2.9.08

Pequim 2008: nem tudo que reluz é ouro!


O crescimento da China é o mais novo mito do capitalismo mundial. Um crescimento falsificado, como os produtos falsificados vendidos por camelôs, todos “Made in China”. Assim como foi falsificada a cantora que se apresentou na abertura dos Jogos de Pequim, dublando uma canção tocada em “playback”, porque talvez a dona da voz original não correspondesse à imagem que a China quer apresentar de si para o mundo.

Os Jogos Olímpicos, no fundo, são uma jogada de marketing cuidadosamente arquitetada para que os países sede apresentem ao mundo uma imagem promocional fabricada do seu “sucesso”. Esse potencial do esporte para servir de vitrine para uma determinada política já é explorado a bastante tempo pelos mais diversos regimes. O próprio ritual dos Jogos, com uma monumental cerimônia de abertura, tocha olímpica, vila olímpica, etc., foi inventado pelos nazistas para as Olimpíadas de Berlim em 1936.

Nas últimas décadas, esse potencial foi amplificado pela incorporação do esporte à indústria do espetáculo. Como uma atração que mobiliza a paixão das massas (basta pensar na paixão dos brasileiros pelo futebol), o esporte se converteu em mercadoria e passou a ser produzido e vendido como tal. Ao ingressar na produção de mercadorias, o esporte se submeteu à lógica da competição econômica, que é bastante diferente da competitividade esportiva.

O espírito esportivo e a lógica do capital

A origem das competições esportivas está nos festivais religiosos da Grécia antiga, dentre os quais as homenagens a Zeus em Olímpia, ou Jogos Olímpicos, que compreendiam além das lutas e exibições atléticas os recitais de música e poesia. Os gregos cultivavam um ideal de humanidade (restrito aos homens livres) baseado no cultivo harmônico da mente e do corpo. Também as sociedade orientais desenvolveram, através de suas artes marciais, um sofisticado ideal de auto-controle e disciplina física e mental. Em ambos os casos, os esportes eram modalidades de livre expressão e exploração das possibilidades do corpo humano. Os esportes modernos, por outro lado, são subproduto e expressão do mecanismo de dominação e disciplina da sociedade capitalista, a partir de fins do século XIX.

O capitalismo requer o homem-máquina, disciplinado, preciso, mecânico, ajustado ao controle férreo do relógio, dos limites bem demarcados, dos espaços restritos, das coreografias exatas, das regras de conduta, das hierarquias sociais. A massificação dos esportes ocorre paralelamente ao enquadramento dos trabalhadores pela disciplina rigorosa das fábricas, das escolas, do adestramento militar, das regras de trânsito, da rotina cotidiana, servindo-lhes de metáfora e ilustração estética. Ao mesmo tempo, a atividade física funciona como uma extrapolação da ideologia produtivista para além do tempo de trabalho, mantendo os indivíduos obsessivamente ativos, ligados, “produtivos”, mesmo depois de encerrada sua jornada regular a serviço da produção. A “produtividade” obsessiva se converteu em necessidade psicológica individual e paranóia coletiva. Por último, o esporte fornece também matéria-prima para a indústria do espetáculo, oferecendo atrações que mobilizam a atenção e impedem a reflexão (numa legítima continuidade com o “pão e circo” dos romanos).

A competição esportiva, no seu sentido estrito, derivado do conceito grego de “ágon” (auto sacrifício, auto-domínio, esforço, determinação na disputa), tem como objetivo desenvolver os limites do homem, portanto, trata-se de certo modo de uma conquista da humanidade. A competição econômica, por outro lado, não tem limites, já que o objetivo do capital é a reprodução ampliada, a expansão infinita do valor econômico abstrato. A competição esportiva admite a derrota, o que inclusive caracteriza a própria essência do assim chamado “espírito esportivo”, segundo o qual “o importante é competir”.

Já na competição econômica, quando o esportista se coloca a serviço da obtenção de riqueza para si próprio, para os patrocinadores ou para o Estado, ele não aceita a derrota e inclusive trapaceia, recorrendo ao dopping, que se transformou numa indústria paralela aos esportes de alto nível, um tabu sobre o qual não se fala, porque compromete a imagem do esporte. Ou então, o derrotado joga fora a medalha de bronze, porque só aceita o ouro, como um atleta sueco de luta greco-romana fez em Pequim.

A ideologia ufanista

Ao se incorporar à lógica da competição econômica, o esporte também fornece elementos para reforçar o discurso ideológico que separa as pessoas entre vencedores e vencidos, enaltece o esforço individual e negligencia as circunstâncias, destaca o indivíduo extraordinário e esquece o coletivo, etc. A obsessão produtivista também faz com que cada Olimpíada seja comemorada como “a maior de todos os tempos”, como se isso fosse algo extraordinário, sendo que na verdade é um fato mais do que natural, já que a cada edição dos Jogos há um número maior de modalidades em disputa e um número maior de países que participam, com delegações também maiores.

