29.5.07

"Terra dos mortos" e o pesadelo dos vivos


(Comentário sobre o filme “Terra dos mortos”)



Nome original: Land of the dead
Produção: Canadá, França, Estados Unidos
Ano: 2005
Idiomas: Inglês, Espanhol, Italiano, Polonês, Francês
Diretor: George A. Romero
Roteiro: George A. Romero
Elenco: Simon Baker, John Leguizamo, Dennis Hopper, Asia Argento, Robert Joy, Eugene Clark, Joanne Boland, Tony Napoo, Jennifer Baxter, Boyd Banks
Gênero: ação, horror, thriller
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

O diretor de “Terra dos mortos” é o veterano George Romero, dono de uma longeva obra voltada para a temática dos mortos-vivos. É de Romero o pequeno clássico “Despertar dos mortos”, para o qual foi feita recentemente uma excelente versão, com o título de “Madrugada dos mortos”. Nesta nova investida do lendário diretor pelo mundo dos zumbis o que mais salta à vista é a óbvia analogia com o momento político e social atual. Estamos em um mundo já pós-apocalíptico, assolado por alguma espécie de praga (para variar, uma catástrofe inexplicável, mas isso não tem a menor importância), que transformou a maioria da população em zumbis, obrigando os sobreviventes a se refugiarem por trás de cercas de arame farpado e guaritas armadas sempre vigilantes.

Em “Terra dos mortos”, há uma cidade que representa os Estados Unidos. Esta cidade está ilhada do mundo exterior, completamente infestado de zumbis. Cercas elétricas e a barreira natural de um rio mantêm os mortos-vivos afastados, além das armas de uma milícia de segurança. Como acontece com os mexicanos e outros imigrantes ilegais que tentam cruzar a fronteira estadunidense, os zumbis são recebidos à bala.

No centro da cidade há um condomínio de luxo chamado “Fidlers Green”. Nesse prédio os ricos da cidade levam uma vida de luxo e ilusão, entre jantares e compras, totalmente isolados do pesadelo que se passa ao redor. Da mesma forma que, no mundo atual, os Estados Unidos exaurem os recursos naturais do planeta sem a menor consideração pelas necessidades do restante da população mundial e pela catastrófica degeneração das condições ambientais globais. Na periferia dessa cidade, os humanos pobres arrastam uma existência abjeta, sobrevivendo à custa de restos de comida, adquirindo o que necessitam no mercado negro, cercados de vícios como drogas, jogatina e prostituição. Esses pobres da periferia da cidade são a classe trabalhadora dos países ricos, socialmente passiva e culturalmente brutalizada. Há um velho que prega a sublevação dos pobres, mas seu discurso não encontra muita adesão, constando do filme apenas como uma vaga lembrança nostálgica do discurso social contestatório que antigamente contagiava amplos setores das massas.

Os zumbis, no mundo exterior, representam as populações dos países pobres, do chamado Terceiro Mundo, a periferia do capitalismo mundial. Não trabalham, não produzem, não criam, não pensam, apenas devoram os humanos incautos que se aventuram por seu território. De forma patética, alguns repetem mecanicamente os gestos que executavam em suas ocupações quando vivos, como a “banda” que ainda sopra grotescamente os instrumentos em um coreto. Ainda hoje, nos países periféricos, finge-se que existe um Estado, finge-se que temos eleições, que temos soberania, temos cultura, identidade, mas tudo não passa de uma farsa grotesca.

Os humanos fazem visitas ao território habitado pelos mortos-vivos, entrando e saindo quando querem. Zumbis não são humanos, portanto podem ser mortos sem culpa. Ninguém chora pelos iraquianos mortos diariamente às dezenas por atentados suicidas, pelos palestinos chacinados às dúzias pelas incursões assassinas do exército israelense em suas favelas nos “territórios ocupados”. Por falar em favelas, ninguém chora quando a PM chacina jovens negros na periferia das nossas cidades, ou o tráfico de drogas o faz. Ninguém pára o mundo para lamentar pelos egípcios mortos num atentado terrorista, porque o mundo já havia sido parado para prantear as vítimas de Londres, poucos dias antes. Existem vítimas e vítimas. Algumas têm a qualidade de chamar a atenção, devido ao país onde nasceram, à língua que falam, à religião que professam, à “raça” a que pertencem, ao Estado a que servem, à economia que movimentam. Estes mobilizam a mídia em grandes espetáculos de luto coletivo. Outros são apenas estatística, números com os quais ninguém se importa (a não ser é claro as famílias das vítimas).

Segue a vida. A sina dos mortos-vivos é serem massacrados, chacinados, explodidos, explorados, vilipendiados das maneiras mais sórdidas. Alguns zumbis são contrabandeados para o submundo da cidade estadunidense, onde, exibidos como aberrações, servem de diversão para a população humana. Mais ou menos como as prostitutas-escravas traficadas para os países ricos, ou os músicos de rua, artistas de circo, tratados como atrações de uma subcultura exótica, os biscateiros, mendigos, etc. (os eletricistas com aparência não caucasiana...).

