30.4.07

Ingressos para o Paulistão 2004




A Federação Paulista de futebol (FPF) aumentou o preço dos ingressos de arquibancada para os jogos do Paulistão 2004 de R$ 10,00 para R$ 20,00. Com essa medida, a FPF conseguiu tirar dos estádios aquela parte da torcida que representava a maior parcela de público, ou seja, as torcidas organizadas. O torcedor típico das organizadas é geralmente um espectador solitário, jovem, que vai de ônibus para o jogo, reunindo-se aos amigos em turmas nas barracas de cerveja no entorno dos estádios. Para esse público a elevação do preço é fatal, pois significa o fim da possibilidade de freqüentar o futebol com a costumeira assiduidade. O morador da periferia, com renda precária ou desempregado, não pode bancar um lazer quinzenal, sequer mensal, ao preço de R$ 20,00.

Cinicamente, a FPF justifica a medida dizendo que o aumento do preço dos ingressos é na verdade uma promoção. O ingresso de R$ 20,00 é na verdade um ingresso-família, que vale para o pai, a mãe e os filhos menores. Do ponto de vista de quem leva uma família inteira para o estádio, esporadicamente, esse preço parece até razoável. Esporadicamente, pois não se espera que as famílias passem a freqüentar o estádio assiduamente apenas porque o preço soa razoável. Mesmo assim, no mundo de contos de fadas da FPF, os estádios deixariam de receber as complicadas torcidas organizadas e estariam cheios de pacíficas famílias para aprazíveis tardes de futebol. Com a troca de um público pelo outro, o rendimento permaneceria o mesmo.

É claro que esse conto de fadas não tem a menor chance de virar realidade. Não há esse público familiar maciço ansioso por uma promoção para voltar a encher os estádios. Não há essa demanda reprimida, porque as famílias paulistanas perderam essa cultura de freqüentar os estádios. Os dirigentes hostis às torcidas organizadas podem argumentar que o público familiar deixou os estádios justamente por medo das gangues infiltradas entre os torcedores das organizadas. Mas este escriba-torcedor pode argumentar que o público abandonou os estádios porque a qualidade do espetáculo caiu, ficando nas arquibancadas apenas os torcedores que acompanham seu time por hábito religioso, como é o seu próprio caso. Colocada a questão nesses termos, essa discussão prosseguiria indefinidamente.

Procuremos outra abordagem para mostrar porque a decisão da FPF é equivocada. Os estádios não vão se encher de um público familiar de uma hora para outra, simplesmente porque a cidade apresenta outras opções de lazer bem mais em conta. Levar uma família ao estádio envolve despesas com locomoção, estacionamento, alimentação, etc.. Considerando-se também o conforto das instalações, o risco de sol forte ou de chuva, a segurança dentro do estádio e nos arredores, a acessibilidade e a qualidade do atendimento, os cinemas de Shopping centers apresentam uma relação custo-benefício muito melhor. Na verdade, comparando-se a infra-estrutura dos estádios, sanitários, assentos, etc., os cinemas estão anos-luz à frente. Estamos falando de dois mundos diferentes.

Achar que o simples aumento do preço mudaria automaticamente o perfil do público sem qualquer impacto negativo na renda revela um brutal desconhecimento da realidade, senão um ato de má fé explicita. Para atrair um público mais qualificado, a FPF precisaria investir para qualificar o espetáculo. E isso envolve não apenas as instalações dos estádios, mas o próprio campeonato como atração. Isso é o oposto do que se tem feito. Ao longo das últimas duas décadas, o futebol tem se tornado cada vez menos interessante. Os campeonatos estão cada vez mais desorganizados, as fórmulas de disputa mais absurdas, os times vendem mais cedo seus melhores jogadores para o exterior, as disputas são menos empolgantes.

O hábito de ir ao estádio deixou de ser gratificante. O público familiar está acostumado a assistir futebol pela TV. Tanto assim que os direitos de transmissão dos jogos se transformaram na principal fonte de renda dos clubes. A ponto de uma rede de televisão mandar e desmandar no calendário e marcar jogos para os dias, horários e locais mais absurdos. Trazer de volta o público familiar exigiria, além de uma mudança de cultura desse público, uma mudança no projeto de mercado.

Tudo isso é o be-a-bá do mercado de entretenimento. É claro que os dirigentes sabem que essa mudança de preço vai provocar uma queda brutal nos rendimentos da bilheteria. Os dirigentes sabem disso e não estão se importando. A rentabilidade do futebol não é preocupação sua, nem agora, nem nunca. Os dirigentes de clubes e federações estão arrastando o futebol brasileiro para a bancarrota há décadas. Esse último movimento da FPF é apenas mais um capítulo de uma longa novela de arbítrio, irresponsabilidade e incompetência.

Engana-se o leitor de outros Estados se imaginar que a força do futebol de São Paulo no contexto nacional (no mínimo um time em todas as últimas onze* finais do Brasileiro) se deve a uma organização superior em relação à das demais federações. Antes, pelo contrário, o futebol de São Paulo ainda não faliu como no resto do país apenas pelo fato de que se localiza no Estado mais rico do país. Mesmo isso em breve não será mais suficiente. Ano a ano, o antes celebrado Paulistão míngua cada vez mais, estando em vias de se tornar o paulistinha, um torneiozinho de pré-temporada. A atual medida da FPF é mais um passo firme nessa direção. Mais do que a rentabilidade do futebol, o que interessa à FPF nesse momento é a queda de braço política com as torcidas organizadas.

Para tirar esses torcedores dos estádios, a FPF está disposta a suportar mais uma temporada de prejuízo. No seu cálculo estratégico estúpido, um ano a mais ou a menos de prejuízo não fará diferença. O objetivo dessa manobra, como dissemos, mais do que econômico, é na verdade político. Trata-se de afastar as torcidas organizadas dos estádios num momento em que o estatuto do torcedor recentemente aprovado atribui ao público freqüentador dos estádios a condição de consumidores. No momento em que as torcidas organizadas fizerem valer sua condição legal, poderão exigir mudanças na qualidade do espetáculo futebol. Como os dirigentes não estão interessados em promover essas mudanças, tratam de recusar às torcidas organizadas o papel de interlocutores do processo.

O procedimento da FPF se enquadra no comportamento típico do poder autoritário, não-democrático, que consiste em recusar à população que se lhe opõe a condição de sujeito coletivo numa negociação. A massa de torcedores das organizadas possui uma coesão tal que pode se transformar numa força politicamente explosiva. A massa organizada como sujeito político é o pesadelo de todo dirigente autoritário, que lhe cabe tentar evitar a qualquer custo.
Para isso, o autoritarismo tenta dissolver todo tipo de organização coletiva das massas, como sindicatos, comissões de fábrica, grêmios estudantis, invasões de sem-terras, ou no caso, torcidas organizadas, negando-lhes o direito de participar do jogo político. O jogo político burguês é explicitamente individualista e anti-social, aceitando apenas indivíduos isolados frente ao Estado, desconhecendo as mediações coletivas e de classe.

Nesse caso particular de abuso do poder econômico pela FPF, o tiro pode sair pela culatra. A provocação às torcidas organizadas pode resultar justamente no contrário, a mobilização delas contra a medida. Um movimento comum contra o preço dos ingressos, além de um boicote aos jogos, por parte das torcidas de todos os grandes clubes, pode ser a pedra no caminho dos planos da FPF.

Como acontece em todo discurso burguês de auto-legitimação, a tentativa de passar por cima da mediação das organizações coletivas (torcidas) para tratar diretamente com os indivíduos isolados (compradores), também nesse caso o procedimento da FPF funciona como uma maneira de tentar ocultar uma relação de poder disseminada na sociedade. Uma relação pela qual um pequeno grupo oligárquico impõe seus interesses sobre o conjunto da sociedade.

A classe dos dirigentes do futebol, arqui-reacionária e coronelista, comporta-se como se fosse dona do futebol brasileiro. Ao longo de sucessivos mandatos, ocupam cargos praticamente vitalícios nos clubes e federações, perpetuando-se no poder através de eleições viciadas e fraudulentas, mantendo os clubes fora do alcance de qualquer inspeção pública, verificação democrática e transparência de gestão. As instituições do futebol brasileiro ainda são verdadeiras caixas-pretas financeiras.

Instituições deficitárias, inadimplentes junto à Previdência e ao Fisco, sem transparência, controladas por décadas a fio pelos mesmos grupos, que bloqueiam qualquer tentativa de democratização e responsabilização de seu poder, exercendo cargos não-remunerados, mas mantendo mesmo assim um elevado padrão de vida, trabalhando por “pura dedicação” ao futebol, que como resultado de tanto altruísmo, afunda cada vez mais. O leitor sabe a que conclusões leva esse raciocínio.

Não é preciso levar até o fim o raciocínio acima para saber que essa situação precisa mudar. O futebol precisa ser organizado de maneira profissional, com regras claras, transparência administrativa, respeito aos regulamentos, estabilidade e continuidade das formas de disputa, jogos em quantidade menor, em dias e horários razoáveis, permitindo planejamento e organização da temporada por parte dos clubes, que por sua vez permite continuidade e segurança no trabalho de técnicos e jogadores, com conseqüente melhoria técnica do espetáculo, padronização e valorização do produto futebol na mídia, investimentos na infra-estrutura dos estádios para atrair e educar os torcedores, etc.

Em vez disso, temos o aumento unilateral e sem qualquer contrapartida do preço dos ingressos. Continuaremos longe da luz no fim do túnel.

* 1993 Palmeiras, 1994 Palmeiras e Corinthians, 1995 Santos, 1996 Portuguesa, 1997 Palmeiras, 1998 Corinthians, 1999 Corinthians, 2000 São Caetano, 2001 São Caetano, 2002 Santos e Corinthians, 2003 Santos vice.

P.S. Este escriba não consegue deixar de especular, em razão de todas as incoerências e contradições apresentadas acima, sobre a possibilidade dessa medida da FPF representar uma vingança contra a Gaviões da Fiel. Uma vingança pessoal do Presidente da FPF contra a torcida organizada do Corinthians. Recapitulando, na final do Paulistão 2003, tendo o Corinthians vencido o primeiro jogo por 3x2, a FPF conseguiu a proeza de redigir um regulamento que não esclarecia quem seria campeão em caso de vitória do São Paulo pela mesma contagem. Assim, as duas torcidas passaram a semana se provocando, até que o Presidente da FPF, Eduardo José Farah proclamou o veredicto de que a vitória seria do São Paulo. Não cabe aqui voltar ao mérito da questão, pois pela lógica os são-paulinos tinham razão. Acontece que o regulamento, bizantinamente dissecado pela crônica esportiva, não tinha lógica nenhuma no seu texto. E a torcida corintiana se sentiu roubada pelo veredicto de Farah. Assim, tendo o segundo jogo terminado com 3x2 para o Corinthians, o Presidente da FPF teve que ouvir de algumas dezenas de milhares de corintianos no estádio, entre os quais este escriba, o simpático coro: “Farah, @#$%&, Timão é campeão!!”

Daniel M. Delfino

18/02/2004

A ditadura de 1964 não acabou




O golpe de 1964 foi o suicídio do país. O Brasil morreu naquele dia. A data não poderia ser mais perfeita: 1o. de Abril, o folclórico dia da mentira. Os militares demonstraram, em meio a milhares de seus erros, o acerto monumental do “timing”. Quem mais poderia fazer uma Revolução no dia 1o. de Abril, o dia da mentira? Ao invés de uma data histórica, temos uma farsa grotesca. Tanto é verdade que os setores oficiais se esforçam para fazer com que a data correta do “movimento” seja “comemorada” em 31 de Março, para fugir do vexame do 1o. de Abril.

O golpe de 1964 é apresentado por seus autores como “Revolução”. O absurdo dessa proposição é evidente. O conceito de revolução faz parte do patrimônio teórico e proposicional da esquerda. A esquerda é historicamente o setor da sociedade que propõe transformá-la por inteiro. É a essa transformação que se dá o nome de Revolução. Os militares brasileiros, em 1964, não trouxeram nenhum modelo novo de sociedade. Pelo contrário, apenas aprofundaram os abismos de desigualdade da sociedade já existente. O “movimento” de 1964 não trouxe nenhuma forma nova de organização social, apenas uma reorganização das formas políticas. Uma tomada de poder por meio da força rompendo com a institucionalidade democrática. Um simples golpe de estado.