O Brasil é um desses países que a cada edição aumenta o número de participantes, ficando sempre dezenas de posições atrás dos primeiros lugares no quadro de medalhas, tornando ridículo o ufanismo imbecil dos mercadores vulgares do esporte no Brasil, como os Galvões Buenos da vida. O esporte é também uma medida da saúde de uma sociedade e os resultados do Brasil nas Olimpíadas mostram como a população brasileira é maltratada. Segundo a Organização Mundial de Saúde, cada dólar investido em esporte economiza 3 em saúde pública (dados do jornalista Juca Kfouri). O Brasil não investe em saúde pública, nem em esporte de base, nas escolas e nas comunidades carentes. Apesar disso, alguns heróicos atletas brasileiros competem e vencem nas Olimpíadas, dando mostras do potencial da população brasileira.

É preciso porém fazer a distinção entre o esporte como política de saúde pública e o esporte de competição profissional, submetido à lógica produtivista do capitalismo e desprovido de limites éticos. Os esportistas de competição submetem seus corpos a pressões físicas destrutivas, comprometem sua saúde e muitos se transformam em aberrações. O preço a ser pago para que tenhamos o espetáculo dos Jogos é a mutilação física e psicológica de seres humanos, transformados numa sub-raça à parte dos simples mortais.

A competição geopolítica

Os semi-deuses do Olimpo moderno são peças recicláveis da indústria do espetáculo, tão descartáveis como os astros do rock e as estrelas de cinema. O “show deve continuar”, a despeito de que a população chinesa receba uma remuneração média de U$ 0,75 por hora de trabalho, contra U$ 2,56 no Brasil e U$ 21,00 nos Estados Unidos, em jornadas que se estendem por mais de 70 horas semanais. Como se não bastasse isso, as cidades chinesas estão entre as mais poluídas e insalubres do mundo. Uma Olimpíada com cara de século XXI tenta mascarar a condição de superexploração típica de uma revolução industrial do século XIX.

A superexploração do proletariado chinês é conduzida com mão de ferro pela burocracia do Partido Comunista, que se apropriou do legado político da revolução de 1949 e encastelou-se de modo ditatorial no controle do Estado e das instituições. Essa burocracia se associou às transnacionais imperialistas para desatar o atual ciclo de “crescimento econômico”, baseado em exportações para os Estados Unidos. Além disso, a parcela dos dólares recebidos pela burocracia é investida em títulos da dívida do Tesouro estadunidense, de modo que a China financia diretamente o imperialismo. As duas potências vivem assim uma curiosa relação de simbiose conflitiva: os Estados Unidos e suas transnacionais dependem da mão de obra barata chinesa, enquanto a China depende do mercado consumidor estadunidense. Ao mesmo tempo, as duas potências desenvolvem uma disputa geopolítica que retoma alguns aspectos da finada Guerra Fria do século XX entre Estados Unidos e URSS, como a corrida armamentista.

As estocadas se sucedem, como durante o percurso da tocha olímpica até a China, quando manifestações pró-Tibete orquestradas e devidamente amplificadas pelo imperialismo tentaram criar constrangimentos para a burocracia. A aspiração legítima de auto-determinação dos povos se converteu em instrumento político do imperialismo para pressionar seus rivais. O fato de que a China seja uma ditadura é constantemente relembrado pela mídia internacional e o foi durante os Jogos. O que não foi mencionado é o fato de que a China só foi capaz de conquistar alguma margem de autonomia e lançar as bases para seu atual crescimento graças à revolução de 1949.

Como sempre, prossegue o combate ideológico para soterrar de vez a memória da luta pelo socialismo. A burocracia do PC chinês milita na trincheira capitalista, promovendo Jogos que visam construir a imagem de um capitalismo vitorioso, no momento mesmo em que a crise econômica, a crise política resultante do fracasso da “guerra ao terror” e a crise ambiental global expõem dramaticamente as contradições e os limites insustentáveis desse sistema.

Daniel M. Delfino
Setembro 2008

Um comentário:

Anônimo disse...

É isso aí, meu caro amigo Daniel. Este é o século XXI e não podemos esquecer o comentário de um novo membro da nova classe média chinesa: "Não queremos democracia, queremos ficar ricos". Esta é a nova lógica chinesa jogando no lixo a velharia da tal "milenar sabedoria" ou é a lógica da globalização (e suas conseqüenciazinhas)?. Dou um AK-47 para quem provar que não (ou explicar melhor esta equação).

Já do nosso lado, o IPEA, de uma canetada promoveu a "inclusão social" dos "ex-classe D" (eu inclusive) à classe média. E, de acordo com reportagem do Jornal da Globo, também os "novo classe média" brazucas querem ficar ricos. Apelos midiáticos não faltam...

Dentro desse cenário temos uma esquerda caduca, arapongas digitais, animadores de festas fake tipo os Galvões, e nós já quase "amando" o Grande Irmão...

Um grande abraço Daniel e me desculpe mais uma vez, mas é que meus remedinhos psquiátricos só aumentam.

Plínio