Como no mundo real, o sistema se mantém com base na exploração da zona exterior pelos agentes armados vindos da cidade humana. O milionário Kaufman, dono do Fidlers Green, conta com uma tropa de mercenários encarregados de excursionar pelo mundo exterior para saquear os recursos naturais e tudo o que a população da cidade necessita para sobreviver. Pois está claro que os bárbaros zumbis são incapazes de aproveitar esses recursos. Assim sendo, os marines precisam buscar petróleo no Iraque para manter o estilo de vida estadunidense.

Acontece que um dos mercenários encarregados de fazer esse tipo de serviço sujo volta-se contra seu patrão. Não por ideologia, mas por dinheiro, por desejar viver ele próprio como membro da elite no Fidlers Green. Essa figura representa os ditadores que os Estados Unidos semearam pelo terceiro mundo afora para conter as populações dos países periféricos enquanto suas riquezas eram saqueadas. Ditadores como Somoza, Suharto, Mobutu, Castelo Branco, Pinochet, o Xá, Noriega, o próprio Saddam Hussein, etc.. O mercenário do filme ameaça usar as armas (de destruição em massa) desenvolvidas para a milícia em que trabalhava tendo como alvo o próprio Fidlers Green, chantageando Kaufman por dinheiro. Como Osama bin Laden, criação dos Estados Unidos, que chegou às vias de fato explodindo o WTC.

Para salvar a pátria, Kaufman recorre ao herói do filme, o mercenário chamado Denbo (uma corruptela satírica de Rambo), encarregando-o de caçar o renegado. Mas nesses novos tempos, nem o mais ingênuo herói estadunidense acredita piamente no sistema. Denbo é um herói desiludido, que não acredita mais na possibilidade de ascender socialmente e ser aceito no Fidlers Green. Seu carro (fundo de pensão) foi roubado, sua única lealdade acaba sendo para com o amigo deformado e a prostituta que estava prestes a ser devorada por zumbis, para divertimento do submundo.

Um submundo no qual, aliás, Kaufman pontifica como eminência parda, providenciando as drogas e vícios que mantém a população alienada e incapaz de sublevar-se. No mundo real, a lavagem de dinheiro precisa ser deixada em paz, mesmo que isso ofereça os canais para financiar redes terroristas, pois do contrário, como os Kaufmans do lado de cá iriam reciclar o dinheiro sujo de seus esquemas corruptos (e como Kia iria financiar o Corinthians com dinheiro da máfia russa)?

Denbo está desiludido com esse sistema e deseja, tão logo feito o serviço, emigrar para o Canadá, como muitos estadunidenses conscientes manifestaram a intenção de fazer quando da reeleição de Bush. É claro que em algum momento tudo dá errado. Todas as lealdades e projetos se esfumam na mais brutal guerra de todos contra todos. Kaufman não hesita em roubar a grana do Fidlers Green, matar seus sócios e fugir. Os zumbis rompem a cerca e invadem a cidade e também o paraíso dos ricos. O que seria dos filmes de zumbi sem alguma uma irrupção terrífica em que os mortos-vivos alcançam o mundo humano?

Não é preciso muito para que os zumbis se revoltem com sua condição. Basta que um deles readquira a capacidade de pensar, ainda que numa escala muito limitada, ligando causas e efeitos no plano da imediaticidade. Isso é suficiente para que os outros o sigam. Basta uma reação instintiva contra os massacres cotidianos a que são submetidos para que os mortos vivos reajam. Não é preciso muita teoria para fazer um panelaço e derrubar um presidente; construir algo positivamente diferente a partir disso em termos de novas relações sociais é o que requer uma outra discussão.

É claro que George Romero não está propondo uma Revolução. Ele ilustra uma simples revolta, a vingança irada de uma vasta massa que se cansou de morrer sem sentido e agora está disposta morrer, se preciso, na tentativa de devorar (literalmente) seus algozes. Se os miseráveis do nosso mundo vão virar a mesa para devorar os ricos (e de que forma fazê-lo) é uma questão a que nós mortos-vivos latino-americanos deveremos responder num futuro mais imediato do que se pensa.

Para encerrar, é preciso avisar que a lógica de “Terra dos mortos” é a mesma de todo filme de terror: salve-se quem puder. Tais filmes lidam com o medo instintivo que obriga qualquer um a, quando confrontado com a morte, matar se for preciso. A metáfora política é um pretexto para a barbárie sem fim. “Terra dos mortos” é um dos filmes mais sanguinários já feitos. George Romero não poupa o estômago do espectador mais sensível, que se revirará com o excesso de violência explícita. Há decapitações, mutilações, órgãos humanos arrancados à dentadas por zumbis famintos, todos os tipos de mortes tanto de humanos como de mortos-vivos. É preciso uma dose considerável de humor negro para ser capaz de apreciar tanta criatividade mórbida.

Daniel M. Delfino
20/07/2005

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