Teria sido mais apropriado chamar o golpe de 64 de “Contra-Revolução”. Os militares de 64 teriam se levantado contra um movimento de transformação em curso na sociedade, sustando uma revolução em andamento. Exceto pelo fato de que o período do pré-64 não era revolucionário, mas reformista. Não havia uma revolução de fato em andamento. O governo de Jango, sob o signo do trabalhismo, herdado de Getúlio, colocava em curso um conjunto de mudanças de tipo reformista, não revolucionário.

Mas o reformismo já era demais para os militares. O povo chamado a participar da construção do país era algo que horrorizava a elite quatrocentona, a mídia esmagadoramente conservadora (tanto nos idos de então como ainda hoje) e os fiéis lacaios do imperialismo. A simples presença de comunistas nos movimentos sociais que apoiavam o presidente Jango já era o suficiente para espalhar o temor de uma revolução de fato, servindo de pretexto para o golpe.

A agenda reformista de Jango buscava tão somente colocar o Brasil nos eixos de um estado burguês moderno. O Brasil não tivera a sua revolução burguesa. Ao contrário dos países capitalistas desenvolvidos, que criaram seus Estados de tipo burguês nos séculos anteriores, o Brasil estava atrasado na corrida. As tentativas brasileiras de se modernizar ao longo do século XX foram a última chance de o país vir a se constituir como uma nação capitalista completa, o que não veio a se confirmar. Permanecemos sendo um aborto de país.

Nas revoluções burguesas clássicas (Inglaterra-1688, Estados Unidos-1776, França-1789, Japão-1868, Alemanha-1871) a burguesia afasta do poder a aristocracia, cria o Estado baseado na igualdade jurídica dos cidadãos e lança as bases em que pode se desenvolver o capitalismo, preparando-se para enfrentar no plano econômico a oposição de classe do proletariado moderno e para enfrentar as guerras internacionais de competição imperialista.
No Brasil, nenhum desses processos se completou. A classe dirigente brasileira jamais subtraiu o país da órbita de influência das potências capitalistas desenvolvidas. Sempre fomos o aluno exemplar, bem comportado, que faz a lição de casa do FMI. As oligarquias jamais foram afastadas do poder político (nem mesmo no século XXI). O Estado sempre foi visto como uma extensão do patrimônio pessoal dos membros da classe dominante, a aristocracia tradicional baseada na posse da terra e a burguesia “cosmopolita” esnobe que dela descende. A igualdade jurídica jamais passou de uma quimera, mero corolário formal para o poder material instituído.

O poder econômico nacional jamais enfrentou uma verdadeira competição que o obrigasse a desenvolver as forças produtivas capitalistas. Preferiu sempre socializar os prejuízos à custa do Estado e dos pobres. Desde o Império, a política econômica do Estado brasileiro sempre foi de transferir renda da sociedade para o setor parasitário da economia (hoje representado pelos banqueiros nacionais e internacionais), penalizando a população pobre. A reforma agrária jamais foi feita. Nunca foi criado um mercado consumidor de massas interno. O Estado nunca investiu suficientemente em infra-estrutura social e material para o desenvolvimento. Sem essas condições, o Brasil jamais poderia se tornar um país capitalista e desenvolvido.

No século XX foram feitas as últimas tentativas de encaminhar um desenvolvimento capitalista de tipo autônomo, principalmente através de Vargas e de seus herdeiros, como Jango. O fato de que seria necessário fazer concessões aos setores populares, como reforma agrária e direitos trabalhistas, para que o desenvolvimento capitalista no Brasil pudesse alcançar o dos países centrais foi porém considerado agressivo demais pela burguesia brasileira. No contexto da Guerra Fria, considerava-se que essas concessões representassem o avanço do comunismo soviético sobre o país.

Essa concepção arqui-reacionária é representativa do atraso da classe dominante brasileira e do seu despreparo para compreender os processos históricos em curso no regime econômico-social do capitalismo global. Em todos os países desenvolvidos, mas principalmente na Europa, a burguesia já estava acostumada a fazer concessões ao proletariado e já considerava os órgãos políticos e sindicais dos trabalhadores como parceiros na gestão do capitalismo (que esses órgãos estivessem de sua parte enganados a esse respeito constitui tema para outra discussão). No Estado de Bem-Estar Social as massas trabalhadoras passaram a ter acesso ao consumo e puderam alavancar décadas de crescimento capitalista de seus países.

Esse modelo de administração foi o que pôde revitalizar o capitalismo e salvá-lo de suas próprias crises cíclicas. Os países que optaram por esse modelo conseguiram se manter na ponta do desenvolvimento econômico e manter relativa auto-suficiência política, mesmo que em construções artificiais como a União Européia. O acerto estratégico da decisão de construir a União Européia, vista agora, décadas depois, como única alternativa civilizacional plausível contra o poder estadunidense, mostrou-se providencial no contexto da globalização atual. No Brasil, porém, a pseudo-burguesia caipira tinha medo do espectro do comunismo.
A burguesia brasileira jamais teve coragem de encarar as tarefas de construção do Estado nacional. Jamais teve a capacidade de romper com as oligarquias rurais das quais descendia. Nem de enfrentar as potências estrangeiras e romper com a relação de subordinação que o país sempre teve em relação ao sistema capitalista internacional. E muito menos, coragem para agregar a massa do povo na construção da nacionalidade. Pois isso exigiria estreitar as margens da desigualdade social brasileira, que sempre foi abissal. A burguesia brasileira considerou muito mais confortável permanecer como sócia menor do sistema global e obediente capataz sempre pronto a reprimir arroubos de rebeldia.

Tivemos então o golpe em 1964. E o Brasil prosseguiu em sua sina de país capitalista subdesenvolvido. Sem uma reforma agrária e um mercado consumidor de massas interno o país jamais pôde ter um crescimento econômico verdadeiro que o tornasse auto-suficiente, a ponto de poder determinar os rumos do seu desenvolvimento capitalista ulterior. O desenvolvimento que o Brasil experimentou nos anos da ditadura, sob o chamado milagre brasileiro, estava baseado em bens de consumo duráveis. Basicamente, na indústria automobilística paulista. Um tipo de economia que em nada contribui para ampliar as bases de consumo e de acumulação de capital.

A ditadura experimentou também seus sonhos de grandeza, pois nenhum golpe de Estado desse tipo é completamente vazio de propostas. Na ausência de uma ideologia plausível que substituísse o trabalhismo de Jango, criou-se a ideologia do “Brasil Grande”, desprovida de conteúdo social. Uma ideologia surgida naturalmente por mera inércia, brotando do caldo de cultura e do delírio de grandeza típicos do estamento militar. A burguesia nacional estupidamente apoiara um golpe desfechado contra suas próprias chances históricas de comandar um país desenvolvido e acabou desalojada pelo “golpe dentro do golpe” em 1968. Restou portanto, aos militares, além da repressão, a tarefa de justificar seu poder em termos de uma certa ambição de “Brasil-Potência”. Tivemos então a Transamazônica, Itaipu, Angra dos Reis, os lendários elefantes brancos e obras faraônicas.

O vazio dessa ideologia e o esgotamento do milagre econômico excludente e concentracionário implodiram as bases do poder político dos militares, que perdeu sustentação. Veio então a “transição democrática” de 1985, com o cuidado de legar o poder aos mesmos caciques políticos da Arena, o partido do regime militar, depois da morte providencial do Presidente eleito pelas forças que lutaram pela democracia. Teorias conspiratórias a parte, trata-se de um acaso histórico demasiadamente feliz para as forças da reação (e infeliz para o país).

O esgotamento do milagre econômico se deu sob forma de endividamento público, perda de poder de compra da moeda, e inflação. Inflação que por sua vez deu o poder a governos aventureiros prisioneiros da idéia economicista de salvar o país da incontrolável espiral dos preços. Prisioneiros também da obsessão de evitar que o poder chegasse às mãos dos setores populares excluídos em 1964. Os governos de Sarney, Collor e FHC permaneceram tão reacionários e recalcitrantes a qualquer idéia de partilhar o poder com o povo quanto a míope burguesia de 1964.

Uma vitória do PT somente se tornou aceitável em 2002, mas num contexto tal que já não há mais propriamente um Estado para governar. As bases lançadas na era Vargas já foram zelosamente corroídas pelos governos descaradamente entreguistas de Collor e FHC. As margens de autonomia econômica e política já foram suficientemente desmontadas nas décadas pós-ditadura para que o governo do PT deixasse de ter quaisquer veleidades de implantar políticas econômicas autônomas.

É preciso lembrar que nesse meio tempo a Guerra Fria acabou, por meio da vitória do bloco capitalista. Sobreveio então o malfadado “Consenso de Washington”. Uma das idéias mais infelizes jamais criadas, e também das mais falaciosas. A palavra consenso pressupõe debate, discussão. Quem discutiu com Washington para formular o consenso? Trata-se de um consenso de quem com quem? Ao invés de consenso, trata-se, ao contrário, de uma imposição do imperialismo estadunidense.

A esquerda perdeu tempo demais querendo entender a queda do Muro de Berlim. A direita jamais perde tempo, pois sabe precisamente o que quer. E o que querem os autores do consenso é liberdade plena para o capital. Liberdade que os estadistas com título de doutor da Sorbone lhe outorgaram de bom-grado. O capital internacional fez a festa no Brasil, saqueando o patrimônio nacional e deixando o Estado brasileiro cada vez mais endividado, depois da aventura do populismo cambial que foi a arma eleitoral para “vencer” a inflação e afastar (ainda uma vez) o risco de a esquerda chegar ao poder.

Dissemos “vencer” a inflação entre aspas porque entendemos que ela jamais foi vencida de fato. Foi empurrada para debaixo do tapete. Como dizem os estadunidenses, não existe almoço grátis. Necessariamente, sempre há alguém que está pagando a conta. A inflação brasileira, por meio do Plano Real, foi transformada em dívida pública. Uma dívida estratosférica, impagável, que por força de sua própria dinâmica, através do insidioso mecanismo das rolagens, acaba sendo projetada para um futuro cada vez mais distante.

Um futuro que nos foi seqüestrado. O consenso de Washington construiu assim, com a cumplicidade entreguista da direita e a miopia histórica da esquerda institucionalizada, uma armadilha que nos seqüestrou a possibilidade de que o país pudesse determinar seu próprio destino. O processo de formação da nacionalidade abortado em 1964 permanece inacabado e nada indica que possa vir a ser retomado. Os 40 anos do golpe de 1964, a serem relembrados em 2004 não deixaram cicatrizes. Deixaram um cadáver inteiro. O país que morreu naquele 1o. de Abril nunca mais voltou a ser o mesmo. Nunca mais pôde ser o país que deveria ter sido. Por isso dissemos que a ditadura jamais acabou.

Daniel M. Delfino

25/01/2004

“O último samurai” e o golpe quase perfeito


(Comentário sobre o filme “O último samurai”)



Nome original: The last samurai
Produção: Estados Unidos
Ano: 2003
Idiomas: Inglês, Japonês, Francês
Diretor: Edward Zwick
Roteiro: John Logan
Elenco: Ken Watanabe, Tom Cruise, William Atherton, Chad Lindberg, Ray Godschall Sr., Billy Conolly, Tony Goldwyn, Timothy Spall, John Koyama, Togo Igawa
Gênero: ação, aventura, drama, guerra
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

Suemono-giri é o nome em japonês para “corte de objeto estacionário.” Esse nome é dado para um golpe perfeito executado com a espada, capaz de cortar qualquer objeto, seja um corpo humano, uma viga de madeira, uma coluna de pedra, etc.. Esse golpe é executado num só movimento, começando com a espada ainda embainhada, a qual é retirada de uma só vez, e desse gesto se segue sem descontinuidade o corte do alvo, pelo qual a lâmina passa sem se deter, como se houvesse cortado apenas o ar, ininterruptamente, sendo sustada ao final com pleno controle, como uma mera extensão do braço.

