tipo de “mundo possível”.

Contrariando frontalmente essa versão, Mészáros afirma que o século XX foi aquele em que o movimento socialista fracassou em se articular como resposta conseqüente à sua tarefa de superar o capital, porque se limitou a tentar superar o capitalismo, concentrando esforços particularmente infrutíferos em sua superestrutura política. Não foi o socialismo que tentou substituir o capitalismo, mas o capitalismo que foi bem-sucedido em impedir a aparição do socialismo. Desgraçadamente, para o nosso azar, o sistema do capital conseguiu até aqui impedir a afirmação de uma efetiva solução para os problemas humanos, sob a forma do socialismo. Na ausência dessa solução, os problemas crônicos reaparecem repostos sob novas bases ampliadas, recolocando dramaticamente na ordem do dia a disjuntiva férrea de Rosa Luxemburgo: “socialismo ou barbárie”.

A tarefa continua de pé em face da crise do sistema do capital, que se manifestou já no início do século XX, desencadeando aquelas problemáticas tentativas de superação. Se as duas Guerras Mundiais e a competição artificial da Guerra Fria, com seus monstruosos corolários de destruição, puderam adiar o enfrentamento do sistema do capital com sua crise estrutural, manifesta no último terço do século, somente uma caricatura grosseira e politicamente interessada da realidade pode apresentar a bárbara sobrevida do capitalismo em sua forma política neoliberal como evidência de seu triunfo numa era de gloriosa “globalização”. A hegemonia da economia política neoliberal, que tenta violentamente destruir as conquistas sociais dos trabalhadores tanto nos países centrais como na periferia, é uma demonstração da forma necessariamente autoritária e anti-social que o sistema deve assumir no contexto de crise para administrar seus antagonismos internos insuperáveis.

Dissemos que o movimento socialista fracassou porque tentou superar o capitalismo, em vez de superar o capital. Tratamos aqui do tema essencial de “Para além do capital”, a separação entre capitalismo e capital, e a análise dos componentes estruturais do sistema, como o Estado, que deve ser posto sob uma crítica cerrada, se não se quer repetir os erros do passado. O desafio continua de pé e os obstáculos se apresentam quase intactos sob as novas circunstâncias históricas do século XXI. A viagem prossegue, com uma próxima parada programada para o final da terceira leitura.

Daniel M. Delfino
08/05/2005

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