A concentração do espadachim antes do golpe; a energia contida prestes a explodir; o movimento rápido, certeiro, fatal; a perfeição da lâmina capaz de cortar qualquer objeto; a tempestade desencadeada em uma única rajada de vento, acompanhada de um grito; o retorno ao repouso como se nada houvesse existido; a alternância de movimento e repouso, tensão e distensão, máximo de mobilidade e de imobilidade, típicos da arte marcial japonesa; todo o ritual está permeado por uma elevada consciência estética.

O golpe perfeito é uma obra de arte, assim como a vida de um samurai é uma performance que busca um ideal de beleza moral. Ética e estética estão fundidos na filosofia samurai, como em toda verdadeira ética e em toda verdadeira estética. O golpe perfeito representa o estágio mais alto da técnica japonesa de uso da espada, distintivo dos grandes mestres dessa arte marcial. Por sua simplicidade e precisão, pelo nível de concentração, auto-controle e adestramento, representa a síntese da cultura militar japonesa e de seu projeto civilizatório, configurado na sociedade samurai.

O filme “O último samurai” é uma superprodução hollywoodiana protagonizada pelo mega-astro Tom Cruise, talhada para concorrer em várias categorias do Oscar, que pretende retratar o ocaso dessa sociedade samurai. O filme se baseia num episódio real, acontecido em 1877, em que o moderno exército japonês enfrentava a rebelião de guerreiros da Escola antiga que se recusavam a aderir aos métodos contemporâneos. O personagem de Tom Cruise, um oficial estadunidense contratado para trasmitir o “know how” militar ocidental aos “bárbaros”, foi inserido romanescamente na história. O curioso é que tal personagem acabou seduzido pelo modo de vida dos antigos guerreiros japoneses, justamente aqueles contra os quais fora contratado para combater.

O último samurai do título não é na verdade Nathan Algren, o personagem de Tom Cruise, mas sim Katsumoto Moritsugu (interpretado por Ken Watanabe, desde já meu favorito para o Oscar de coadjuvante). A publicidade do filme, naturalmente, apresenta Tom Cruise em primeiro plano, em pôsteres gigantes, como se ele fosse o samurai do título. Mais do que propaganda enganosa, trata-se de um erro conceitual. Nathan Algren não chega de fato a ser um samurai. Nem que ele quisesse, não poderia. Não porque é um estrangeiro, o que não constitui um obstáculo definitivo. O obstáculo é a própria estrutura da narrativa, a função que a história lhe reserva. Explicaremos esse detalhe mais adiante.

Katsumoto é o verdadeiro samurai do título. Ele é um nobre, senhor de uma província, equivalente a um senhor feudal do ocidente. Como nobre, ele está no topo da hierarquia social. Seus guerreiros e seu povo lhe devem obediência total, até a própria morte. Katsumoto, por sua vez, deve obediência ao Imperador, de quem é vassalo. O Imperador, na religião xintoísta, é um deus vivo, descendente da deusa do sol, criadora do mundo. Na época retratada pelo filme, o Imperador Meiji estava promovendo a modernização do país.

Meiji era na verdade um jovem fraco, sem personalidade, manipulado por ministros ambiciosos, entre os quais se sobressai um certo sr. Omura. Simultaneamente ministro e empresário, ele próprio tem interesses pessoais e empresariais na modernização do Japão. Dono de ferrovias e provavelmente de outros negócios a elas ligados, deseja ver o país inteiro unido e modernizado, pronto para entrar na disputa de mercados com as potências da época: Inglaterra, Alemanha, França e Estados Unidos. A posse feudal da terra, estabelecida por laços de tradição e lealdade pessoal, deve ser substituída pela propriedade privada capitalista acessível pelo dinheiro. O uso de armas (espadas) por particulares deve ser suprimido em nome do monopólio do uso da força (fuzis) pelo Estado burguês.

Uma e outra tarefa da revolução burguesa no Japão pressupõem a remoção do nobre Katsumoto Moritsugu e sua fidelidade aos princípios morais da tradição. Para modernizar o país, Omura traz ao Japão especialistas de todos os ramos da atividade econômica moderna, de diversas nacionalidades. Algren se encaixa nesse plano como o especialista em técnicas militares modernas, com seu currículo de exterminador de tribos indígenas a serviço do exército estadunidense.

É contra Omura que Katsumoto se insurge, não contra o Imperador. De acordo com o código de ética dos samurais, o suserano é dono da vida de seus vassalos. Se o Imperador lhe ordenasse, Katsumoto cometeria o sepukku, o suicídio ritual, e o faria de bom grado. Ele admite isso várias vezes no filme e é preciso crer no que o samurai diz. Ele considera que sua rebelião está a serviço do Imperador e não contra ele. Contra o Imperador e contra o povo japonês estão na verdade Omura e seus sequazes corruptos. Se o Imperador não se dissuadir de seu engano, Katsumoto está disposto a dar a vida por isso. Ele está preso ao seu sentido de honra e segue seu dever até a morte. Sua tragédia contém um inescapável conteúdo de estupidez, conseqüência direta do absurdo inerente ao regime absolutista, pelo qual um homem de valor deve sua vida a um monarca que não passa de um fantoche inexpressivo.

Antes de prosseguir nos detalhes do filme, é preciso dar o cenário histórico da transformação da sociedade japonesa. As transformações que Katsumoto tenta deter para preservar a integridade do Império foram desencadeadas pelo próprio Imperador, há não mais do que uma década então. A contradição se aprofunda até se tornar irreconciliável. Trata-se de uma contradição inerente ao modo japonês de transição do feudalismo para o capitalismo. O Japão seguiu o mesmo esquema da Alemanha, que Lukács chamou de “via prussiana” para o capitalismo.

Na via prussiana a classe dos aristocratas feudais, proprietários de terra, os “junkers” alemães, que era simultaneamente a massa da oficialidade do exército, realizou de maneira autoritária a transição do feudalismo para o capitalismo, sem ceder o poder à burguesia e mantendo a classe trabalhadora sob o pesado tacão do Estado policial bismarckiano. Os junkers passaram diretamente de senhores feudais proprietários de terra para donos de empresas capitalistas. Não houve uma revolução burguesa na Alemanha. A burguesia alemã sempre foi débil e a democracia nunca criou raízes no país. Desse solo nasceria o nazismo.

O processo japonês seguiu o mesmo esquema, mas com pequenas diferenças. O Japão sempre teve uma mesma dinastia imperial, que se perpetuou em uma linha de sucessão direta desde seus ancestrais semilendários na pré-história até seu descendente no século XXI, o atual Imperador Akihito. Mas essa dinastia não esteve sempre no governo. No século XII o poder do Imperador foi ofuscado pela ditadura militar dos shoguns. A linhagem imperial não foi extinta, mas manteve apenas um poder formal, derivado de suas funções religiosas.

Desde o século XII as famílias tradicionais de senhores feudais guerreiros disputaram o cargo de shogun. A pacificação foi alcançada sob o shogunato Tokugawa, que se instalou em 1600. Tokugawa proibiu o intercâmbio com o exterior. Comerciantes e missionários estrangeiros foram banidos do Japão entre 1635 e 1853. Ao contrário do império chinês, que desmoronou sob o assédio das potências imperialistas ocidentais, o Japão se manteve unido. Foi na Era Tokugawa que se desenvolveu a sociedade samurai, com uma legislação formal e rigorosa sobre todos os aspectos da vida social. O país foi dividido em algumas centenas de províncias governadas por senhores feudais hereditários, cada um com seu pequeno exército de samurais, mas todos vassalos do poder central em Edo (Tóquio).

A sociedade foi dividida em castas hereditárias rígidas. Os guerreiros foram proibidos de trabalhar para seu sustento, os camponeses foram proibidos de usar armas. A nobreza militar separou-se como uma classe social superior, acima do clero, do campesinato e dos artesãos e comerciantes. O feudalismo japonês se cristalizou. A condição de samurai tornou-se hereditária. O privilégio de usar armas tornou-se seu dever e desenvolveu-se aí o Bushido, o “modo de vida do guerreiro”. Isso é bastante paradoxal, pois justamente quando acabaram as guerras civis, a função do guerreiro ganha uma formalização definitiva. Os guerreiros se tornam guerreiros no sentido pleno e simultaneamente se tornam inúteis. Muitos senhores feudais se revoltam contra o governo central, mas em vão. Isoladamente, não podem resistir ao shogunato e são exterminados.

Não é à toa que nesse período se desenvolve o culto do suicídio. Guerreiros se suicidam por lealdade a seus mestres, oprimidos pelo poder central. Monges se suicidam por sua fé. Amantes se suicidam por seu amor impossível, proibido pelas famílias, etc.. o sentido trágico da vida, o fatalismo e a coragem diante da morte se tornam valores permanentes da sociedade japonesa. A rigidez da Era Tokugawa manteve o Japão unido e permitiu um grande desenvolvimento de sua cultura. Os samurais, além da arte da espada, da qual se tornaram mestres inigualáveis, desenvolveram também a poesia, a pintura, a cerimônia do chá, etc.. O estudo e a arte, assim como a luta, também era seu privilégio e seu dever.

Mas essa situação era insustentável. A roda da História não parava de se mover no ocidente. Os países europeus passavam por uma revolução industrial e logo voltam a se expandir pelo mundo em busca de mercados. O mesmo aconteceu com os Estados Unidos. Em 1853 uma frota estadunidense ameaçou bombardear Tóquio caso o país não se abrisse para o comércio. A abertura que sobreveio foi um desastre para o Japão. No curto espaço de uma década, a economia feudal se desintegrou.

Na tentativa de remediar o desastre, a aristocracia japonesa promoveu um levante e derrubou o governo do último shogun Tokugawa, em 1868. O Imperador foi reinstalado no trono, no que foi chamado de Revolução Meiji. O pensamento dos autores dessa revolução era de que o Japão deveria se igualar em poder às potências ocidentais para não ser dominado por elas. O resultado dessa revolução seria a transformação das tradicionais famílias nobres em proprietários de grandes grupos empresariais, os zaibatsus. Honda, Toyota, Mazda, Mitsubishi, Matsushita, etc., são todos nomes de antigas famílias da aristocracia japonesa, que como os junkers alemães, se tornaram empresários modernos.

Katsumoto, o personagem de “O último samurai”, com seu tradicionalismo, foi pego no olho do furacão por essa transformação. Ao mesmo tempo que via no Imperador a salvação do país, contra a degradação que os estrangeiros trouxeram, ele não podia aceitar que os japoneses se rebaixassem a usar os mesmos métodos que os ocidentais, ou seja, armas de fogo. O problema prático é que qualquer guerra contra os estrangeiros somente poderia ser vencida com o uso de armas de fogo. Mas isso, para um samurai como Katsumoto, é apenas um detalhe. Como explicou Graham a Algren, a espada de um samurai é sua própria alma. Mais do que a degradação da técnica militar, o que revoltava Katsumoto era a degradação moral sob o capitalismo.

É nesse cenário que entra Nathan Algren. A trajetória deste personagem é praticamente idêntica à de John Dunbar, o protagonista de “Dança com lobos”. Tão idêntica que “O último samurai” pode até ser acusado de plágio. Mas ninguém acusou “Dança com lobos” de ser plágio de “Um homem chamado cavalo” e “Pequeno-grande homem”, dois “westerns” clássicos dos anos 70, portanto ficamos por isso mesmo. Assim como Dunbar, Algren é um oficial do exército estadunidense que se desilude com as promessas da carreira militar e decide experimentar uma vida diferente em outra forma de sociedade. As circunstâncias os levam a combater contra o exército estadunidense de onde saíram, pois compreendem que o modo de vida que adotaram, e que o exército estadunidense vem destruir, é mais humano do que a vida na sociedade burguesa.

Para cada personagem chave de “O último samurai”, há um equivalente no seu modelo “Dança com lobos”. Ambos os protagonistas, Algren e Dunbar, que correspondem um ao outro, estão cercados de uma série de figuras que também são correspondentes simétricos nas duas narrativas. Algren/Dunbar têm uma figura que funciona como guia nos estágios iniciais da viagem, na figura de Graham/Timons, um mestre na figura de Katsumoto/Pássaro esperneante, um rival que se torna amigo na figura de Ujio/Vento no cabelo, um garoto que o admira em Higen/Grande sorriso, um interesse romântico em Taka/De pé com punhos, um rival dentro do exército em Bagley/Spivey, um grupo de inimigos tribais nos ninjas/pawnees, etc..

O esquematismo desse modelo é evidente. Mas “O último samurai” é inferior na comparação com “Dança com lobos”. O início do filme é burocrático e apressado. A sociedade estadunidense de onde emerge Algren, na função de vendedor de armas, é explicitamente apresentada como degradada. O maniqueísmo explícito nunca é um bom começo para qualquer narrativa. Da mesma forma, a sociedade japonesa onde Algren se integra é um pastiche da estadunidense, um velho oeste em rápida mutação rumo ao capitalismo selvagem. Fica evidente que o exército de Omura e a passagem de Algren por ele são meros expedientes para que o protagonista encontre seu destino. O final do filme, por sua vez, é arrastado e também esquemático. Sobre os problemas do final, falaremos adiante.

O que interessa realmente é o miolo do filme, a viagem de Algren para a vila de Katsumoto e sua transformação em samurai. É essa viagem existencial que dá o pretexto para a observação que nos interessa. É lá que Algren encontra o alívio de sua consciência culpada pelo massacre de inocentes que perpetrou no passado. O processo de sua cura mental é quase uma psicanálise realizada por Katsumoto, que entretanto não se completa. O processo de psicanálise coincide com o processo de treinamento de Algren na arte da espada, trabalho do mestre Ujio. O ocidental aprende com Nobutada que deve abandonar suas preocupações, usar seus instintos, desapegar-se.

O problema inerente a um filme como este é que a filosofia samurai se dissolve numa mera técnica de relaxamento. Como se Tom Cruise tivesse resolvido ir a um “spa”. O filme serve como veículo para a busca de paz espiritual do astro, recém-saído de um casamento com Nicole Kidman. A ex- de Cruise já foi reconhecida como atriz competente e agraciada com um Oscar, prêmio que o astro ainda cobiça. “O último samurai” é sua mais nova tentativa de abocanhar o prêmio. A aposta é na sedução que o oriente exerce. Desde que os Beatles adotaram um guru indiano nos anos 1960, os astros da cultura pop ocidental tem buscado novidades milenares (sic) a serem exploradas: ora o Dalai Lama, ora Buda, ora o mosteiro Shao Lin; e agora o Japão.

Para esse fim Tom Cruise contratou dois gabaritados especialistas do ramo de filmes épicos, o diretor Edward Zwick, de “Lendas da paixão” e o roteirista John Logan, de “Gladiador”. Os dois são artesãos competentes. “O último samurai” é uma produção suntuosa e visualmente impecável. Estão lá as indefectíveis batalhas de samurais, no estilo de Akira Kurosawa. O seu problema neste particular é concorrer com “O Retorno do rei”. As batalhas em “O último samurai” são até mais selvagens, mas no geral perdem na comparação com o filme de Peter Jackson, que é disparado o favorito da temporada de épicos. Teremos ainda este ano “O mestre dos mares” e “Tróia”; e mais adiante, “Crusade”, de Ridley Scott e “Alexander”, de Oliver Stone. Quando Hollywood adere a uma moda, não brinca em serviço. Com a recente onda de filmes épicos, o sangue vai jorrar das telas.

A viagem turística de Tom Cruise/Algren pelo menos serve de pretexto para o que realmente interessa a este escriba, a exploração do modo de vida de uma vila japonesa tradicional. No país outrora governado pelos samurais, toda a sociedade era samurai. O ciclo da vida é encarado com extrema naturalidade e simplicidade. Os homens nascem, os homens morrem. A morte não é um problema para os orientais em geral, ao contrário do que é para os cristãos. Os ocidentais cristãos valorizam a vida, os japoneses valorizam a morte. Para os samurais, a morte é o próprio objetivo da vida. Vive-se para alcançar uma morte honrada.

A morte é tão mais honrada quanto tiver sido a vida. A vida deve ser dedicada à perfeição, em busca dessa morte honrada. Perfeição na luta, perfeição na arte, perfeição nos gestos, na fala, na conduta. Essa busca obsessiva e ascética pela perfeição se casa com o desapego. Não esqueçamos que no Japão a religião animista do xintoísmo combinou-se à filosofia budista, que prega exatamente o desapego como caminho para a felicidade. A harmonia dos camponeses com seu universo, com seu destino, sua natureza circundante, é quase utópica. É aí que está toda profundidade do filme, toda sua beleza e poesia. É por esta parte que o filme vale à pena ser visto, portanto não pretendo estragá-la com uma descrição detalhada.

Katsumoto, o líder dessa utopia, sabe que seu modo de vida está condenado. A contradição na qual sua ética o arremessa é na verdade irresolúvel. A integridade de seu modo de vida contrasta frontalmente com a indignidade da sociedade capitalista em que está se tornando o Japão. O contraste conceitual se transforma em confronto físico quando a cavalaria samurai arremete contra as metralhadoras do exército de Omura. Esse confronto físico exemplifica à perfeição o contraste entre dois tipos de sociedade, que cabe aos filósofos explicar. A favor das metralhadoras e canhões se coloca o filósofo alemão Hegel, quando diz que:

“ ‘O princípio do mundo moderno – o pensamento e o universal – deu à coragem uma forma superior, porque sua manifestação agora parece mais mecânica, não ato deste indivíduo particular, mas do membro de um conjunto. Além do mais, parece ter-se voltado não contra um único indivíduo, mas contra um grupo hostil, daí a bravura pessoal parecer impessoal. É por essa razão que o pensamento inventou o canhão, e a invenção desta arma, que transformou a forma da valentia exclusivamente pessoal em uma bravura mais abstrata, não é acidental’ ”.1

Ou seja, segundo o filósofo, o uso do canhão representa a forma mais elevada de coragem. Hegel é o representante ideológico máximo do Estado burguês. A ele cabe racionalizar as transformações que a sociedade capitalista traz a todos os aspectos da vida. Assim como o empresário industrial tirou ao trabalhador a posse dos seus meios de produção, o exército moderno tira ao guerreiro a posse de suas armas. Não mais samurais com espadas e sim soldados com fuzis. Tudo mais racional e moderno, conforme o espírito do mundo do capitalismo.

Mészaros desmistifica a absurda tentativa de Hegel de justificar o injustificável:

“O poder do capital de derrubar tudo – eliminando seu ancoradouro humano com a universalização da produção fetichista de mercadorias – é aqui espelhado na filosofia, virando de cabeça para baixo os valores humanos, em nome do ‘pensamento e do universal’.(...) Em última análise a lógica oculta da tendência atual do armamento moderno (...) não é a ‘bravura impessoal’, mas a destruição verdadeiramente impessoal de toda a humanidade: Holocausto e Hiroshima combinados em escala global.”2

Assim como o trabalho e a vida em geral, a arte da guerra também perde o sentido, quando é substituída pela indústria da destruição em massa. É por esse motivo que o estilo de vida samurai é humanamente superior ao militarismo moderno, apesar de ser uma forma militar arcaica. O Bushido envolve auto-aperfeiçoamento, cultura, ética, honra; o militarismo moderno consiste em apertar botões para destruir o inimigo á distância.

Em uma primeira análise, a cultura militar samurai não é melhor do que qualquer outro militarismo. Ou seja, uma cultura repressiva e reacionária, que muito facilmente se coloca a serviço da ordem estabelecida. Especialmente no caso dos samurais, o ofício militar se reveste de um orgulho aristocrático de classe. Esse orgulho elitista de uma casta ciosa de seus privilégios e seu poder de vida e morte sobre os plebeus dificilmente pode se tornar simpático. Isso só acontece quando os soldados, ao invés de oprimir seu povo, se colocam como defensores dos valores dessa sociedade, de sua cultura e sua honra, como Katsumoto. Para o samurai dedicado exclusivamente à arte da luta, a causa é na verdade irrelevante. O mais importante é o modo como se morre.

Para Katsumoto, um facínora como Custer, que massacrou os índios na conquista imperialista do oeste estadunidense, é tão heróico quanto Leônidas e seus trezentos homens, que nas Termópilas salvaram a Grécia da invasão persa. Deve-se perdoar Katsumoto por desconhecer a história estadunidense. Mas não se pode perdoar Algren, pois para ele Custer é um vilão apenas por ter levado seus soldados à morte e não pela causa em favor da qual lutava. Se é que se pode chamar o massacre dos nativos e o roubo de suas terras de causa. Do ponto de vista do soldado, porém, a causa é indiferente. O que importa é o heroísmo da luta. Por isso, para Katsumoto, Custer foi um herói. Mas isso não passa de um gracejo. Pois Custer era feito da mesma matéria de Bagley, o superior de Algren, que veio destruir os samurais.

O problema surge pois quando o próprio modo de vida samurai está em jogo. É esse o dilema do líder Katsumoto. Com o advento das armas de fogo, os samurais se tornam militarmente obsoletos. Contra a concorrência das metralhadoras, os samurais empreendem um ataque puramente ludita. A causa dos samurais somente se torna simpática porque, no caso presente, se coloca contra o avanço da degradação capitalista. Nem mesmo um filme estadunidense pode esconder isso. O seu sacrifício acaba sendo inútil e estúpido, mas sua mensagem ecoa até hoje.

O filme tenta transformar o significado dessa morte numa mensagem de superioridade moral, sem questionar o conteúdo das escolhas ideológicas de Katsumoto. Ademais, esse questionamento seria bastante problemático. O desenvolvimento posterior das relações EUA/Japão é embaraçoso, indo de Pearl Harbor a Hiroshima. O espectador sabe que o Japão moderno se tornou uma potência imperialista, entrando em guerra contra os próprios Estados Unidos de Algren. Assim, de certo modo, a mensagem de Katsumoto foi ouvida pelo Imperador, ainda que distorcida.

As espadas usadas pelos soldados do exército imperialista do Japão moderno ainda eram fabricadas de acordo com os métodos arcaicos da Era Tokugawa. O teste de qualidade das espadas japonesas era chamado de o-tameshi. O o-tameshi consiste num ritual em que se corta ao meio um cadáver humano deitado, com um golpe de espada, um golpe suemono-giri. As melhores espadas eram capazes de cortar dois ou três corpos empilhados, ou até cinco corpos. Consta que todas as espadas usadas pelo exército japonês na guerra russo-japonesa de 1904 passaram pelo teste o-tameshi cortando cinco corpos. Talvez isso explique porque o Império russo sofreu uma derrota tão acachapante, cuja crise subseqüente inclusive precipitou uma primeira tentativa fracassada de Revolução Russa em 1905. O exército imperialista japonês conservou muito da ética de sacrifício dos samurais. Dela deriva o impulso suicida dos “kamikaze”, os pilotos que arremessavam seus aviões carregados de explosivos sobre os navios estadunidenses nas batalhas da Segunda Guerra Mundial.

A causa de Katsumoto encontrou assim uma espécie de sobrevivência, mas não fica muito bem num filme feito para o público estadunidense se estender a respeito disso. Já é até ousadia demais mostrar o Imperador Meiji dizer ao embaixador estadunidense que seu tratado não interessa ao Japão. Dizer isso é bastante perigoso da parte de qualquer governante dos dias de hoje. Infelizmente, não há mais samurais à moda antiga para lembrar aos nossos governantes do dever de fazê-lo. O sacrifício de Katsumoto serviu pois para despertar o Imperador e subtrair o Japão da órbita do imperialismo estadunidense. Bom para o Japão, pior para os países que décadas depois foram vítimas do imperialismo japonês. No final das contas, o espírito de Omura, com seus interesses comerciais, acabou triunfando sobre a grandeza dos samurais. Os heróis morrem e submergimos todos no nível da mediocridade.

Esses desenvolvimentos no plano da História estão contidos em embrião no conflito dramático do cinema. Na impossibilidade de desenvolver concretamente as implicações ideológicas do conflito Omura/Katsumoto, o filme se contenta em apresentar um embate moral entre duas personalidades. Nessa restrição está a fraqueza do filme, a sua submissão aos cânones da narrativa cinematográfica estadunidense tradicional, com sua tendência para as conciliações que consolam o espectador.

Ao mostrar a morte de Katsumoto, “O último samurai” não se limita a uma mensagem puramente fatalista, ao estilo japonês, e insiste em conseguir a reabilitação moral póstuma do herói, ao estilo hollywoodiano. O público de cinema hollywoodiano está acostumado a ver o sacrifício do herói, como aconteceu por exemplo em “Matrix”, ou, para não fugir do mesmo registro épico, em “Coração Valente”. Mas o público aceita essas mortes porque é imediatamente consolado pela notícia de que o herói se saiu moralmente vencedor e sua causa de alguma forma triunfou, o que para a estética samurai é supérfluo. O esquema dramático de “O último samurai” permanece assim irremediavelmente cristão. Por isso não alcança a profundidade trágica dos verdadeiros filmes de samurai, como os de Akira Kurosawa.

A incompletude trágica do filme está expressa na falta de música japonesa tradicional na trilha sonora. A música em “O último samurai” não diz muito do espírito japonês, ao contrário do que acontece em “O tigre e o dragão”, por exemplo, cuja trilha sonora expressa musicalmente o espírito chinês. A música japonesa tradicional é triste, trágica, quase angustiante, mas sempre severa e serena, fatalista. A música ocidental usada em “O último samurai” não foge ao padrão hollywoodiano de violinos pesados e melosos, para induzir uma sensação forçada de triunfo, pois a estrutura narrativa do filme, com sua tentativa de produzir artificialmente um triunfo da causa do herói, assim o exige.

Nathan Algren se reduz a um portador da mensagem de Katsumoto. Por isso dissemos que ele não pode ser considerado um verdadeiro samurai. O destino do personagem não lhe concedeu essa honra. Por mais que Katsumoto tenha dito que o estadunidense recuperou sua honra na batalha, e que o próprio Algren tenha dito ao Imperador que se mataria, se ele assim o ordenasse, conforme manda a ética samurai; apesar disso fica no ar uma insatisfação com a sobrevivência de Algren. Para ser um verdadeiro samurai, deveria ter morrido no campo de batalha. Sobreviver é para os fracos. Mais do que sobreviver, o filme insinua que Algren voltou para a aldeia samurai, o que deve servir de consolação para aquela metade do público que foi ao cinema com interesses românticos.

Tom Cruise tentou o seu golpe perfeito, mas não conseguiu. Por um triz, por um pequeno detalhe, ele falhou. A fidelidade aos cânones da narrativa cinematográfica estadunidense tradicional o impede de ser um samurai de verdade, pois insiste em um final moralista como prêmio de consolação. O golpe perfeito deve ser dado com um só movimento, do desembainhar da espada à queda do objeto fendido. Sem hesitações, sem segunda tentativa, sem epílogo, sem consolação, sem remorso. “O último samurai”, por conta de suas hesitações, idas e vindas, finais duvidosos, não alcança essa perfeição. Não se trata de um verdadeiro suemono-giri.

Notas:
1. Istvan Mészaros, “Para além do capital”, Ed. Boitempo, SP 2002, pg. 186.
2. idem, pg 187.

Daniel M. Delfino

23/01/2004

“O Retorno do Rei” e a apoteose da fantasia


(Comentário sobre o filme “O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei”)



Nome original: The Lord of the Rings: The return of the king
Produção: Estados Unidos, Nova Zelândia, Alemanha
Ano: 2003
Idiomas: Quenya, Inglês arcaico, Inglês, Sindarin
Diretor: Peter Jackson
Roteiro: J. R. R. Tolkien, Fran Walsh
Elenco: Viggo Mortensen, Sean Astin, Alexandra Aastin, Sean Bean, Cate Blanchett, Orlando Bloom, Billy Boid, Bernard Hill
Gênero: ação, aventura, fantasia
Fonte: “The Internet Movie Database” – http://www.imdb.com/

Anos atrás, vagando a esmo por uma livraria, tive meu olhar atraído por uma coleção de três volumes intitulada “O Senhor dos Anéis”. Folheei um dos exemplares ao acaso. Li alguma coisa sobre hobbits, elfos e anões. Não gostei. Àquela altura, esse tipo de criaturas fantásticas me remeteu imediatamente ao ambiente do grupo de jogadores de RPG do qual meu irmão era mestre. Uma brincadeira que àquela época eu ainda encarava com ressalvas. “Mais um livro de fantasia para adolescentes”. Fechei o livro e perdi a oportunidade de me tornar um conhecedor da obra de Tolkien naquele momento. Meus interesses literários estavam então em outra parte.

Anos depois, folheando a revista SET, me deparei com o anúncio de que uma série de filmes da trilogia “O Senhor dos Anéis” estava em produção. Imediatamente me lembrei daqueles volumes desprezados na livraria, anos atrás. A produção era descrita como um épico para ficar na história do cinema. A primeira imagem liberada era das estátuas dos Argonath. Eu que não resisto a um épico, salivei: “Será?” Nesse momento, meus interesses literários estavam suficientemente abertos a ponto de poder vir a incorporar hobbits, elfos, e anões. Graças a meu irmão e ao seu barulhento grupo de jogadores de RPG.

Subitamente, descobrimos que a obra de Tolkien já era um clássico nos países de língua inglesa, leitura obrigatória nas escolas, inspiradora de bandas psicodélicas e progressivas dos anos 60 e 70, bem como do heavy metal melódico atual. Não me restava outra escolha a não ser encarar o catatau de mais de 1.000 páginas. Para mim, leitor compulsivo, foi um banquete. Devidamente precedido da entrada, a simpática introdução intitulada “O Hobbit”, uma história prévia à saga do Um Anel. E completada pela sobremesa, o “Silmarillion”, que se tornou minha parte preferida. De modo que aos poucos todos fomos progressivamente introduzidos no assim chamado “universo” de Tolkien.

Em breve, com a aproximação do lançamento do primeiro episódio no cinema, ninguém mais estaria incólume. “O Senhor dos Anéis” invadiu os cinemas como um “blockbuster”, espalhou-se por todas as mídias, os livros de Tolkien viraram “best-sellers” nas livrarias, uma avalanche de “merchandising” e bugigangas aqueceu o consumismo dos jovens. Uma nova geração de “fãs instantâneos” surgiu.

“O Senhor dos Anéis” virou uma religião. Como toda religião, tem seus fanáticos, seus neófitos e seus hereges. Há gente que conhece Tolkien de trás para frente e cita-o em élfico fluente como se fosse a Bíblia. Há os que apenas leram o livro ao ouvir falar do filme, como este escriba. Há os fãs pipocas que ouviram falar ontem do Anel e vão ao cinema sem saber sequer o que é um hobbit. A riqueza e a pujança dessa subcultura só tem paralelo em um outro fenômeno de décadas atrás, “Guerra nas Estrelas”, o clássico dos clássicos dos filmes de aventura.

Paradoxalmente, não haveria trilogia “Senhor dos Anéis” se não tivesse havido, vinte anos atrás, “Guerra nas Estrelas”, para fazer do público adolescente o principal filão do mercado de cinema. E ao mesmo tempo, não haveria “Guerra nas Estrelas” se George Lucas não tivesse lido, como todo jovem de sua geração, o livro “O Senhor dos Anéis”, que lhe forneceu um modelo para sua própria saga do bem contra o mal. Agora, o livro vira filme e o ciclo se completa.

Menciono “Guerra nas Estrelas” para falar a respeito do aspecto comercial. Para muita gente, o critério do sucesso comercial, ou da exploração mercantilista do “merchandising” é decisivo para condenar um filme. Se o filme bate recordes de bilheteria e vende bugigangas até se tornar uma praga nauseante, esse filme automaticamente não presta. Só prestam os filmes pequenos, intimistas e que permanecem eternamente desconhecidos do grande público. Discordo desse ponto de vista. Tanto filmes grandes como pequenos podem ser bons ou ruins. Os filmes da série “O Senhor dos Anéis” são bons filmes.

Acho que essa série, como “Guerra nas Estrelas”, é tão grande que transcende a problemática do que é arte e do que é comércio. São fenômenos culturais universais. Na época de seu lançamento, “Guerra nas Estrelas” (1977) foi interpretado à luz do contexto da guerra fria. O Império seria a União Soviética e a Aliança Rebelde seriam o Estados Unidos. Hoje esse contexto está caduco, mas o filme sobreviveu, tanto que até hoje gera continuações (essas sim oportunistas). A guerra fria acabou, mas “Guerra nas Estrelas” continua. E como todos podem ver, é óbvio que hoje os Estados Unidos é que são o Império e todos os que lutam contra eles os rebeldes e Jedis.

Portanto, os filmes de George Lucas sobreviverem porque tocaram em aspectos fundamentais da trajetória humana, expondo a problemática da luta do bem contra o mal. Toda narrativa tenta fazer isso de alguma maneira, mas o fato de permanecerem ou não na memória cultural depende justamente da habilidade do artista em elaborar o tema. Habilidade que George Lucas teve (a esse respeito, remeto aos textos “Darth Vader: a realidade e a fé em Star Wars”, de Danilo José Figueiredo e “Sobre Anakin/Darth Vader e Jesus”, de minha própria autoria). E que Tolkien e Peter Jackson também tiveram.

“Guerra nas Estrelas” sobreviveu e “O Senhor dos Anéis” sobreviverá. Este escriba gostaria que fosse possível que se fizessem filmes gigantescos sobre outras narrativas e outras culturas. Por exemplo, porque não uma versão igualmente suntuosa de “Grande Sertão Veredas”? O maior romance brasileiro transformado em épico cinematográfico? Nas mãos do filosófico Terence Malick, de “Além da Linha Vermelha”, seria pura poesia. Mas isso é sonho. Sendo o mundo o que é, o comércio ainda prevalece sobre a fantasia. É preciso se contentar com o que temos. “O Senhor dos Anéis” cumpre bem o seu papel de obra universal, porque tem consistência literária em sua origem.

Antes de falar dos filmes, é preciso portanto falar dos livros. Pois “O Senhor dos Anéis”, o livro, foi uma obra seminal que tornou possível, como eu disse, o próprio “Guerra nas Estrelas”, embora o cenário possa parecer o mais diferente possível. O misticismo, porém, está todo lá. Tolkien resgatou as fábulas e histórias de fantasia para o mundo moderno. Sua obra foi o ponto de chegada de uma tradição e o ponto de partida de uma nova. Sua inspiração foram as narrativas épicas da mitologia anglo-saxã e nórdica. Como o gigantesco poema finlandês de Kalevala, monumento da cultura oral (como era a Ilíada), de milhares de anos e milhares de versos, até hoje ainda não integralmente transcrito para a forma escrita. Sua descendência inclui todos os jogos de RPG, desenhos como “Caverna do Dragão”, “Harry Potter”, etc..

A respeito das metáforas políticas e culturais de sua obra, Tolkien sempre foi o primeiro a desautorizar a interpretação diretamente ideológica de seus livros, por meio da relação com qualquer figura ou situação da época em que viveu (os livros foram escritos na época da Segunda Guerra Mundial). Não há nazistas, comunistas, Aliados, etc., em “O Senhor dos Anéis”. Sua intenção explícita sempre foi criar um mundo totalmente à parte e novo, uma mitologia original e desvinculada de nossa realidade. Na superfície evidente, é fácil concordar com Tolkien a respeito da avaliação de sua própria criação. As metáforas de qualquer natureza se aplicam muito artificialmente a “O Senhor dos Anéis”. Mas no aspecto interior, no que toca à substância filosófica e psicológica da obra, acho que os livros refletem muito da vivência de Tolkien e de seu pensamento sobre o mundo em que viveu.

Por exemplo, o vôo dos Nazgul sobre Minas Tirith e a sombra que se espalha de Mordor são lembranças do bombardeio da Luftwafe sobre a Inglaterra na II Guerra. Ou ainda, a amizade entre Frodo e Sam é o exemplo de uma relação típica de soldados que estiveram nas trincheiras. Como o jovem Tolkien esteve na Primeira Guerra Mundial. Todo ex-combatente diz que o único sentido para enfrentar a morte na guerra é a presença dos companheiros que estão ao lado. Na trincheira, desaparecem as ideologias políticas e interesses de Estado e resta apenas a amizade entre os soldados. O vínculo da compaixão e da luta contra a solidão e a finitude irremediável num mundo fundamentalmente maligno, é o substrato final de vidas humanas reduzidas a quase nada. Essa experiência foi particularmente forte na I Guerra, em que a mortandade atingiu proporções até então inimagináveis, envolvendo uma massa de jovens alienados em um verdadeiro inferno.

Diante desse inferno, a única reação possível e compreensível é o desejo de voltar para casa. Voltar para o Condado. Para o único lugar onde as coisas ainda são simples, boas e inocentes. Tolkien expressa essa nostalgia de um tempo que já se foi. A tristeza pelo mundo que se perdeu na vida real o inspira a escrever sobre um mundo fictício, para o qual ainda vale a pena voltar. Essa escrita é uma tentativa de consagrar a rejeição apolítica das ideologias na literatura. Depois do que viu nas trincheiras, Tolkien não quer saber de nazistas, comunistas e burgueses. Acha que tudo isso é bobagem. O mundo fora do Condado não lhe interessa. O mundo das pessoas grandes é objeto de lenda e fantasmagoria. Ele vai e vem, mas o Condado fica. Por isso os heróis de sua saga são hobbits. Pequenos, porque permanecem crianças e inocentes.

O idílico lar dos hobbits é uma reminiscência do ambiente campestre inglês do século XIX. O visual dos hobbits (fiel nos filmes ao que é descrito no livro), seus casacos e utensílios, não é medieval, mas relativamente moderno, industrializado. Ainda assim, bastante arcaico e rústico. Hobbits são simultaneamente caipiras e boêmios, apegados aos chamados prazeres simples da vida: uma boa mesa, uma boa cerveja, uma boa erva de fumo, boa música, boas risadas. Essa é a utopia tolkeniana. A atmosfera é pitorescamente inglesa, provinciana, tradicional, rural, radicalmente regionalista, e por isso mesmo universal (como “Grande Sertão Veredas”).

Tolkien é um inglês tradicionalista assumido e militante. O livro tem um sabor de conservadorismo vitoriano tardio. Por exemplo, é assustadoramente assexuado. Não há quase romance na saga do anel. Ele está fora do foco da trama, o que é até compreensível, de qualquer modo. As mulheres da saga, porém, aparecem por uma lente que lembra a do amor cortês do trovadorismo. São figuras idealizadas, beatificadas, como eram as damas da nobreza na literatura do século XIV. Não se podia sequer tocar nelas. Peter Jackson até que tentou remediar isso nos filmes, mas apenas parcialmente.

Tolkien é um inglês tradicionalista, por isso um conservador, mas não no sentido explícito de direita política. O tradicionalista rejeita com enfado qualquer política. Embora reze a cartilha dos iniciantes em política que a tentativa de ser apolítico acaba servindo ao interesse político conservador. A tentativa escapista de Tolkien de ser apolítico, através de uma monumental obra de fantasia, teoricamente apenas colabora para a defesa do “status quo”.

Teoricamente está correto. Mas na prática o mundo não é tão quadrado (felizmente). Por um estranho paradoxo, Tolkien foi descoberto nos Estados Unidos por universitários adeptos da contracultura. Sexo, drogas e rock n’ roll, protestos contra a guerra do Vietnã e “O Senhor dos Anéis” a tiracolo. Esse aspecto paradoxal da trajetória do livro foi para mim a descoberta mais surpreendente. Nos anos 60 o livro era lido como uma inspiração pacifista. O Condado transfigurou-se em utopia hippie. Provavelmente, foi desse caldo de cultura que se alimentou o neozelandês Peter Jackson, o mago encarregado pelos Valar de levar o livro ao cinema. Embora a estética do diretor seja mais ligada à do terror clássico (nazgul, gollum, os mortos da montanha).

Hoje, muitos tentaram associar a carga bélica da trilogia cinematográfica ao ambiente de “guerra contra o terror” de nossos dias. Tentou-se em vão encontrar metáforas no filme para os árabes, os terroristas, etc.. Felizmente, nosso medíocre contexto histórico atual também passará, mas a história da luta para destruir o anel do mal continuará na memória. A permanência do livro se explica pela sua virtude literária. Não apenas pela capacidade do autor de dar verossimilhança ao cenário, de criar paisagens, cronologias, genealogias, linguagens. Detalhes que fazem a delícia dos fanáticos que se empenham em discutí-los e que fazem o tormento dos leitores menos entusiastas, como este escriba, que são obrigados ouvir essas discussões. O livro se sustenta pela capacidade do autor de falar de modo realista sobre o mal, ainda que na forma da fantasia.

Tolkien é um autor de fantasia, mas não ilude seu público. Tecnicamente, a sociedade do anel fracassa, pois Frodo foi incapaz de arremessar o anel no fogo. Este não é destruído senão por acidente. O mal e sua sedução são mais poderosos do que se imagina. O acaso e a esperança são porém forças também atuantes neste mundo. Se a I Guerra foi a perda da inocência de uma geração, a II Guerra foi a ameaça da queda total do mundo diante do mal absoluto. A intensidade com que Tolkien descreve o mal fantástico reflete a vivência de quem testemunhou concretamente a presença do mal no mundo. O mal assolou nossas vidas, maculou nosso mundo. A ferida de Frodo, que nunca cicatriza, é uma metáfora disso. Um mundo maculado pelo mal não pode mais voltar a ser o mesmo.

A esperança está no retorno às coisas simples e ao amor sincero. Por isso, o filme e a saga terminam com Sam voltando para sua casinha de jardineiro e sua família. A trajetória de Sam, protagonista secreto da história, serve de exemplo da ascensão do homem comum, do trabalhador braçal. Peter Jackson, sabiamente, escolheu esta cena para encerrar “O Retorno do Rei” e a trilogia. O tempo da magia e das épocas heróicas passou.

O leitor percebe que eu digo o livro e a história, no singular. Isso é proposital. Faço questão de ver “O Senhor dos Anéis”, tanto o livro como o filme, como uma obra unitária. Se pudesse, assistiria às dez horas de filme em seqüência no cinema. Sonho esse que, apesar das minhas ardentes preces aos Valar, não se realizou. De certo modo, eu tentei. Antes da estréia do “Retorno do Rei”, este escriba e sua sociedade do anel empreenderam uma jornada épica a um dos únicos e distantes cinemas de São Paulo que projetava as versões estendidas da “Sociedade do Anel” e das “Duas torres”, a chamada “versão do diretor”, presente apenas no lançamento em DVD importado, para assistir a ambas num mesmo dia, numa maratona inesquecível de quase oito horas de filme.

Naquele momento amaldiçoei a indústria cinematográfica e sua tendência atual de lançar no cinema versões mutiladas dos filmes. A versão verdadeira, que no caso é chamada de “versão estendida”, está acessível apenas a privilegiados colecionadores de caríssimos DVDs. Nessa nova lógica, há um filme para a coletividade que vai ao cinema e um filme para o público elitista que consome DVDs. Mais um aspecto da desvalorização do público em função da hispostasia do privado.

Depois de assistir às versões estendidas dos dois primeiros episódios, poucos dias antes da estréia do terceiro, ficou claro para mim que “O Retorno do Rei”, em cartaz nos cinemas, é uma versão mutilada. Isso fica evidente pela forma como se dá o andamento da narrativa. A edição é caótica. O ritmo da história é oscilante. Rápido em alguns momentos, lento em outros. Se fosse um desfile de uma escola de samba, “O Retorno do Rei” daria a Peter Jackson péssimas notas no quesito harmonia. Certas partes do enredo avançam com propriedade; outras carecem de sedimentação e ambientação.

Para ter um andamento adequado, acomodando as várias tramas paralelas, “O Retorno do Rei” deveria ter pelo menos cinco horas de duração. Há cenas editadas que prejudicam claramente a perfeita contextualização da obra. Por exemplo, a loucura de Denethor permanece inexplicada se não se mostra que ele também tinha um Palantír. A redenção das almas famintas de Eowyn e Faramir, a aproximação dos dois nas casas de cura de Gondor também foi limada. O que restou foi uma leve insinuação de romance, na cena do casamento de Aragorn e Arwen, com cara de “final de novela das 8”, em que todo mundo se casa. O fim de Saruman não nos foi mostrado. O duelo entre o Rei dos Bruxos e o Mago Branco, que foi explicitamente anunciado pelo primeiro, não se realizou, para frustração geral. E assim por diante.

Toda transposição de livros para o cinema sofre de um sério problema. A imagem filmada de certo modo corrompe a faculdade que o livro tinha de inspirar a imaginação do leitor. Depois que o filme foi feito, ao ler o livro, o que se imagina é a imaginação do diretor. Os personagens do livro aparecem na tela mental com o rosto dos atores do elenco. Portanto, Peter Jackson de certo modo “estragou a brincadeira”, de um ponto de vista purista radical. Não é mais possível imaginar livremente o universo de Tolkien. Um filme a partir de um livro é uma nova obra que de certo modo suplanta a original. Como se o objetivo de todo livro fosse “chegar a ser filme” e ele morresse depois disso. O filme vulgariza o que estava restrito ao público literário. Como em toda vulgarização, algo se perde e algo se ganha.

Para um fã menos radical, como este escriba, que não se considera dono da história, o esforço de Peter Jackson foi apesar de tudo válido. Todo fã do universo tolkieniano deve ver nele seu herói. Se não fosse por ele, ninguém estaria falando na saga do anel. Se não gostarem, basta, como eu disse, não ver o filme e ficar com o livro. Não senti falta de Tom Bombadil, nem do expurgo do Condado. Não gostaria de fazer disso uma discussão entre fãs sobre o que gostaram ou não no filme, mas como qualquer leitor e espectador, tenho meus personagens e minhas cenas preferidas.

Me chamaram a atenção tanto como os protagonistas e encontraram um lugar especial nas minhas lembranças. Boromir no primeiro filme, devido à interpretação de Sean Bean; Théoden no segundo; Eowyn, com sua representação da tristeza de ser mulher num mundo dominado por homens, e Pippin, o mais hobbit dos hobbits, no terceiro. Gostei mais do povo de Rohan, com seu visual bárbaro e viking, do que de Gondor, apesar do gigantismo surreal e ensandecido de Minas Tirith. O lado maligno foi mostrado de forma um tanto barroca, exagerada, com atenção especial do diretor para as caretas e poses de orcs e monstros. Aqui Peter Jackson exercitou sua faceta mais criativa.

Considero que, de modo geral, o espírito da obra foi mantido no filme. Mesmo assim, com todos os problemas, com o lançamento de uma versão mutilada, acidente pelo qual aliás o diretor é apenas parcialmente responsável; “O Retorno do Rei” é o melhor dos três filmes. Incompleto ou não ele satisfaz. Não pode ser descrito como algo menos do que monumental. É mais um daqueles filmes para o qual todos os adjetivos são pequenos. Monumental, gigantesco, épico, colossal, avassalador, surpreendente, chocante, devastador, arrebatador, vibrante, luminoso, redentor. O “flashback” de Sméagol-Gollum, os faróis de Gondor se acendendo nas montanhas, a canção de Pippin nos salões de Denethor, a cavalgada dos rohirrim, o ataque ensandecido de Théoden contra os olifantes, o duelo de Sam e Laracna, a alegria do reencontro da sociedade, Aragorn e os homens curvando-se para os hobbits, a despedida final nos portos cinzentos, todas essas cenas são realizações magistrais.

Ao ler a SET de anos atrás, este escriba ficou intrigado com a idéia de lançar em três episódios uma história filmada de uma vez só, com intervalos de um ano entre cada episódio. Quando terminou a “Sociedade do Anel”, estava definitivamente fisgado e desesperado para ver a continuação. Percebi que ali estava se iniciando um fenômeno especial na história do cinema. A espera de um ano por cada novo filme só fazia aumentar a expectativa (os antenados irmãos Wachowski exploraram a idéia em “Matrix Reloaded” e “Revolutions”; o oportunista Quentin Tarantino fará o mesmo com “Kill Bill”).

Com “As Duas Torres”, diminui a magia e cresce o épico. Subitamente, com o fim do “Retorno do Rei”, uma estranha tristeza toma conta. Não haverá mais Terra Média no cinema. O clima é de despedida. O fim de uma maratona. O filme é uma epopéia em si e também para o público. Fosse qual fosse o final da trilogia, e ele foi exponencial, a sensação de alívio e de recompensa foi bastante palpável. A narrativa fantástica cumpriu sua função de veicular uma história exemplar e expor os valores pelos quais se deve viver. “O Senhor dos Anéis” marcou uma época na vida de cada um e todos vão se lembrar dessa época de suas vidas com saudade. Vão se lembrar da época em que acompanharam seus personagens prediletos na sua trajetória heróica contra o mal. As lágrimas são inevitáveis.
Namárië

Daniel M. Delfino

11/01/2004

Governo Lula ano 1: anatomia da desilusão




O primeiro ano do governo Lula terminou e para muitos isso significou a confirmação de tudo que se temia durante a campanha eleitoral. O PT estava concorrendo às eleições não para modificar qualquer coisa no sistema, mas para mostrar-se o mais apto gestor desse mesmo sistema. Substituir FHC e seu tucanato oligárquico-financeiro não representou nenhuma mudança estrutural. Representou, quando muito, uma simples e superficial mudança estética. Para uma grande massa de militantes, essa descoberta trouxe um choque existencial tremendo. Uma escolha silenciosa se impôs: continuar fiel ao partido ou às próprias convicções? Como continuar usando o rótulo de petista, a camisa petista, a estrela petista, se a cúpula petista fez desses símbolos um indigno pastiche?

Uma maneira possível de continuar petista é aceitar o discurso da cúpula e acreditar que não havia mesmo outra alternativa. Muitos fizeram essa escolha. Acho que na verdade, infelizmente, a maioria. Mas como dizia a letra de uma velha canção de Bob Dilan, quantas vezes pode um homem virar o rosto e fingir que simplesmente não vê? Muitos na verdade já viram, mas preferem não acreditar. Ou ainda, preferem continuar acalentando a esperança, tão bem decantada na campanha eleitoral, de que no futuro tudo vai ser diferente. Na geração dos meus pais, esperava-se o bolo do ministro Delfim crescer para cada um poder tirar sua fatia. Continuamos esperando até hoje. Agora, parece que a geração dos meus filhos vai esperar, “ad infinitum”, o bolo do ministro Palocci. Ou melhor, o bolo não, o “espetáculo do crescimento”. O PT no governo aprendeu bem com a cartilha do tucanato e descobriu que o que verdadeiramente conta no mundo atual é o espetáculo e não a realidade.

Para quem percebe que é impossível continuar sendo integralmente petista, como se não houvesse nenhuma contradição, impõe-se uma séria questão. Onde foi que nós todos erramos? Nós que votamos nos candidatos do PT? Foram eles que nos enganaram ou nós que nos enganamos? Este escriba, sem ser formalmente um petista, porque nunca foi membro do partido, já foi há tempos um eleitor do PT. Fui um petista no sentido, digamos assim, “futebolístico”, de quem torce pelo PT, porque enxergava na força do partido as maiores e melhores possibilidades de mudança para o país. E como deixou expresso em textos anteriores, esperou até tardiamente demais por algum sinal de coerência do governo Lula, que apontasse para uma mudança de rumos.

Como a mudança não veio e a esperança se esfacelou, é hora de juntar os cacos. Onde foi que todos erramos? Considero que a resposta para essa pergunta é na verdade outra pergunta: será que erramos mesmo? Será que o PT está mesmo fazendo algo diferente do que se poderia esperar que fizesse? Será que o programa posto em prática atualmente é assim tão incoerente com a história do partido? Será que a substância sócio-histórica do fenômeno do “petismo” não está na verdade encontrando agora sua plena realização?

Não estou dizendo que o PT já era neoliberal desde o começo, em 1980. Faço uma comparação com a primeira percepção que se teve do governo FHC. Muita bobagem foi dita em torno do problema de se saber se FHC estava sendo fiel ou não ao seu passado de sociólogo e de exilado da ditadura. Na verdade, FHC governou de forma estritamente conseqüente com sua teoria da dependência. Segundo ele, o Brasil é um país estruturalmente incapaz de ter um capitalismo independente e portanto deve se associar e subordinar ao capital estrangeiro. Essa era sua teoria, essa foi sua prática. Somente pode achar que FHC traiu seu passado quem achava que ele fosse marxista. E isso muita gente achava, seja por que não sabe o que é marxismo, seja para demonstrar, por um ato de má fé explícita, através da deserção de FHC, que o marxismo é inviável.

A questão que se coloca portanto em relação ao PT é essa: qual era a sua teoria? Qual era seu programa? O que o PT pretendia exatamente realizar na prática? O PT também era marxista? Faço essas perguntas não apenas no sentido formal de saber o que estava escrito no texto do programa do partido. O qual, obviamente, não era marxista. O programa, tal como é formulado para as eleições, por mais que seja bem intencionado e conseqüente, acaba se tornando apenas mais um instrumento de marketing. Falo do programa no sentido da substância sócio-histórica do petismo. O que é o petismo como fenômeno histórico-social?

O petismo apresenta um grau de consciência de classe equivalente ao dos cartistas ingleses da década de 1830. Os cartistas ainda não sabiam o que era o socialismo e lutavam por reivindicações de tipo sufragista (direito de voto) e trabalhista, como melhores salários e menores jornadas, que pudessem ser atendidas dentro da legalidade burguesa capitalista. Os petistas, um século e meio depois, já não sabiam mais o que era socialismo, pois este já estava esfacelado, e lutavam por reivindicações do mesmo tipo (diretas já...). Esse fenômeno é uma indicação do grau de atraso do capitalismo brasileiro, que muito tardiamente produziu um movimento operário de massa politicamente relevante e com capacidade aglutinadora.

Tão tardiamente que, àquela altura, os governos gerados por esse movimento operário no resto do mundo, como os de tipo soviético, já estavam podres há mais de meio século. E do mesmo modo, a cooptação dos partidos socialistas para a condição de gestores do sistema, sob a fórmula social-democrata, que sequer considera necessário transformar o capitalismo em outro sistema, já tinha uma tradição de um século.

É claro que nas condições do Brasil da década de 1980 o aparecimento de um partido de trabalhadores de massa era um fenômeno capaz de polarizar e atrair demandas e militantes de todos os setores sociais. Lutadores da reforma agrária, do ambientalismo, do movimento negro, feminista, homossexual, etc., todos foram atraídos pelo ímã irresistível do petismo, até porque não havia outra coisa a se fazer. Do mesmo modo, intelectuais e militantes desiludidos com os partidos comunistas tradicionais aderiram ao petismo, na esperança de que o partido encontrasse a fórmula de uma transformação socialista verdadeira.

O resultado é que o petismo ganhou um caráter socialista imposto “de fora”, artificialmente. Queria-se crer que o PT era socialista. Um socialismo vago, espontâneo, improvisado, “à la carte”, ao gosto do freguês. Cada petista tinha sua visão do socialismo do PT e queria acreditar que essa visão era aquela pelo qual o partido iria lutar. Por isso permanecia e permanece no partido, na esperança de que essa sua visão ainda tenha chance e sua luta não tenha sido em vão. Essa disposição fazia a força do petismo e ao mesmo tempo a sua fraqueza, que agora foi cruamente revelada.

O fato é que um socialismo sem clareza de suas condições e tarefas foi assumido tacitamente e a contragosto por Lula e por sua cúpula. Um rótulo inconveniente do qual foi preciso se descartar com presteza logo que o muro de Berlim caiu. Era mais fácil dizer que o socialismo estava morto, como já dizia a social-democracia há um século, do que empreender a gigantesca e necessária crítica do processo soviético. Crítica esta que seria uma pré-condição para retomar a luta no contexto do capitalismo globalizado impulsionado pela violenta ofensiva neoliberal.

Retomar a luta? Mas que luta?

O problema não é portanto saber se o governo Lula e a cúpula do PT está sendo fiel ou não ao programa e à história do partido. O problema é saber se os militantes do partido se deixaram levar pela falsa esperança da política eleitoral burguesa. Não falo como uma crítica aos militantes no sentido pessoal, como se fossem “incompetentes”. Até porque sempre rendi homenagem aos militantes do PT, e faço-o novamente aqui, no sentido de que são a mais importante força transformadora do país, estando a frente de todos os movimentos sociais, ocupações de terra, lutas de minorias, etc.. Falo da armadilha histórica em que se envolveram.

O petismo caiu na armadilha de acreditar que bastava eleger Lula para realizar seu programa. E diluiu-se assim na vala comum dos partidos políticos, organizações mafiosas dedicadas ao mero domínio do aparelho do Estado. O movimento de massas que gerou o petismo e foi impulsionado e aglutinado por ele tornou-se simples acessório de um partido político. A única e honrosa exceção foi o MST, que prosseguiu sendo um movimento autônomo e coerente. Mas até quando? O MST poderá resistir à cooptação, à repressão e à desmobilização?

A grande tragédia da história do Brasil é que nada desmobiliza mais um movimento de massas do que um governo de esquerda. A esquerda não deve ser governo, deve ser uma força de transformação. Quando se torna governo, deixa de ser esquerda. Ser de esquerda é ser a favor das transformações sociais. As forças que lutam pela transformação devem usar partidos, governos, movimentos, igrejas, jornais, o que quer que seja, para transformar a realidade, sem nunca ser um simples governo, um simples partido, uma simples instituição de qualquer natureza. O movimento deve continua sendo movimento, dentro do governo e também fora dele. Temos experimentado conciliações, composições, conchavos, coalizões e alianças há 500 anos. É hora de partir para o confronto.

A falta de imaginação nesse sentido, como já escrevi em outro texto, é vexatória. Se não há condições para o confronto de classe aberto, que se use outra tática. Basta colocar em prática a bandeira tão burguesa e respeitável da ética e do combate à corrupção. Uma campanha maciça e consistente com esse escopo bastaria para defenestrar 99% da elite política tradicional brasileira. Campanha a que a mídia não teria como não aderir e que contaria com o apoio certo da opinião pública. A menos que o PT tenha ido longe demais nas conciliações, composições, conchavos, coalizões, alianças...

O mais triste é que, por um momento, o breve momento de algumas décadas, em que se construiu a gloriosa legenda do petismo, essa fórmula pareceu ter sido encontrada. Aquela fórmula a que aludi, a formula mágica de uma transformação autenticamente socialista, tão ardentemente buscada há séculos e no mundo inteiro, pareceu ter de fato sido encontrada. O caráter aglutinador do petismo, sua abertura para as diferentes tendências, seu apego à tolerância, à democracia, a todas as causas e todas às demandas, o espaço para todas as reivindicações, o apelo à ética, a simpatia de todas as pessoas inteligentes e bem intencionadas, a ressonância dos melhores instintos da alma brasileira, fizeram do partido a própria imagem de uma utopia em construção.

Pena que foi apenas por um momento, por um breve momento. A mágica era puro ilusionismo da Articulação. Desvaneceu-se como fumaça ao enfrentar seu primeiro teste com a realidade. É hora de começar tudo de novo.

Daniel M. Delfino

11/01/2004

A farsa do desemprego




O desemprego é uma farsa. Mais do que isso, é um falso problema. Tenho pena das pessoas que procuram um emprego como se isso fosse a solução de seus problemas. E tenho pena dos governos que pensam que sua missão é gerar empregos. Nada pode ser mais absurdo do que esse programa, “gerar emprego”. O fato de que esse tipo de programa de governo e de obsessão pessoal tenha se tornado uma febre mundial apenas mostra decisivamente o quanto o mundo inteiro está de cabeça para baixo.

O trabalhador não tem que mendigar por alguma coisa para fazer. A idéia de “gerar emprego” como programa de ação dá a impressão de que não há nada de importante para ser feito no mundo. Inventa-se uma atividade, que não existia antes, só para dar ocupação para uma massa de desocupados, sem qualquer relação com as necessidades concretas da sociedade. É patético e ridículo.

Tome-se o exemplo oposto. Há indústrias voltadas para a destruição de sociedades e indivíduos, mas que são sustentadas sob o pretexto de que “geram empregos”. Indústrias como a de armas, de cigarro e de bebidas alcoólicas, que trazem incomensuráveis danos e prejuízos, pessoais e sociais para a humanidade inteira, mas que, uma vez que já estão instaladas, devem continuar girando, já que “geram emprego”. Ou seja, para o sistema, não interessa o que é necessário para a sociedade, mas o que pode lhe gerar lucro. Essas indústrias da destruição não produzem coisa nenhuma que seja útil, mas produzem valor para o capital, portanto devem ser mantidas, o que representa um absurdo clamoroso.

Insisto em que o trabalhador não precisa procurar emprego. Precisa de trabalho. A sociedade não precisa “gerar empregos”. Precisa atender necessidades humanas. Tome-se o exemplo do Brasil. O Brasil é um país pobre, sem infra-estrutura. Um país ainda em construção, com misérias e carências gigantescas. Uma sociedade racional trataria de atender essas necessidades: moradia, saúde, educação, transportes, saneamento. Existe muito trabalho a ser feito, como qualquer um pode ver.

Existe muito trabalho a ser feito, assim como existe muita gente em busca de trabalho. Porque não se juntam a fome e a vontade de comer? Porque não se organizam os trabalhadores para satisfazer as necessidades dos próprios trabalhadores? Qual a necessidade de que haja empresas como intermediárias do processo? Certamente não é uma necessidade técnica, inerente ao processo econômico-reprodutivo da sociedade. O que impede os trabalhadores de se organizarem de forma auto-gestionária é a falta de consciência dos próprios trabalhadores.

A necessidade da intermediação do capital no processo econômico-reprodutivo da sociedade é apenas uma necessidade cultural e ideológica, social e política, totalmente artificial. A necessidade de se manter o “status quo” da sociedade capitalista brasileira. Uma sociedade capitalista capenga e incompleta, mas ainda assim capitalista. Os trabalhadores precisam de emprego e a sociedade precisa de trabalho, mas uma coisa não pode resolver a outra, porque no regime capitalista ambos são reféns das necessidades do capital.

O trabalhador só pode trabalhar se com isso conseguir satisfazer aos critérios parasitários da sobrevivência do capital. Só há trabalho onde há oportunidade de lucratividade para o capital. Só há oferta de emprego quando há possibilidade de extrair mais valia e acumular capital. Se a perspectiva do mercado não é favorável, o trabalhador continua desempregado, as máquinas continuam paradas, as carências sociais continuam sem resolução.

O absurdo desse sistema é manifesto. O trabalhador só tem emprego se o capital considerar que haverá mercado para vender mercadorias. Só haverá mercado se houver consumidores. As pessoas só poderão ser consumidores se tiverem renda. Só terão renda se tiverem emprego. Só terão emprego se o capital achar que terá lucro. E assim sucessivamente, num círculo vicioso de alternativas mutuamente condicionantes e reciprocamente auto-restritivas. Para sair desse círculo vicioso, requer-se a ação de um agente externo, que é o Estado, o qual por meio da geração de crédito e dívida, provê a liquidez para que o sistema volte a circular.

O Estado realiza a mágica de voar puxando-se para cima pelos próprios cabelos. Essa solução é evidentemente artificial. A conta do sistema capitalista não fecha. Se não há emprego e não há renda, não haverá consumidores, e se não houver consumidores, não haverá emprego nem renda. O sistema se auto-restringe e exclui massas imensas e países inteiros de qualquer possibilidade de trabalho ou de renda. Apenas em ciclos econômicos ascendentes há possibilidades limitadas de inclusão. Esses ciclos são estimulados por duas alternativas: endividamento ou inovação tecnológica.

Se todas as dívidas fossem cobradas e todos os títulos resgatadas, o sistema implodiria. Ele só se sustenta sob o pressuposto de que essa cobrança não irá acontecer. O mundo não olha para o abismo de dívidas sob seus pés, mas para as nuvens no céu, em busca de sinais de uma prosperidade que nunca vem. Vive-se a ditadura do curto prazo. Ninguém olha para os próximos 10 ou 20 ou 50 anos, apenas para o próximo exercício fiscal. Medem-se as possibilidades ínfimas de crescimento em porcentagens insignificantes e todos cruzam os dedos na expectativa de que essas possibilidades se realizem. Ninguém pode aspirar nada além disso.

Mencionei acima que uma das saídas para o crescimento econômico é a inovação tecnológica, como aconteceu recentemente através da chamada “Terceira Revolução Industrial”, que trouxe a robótica, a informática, a internet e as telecomunicações. Essas inovações trouxeram períodos isolados de crescimento econômico, em certos países isolados, mas sempre com desemprego. Na atual conjuntura econômica mundial, não existe emprego estável. No atual sistema produtivo, a tecnologia se tornou inimiga do homem. A tecnologia, ao invés de gerar tempo livre, gera desemprego. Esse é outro absurdo manifesto do sistema do capital.

A ciência e a tecnologia não estão a serviço do homem, mas do capital. Numa sociedade racional, uma nova tecnologia serviria para diminuir tempo de trabalho, não para demitir trabalhadores. Por exemplo, quando se inventam catracas eletrônicas para ônibus, ao invés de demitir os cobradores, diminuiria-se a jornada pela metade e se empregariam os cobradores como motoristas. Os trabalhadores teriam assim um tempo livre adicional para atividades criativas, ou para trabalhar em outro emprego. A inovação teria se produzido a seu favor e não contra eles. Como não estamos numa sociedade racional, os trabalhadores são demitidos, em nome do progresso.

O progresso é sinônimo de avanço avassalador do mercado. O mercado invade todos os setores e todos os países. Torna-se um mercado global. Em nome do mercado, não existe mais estabilidade nos empregos. Quem está empregado hoje pode não estar mais amanhã. Não há mais estabilidade e tranqüilidade para exercer qualquer profissão. Hoje em dia tudo é competição, tudo é tensão, tudo é nervosismo, corrida contra o tempo, necessidade de se atualizar e “se reciclar” para se manter “empregável”.

Ironicamente, o sonho do trabalhador de hoje é voltar aos “Tempos Modernos” de Chaplin, onde tudo que tinha que fazer era apertar parafusos. Era terrivelmente explorado, mas pelo menos não tinha que pensar. O pensamento do sistema era reservado ao exército dos burgueses e pequeno-burgueses, como seu privilégio e sua atribuição específica no interior do sistema produtivo. Hoje o proletário também tem que pensar, tem que se interessar pelos rumos da empresa e do país, tem que “vestir a camisa”, incorporando exigências e preocupações antes peculiares à classe dirigente burguesa, herdando um ônus adicional sem compartilhar os bônus da situação.

O trabalhador sente como se fosse sua culpa o fato de estar desempregado e reduz sua auto-estima, seu interesse pela vida e até seu desejo sexual. O desempregado se reduz a um ser humano pela metade. A essa altura, já está claro que não escrevo isso para dar algum consolo a quem está desempregado. Antes, pelo contrário, para deixar preocupado quem está empregado. Não existe emprego estável no mundo, repito. Não existe sequer uma classe dominante burguesa estável. A burguesia está sujeita à mesma competição estressante da caça por mercados. Isso é reflexo da transformação do capitalismo globalizado em um sistema mundial conduzido por megacorporações nas quais o papel produtivo da classe dominante é irrelevante ou inexistente.

A burguesia, como camada social que se define pelo vínculo da propriedade dos meios de produção, é tecnicamente inútil para o sistema produtivo. Cabe-lhe ser substituída por uma subclasse de gerentes e administradores, até mesmo executivos milionários, mas essencialmente proletarizados. O burguês tem que trabalhar tanto quanto o proletário. O burguês se proletarizou, mas o proletário não consegue mais se aburguesar. As portas estão fechadas. Apenas uma elite parasitária de rentistas tem segurança em suas aplicações financeiras. Isso enquanto conseguir manter o mundo inteiro refém do capitalismo cassino parasitário.

Todo emprego é precário. Até mesmo o de Presidente da República legalmente eleito. Que o digam De La Rúa da Argentina, Sanchez de Lozada da Bolívia, Shevardnadze da Geórgia. Quando o mercado está insatisfeito e o consumidor percebe que comprou gato por lebre, ele se revolta e vira a mesa. O mundo de hoje está interligado pelo mercado e pela competição. A qualquer momento, um concorrente do outro lado do mundo pode roubar uma fatia de mercado, derrubar uma empresa, um ramo de atividade, um país inteiro. Isso sem falar nas instabilidades do mercado financeiro, que não negocia mercadoria nenhuma, mas tem o poder de derrubar economias, produzir recessão e fabricar desemprego em massa.

O assim chamado “comércio mundial” é um teatro do absurdo. Quando se fala em comércio, a primeira imagem que se tem é a de um grupo de vendedores oferecendo mercadorias a serem livremente escolhidas por compradores eventualmente interessados. No que se refere ao mercado mundial, nada é mais falso do que isso. O comércio mundial é qualquer coisa menos “livre comércio”. É um jogo da batata quente. Cada um tenta empurrar suas mercadorias aos outros. Cada país diz ao outro: “aceito comprar uma certa quantidade dos seus carros se você aceitar comprar uma certa quantidade do meu trigo.” Disputa-se a imposição mútua de cotas de venda. Ser vendedor é estar por cima, ter vantagem, empurrar mercadorias, que na verdade são um problema para o outro.

Ser comprador é ser logrado, ludibriado, fraudado, engrupido, enganado, vencido. O que isso tem a ver com as finalidades da economia, de alocar adequadamente recursos produtivos e atender necessidades? Cada governo deve se esforçar para empurrar mais exportações para outros países e deve evitar que seu país importe para não gerar déficit comercial. Para exportar, deve baixar os custos de produção. Como a margem de lucro do capital é um limite intransponível para o Estado, a corda arrebenta do lado mais fraco, através da tentativa de reduzir os custos do trabalho. Reduzir os custos da mão de obra significa reduzir salários, estender jornadas, precarizar direitos. Rebaixando a renda do trabalhador, porém, reduz-se o mercado interno, cria-se mais desemprego, pobreza e violência.

Mas é isso que todos os governos insistem em fazer, baixar os custos da mão de obra, sob o pretexto de flexibilizar o mercado. Inclusive o governo do Partido dos Trabalhadores (sic) no Brasil, que acena com propostas nessa direção, dando continuidade à agenda neoliberal de FHC. Esfacelada a CLT, teremos de vez o reino do salve-se quem puder, a volta das jornadas de trabalho dignas das minas de carvão da Revolução Industrial inglesa. Sob o pretexto de “gerar empregos”...

Não acho que a vivência de quem escreve seja o critério decisivo para avaliar a validade do que foi escrito. Acho que uma tese deve ser avaliada pelo seu significado intrínseco e não pela origem de quem a emitiu. O que escrevi aqui deve ser verdade ou não por si só, não pelo fato deste escriba estar empregado ou desempregado. Mesmo assim, é importante esclarecer este ponto. Trabalho desde os 11 anos de idade, já estive em seis empregos diferentes, sendo que apenas meu emprego atual é formal e devidamente registrado.

Não tenho qualquer ilusão quanto à continuidade desse emprego atual a médio e longo prazo. Como caixa de banco, sei que minha profissão é perfeitamente inútil. Minha matéria de trabalho, papel moeda, folhas de cheque, boletos de cobrança, é completamente obsoleta, pois há alternativas tecnicamente viáveis de meios eletrônicos de pagamento à disposição para substituí-las. Continuo empregado apenas enquanto houver resistência cultural dos clientes do BB a usar máquinas de atendimento e internet.

Meu emprego é precário como qualquer outro. Mas meu verdadeiro trabalho, ainda que não remunerado, é escrever, uma função que considero socialmente mais útil. Se não servir para mostrar que o mundo inteiro está de cabeça para baixo, pelo menos mostra decisivamente que eu sou o único que estou louco.

Daniel M. Delfino

11/01/2004