18.11.08

1968, o ano vermelho - Parte 1 de 3

1. Introdução

Quando recordamos o ano de 1968, o que mais se destaca é a impressionante diversidade dos acontecimentos e sua escala global de abrangência. Poucas vezes na história da humanidade os sistemas de dominação foram sacudidos por processos de luta de massa com tamanha riqueza e de forma tão simultânea e ubíqua. Desde os países imperialistas até as ditaduras do 3º Mundo, passando pelos satélites do bloco soviético, o sopro de contestação percorreu os mais variados contextos nacionais e desafiou a totalidade das formas de alienação.

1968 pode ser considerado um marco histórico, tal como a Primavera dos Povos de 1848 na Europa e o Outubro Vermelho de 1917, com a onda de entusiasmo que a ele se seguiu. Em relação a esses dois momentos tão especiais, 1968 revelou uma variedade ainda maior de possibilidades utópicas e radicais, de propostas teóricas, de experiências práticas, de perspectivas programáticas e de horizontes de emancipação, ainda que no curto prazo os seus resultados imediatos tenham parecido insignificantes.

No interior da narrativa histórica hoje predominante, estruturada a serviço da ideologia burguesa e constituída pelas idéias de “fim da história”, “morte do homem”, “derrota do socialismo”, “inviabilidade da revolução”, “inevitabilidade do capitalismo”, etc., os acontecimentos de 1968 são apresentados como uma mera onda febril de “agitações” localizadas principalmente no universo estudantil e da “juventude”, uma espécie de adolescência coletiva efervescente depois da qual as massas retornaram devidamente “amadurecidas” à “sensatez” e à “racionalidade”, ou seja, à obediência das formas fetichizadas e burocratizadas da reprodução social submetida à lógica do capital.

O que se propõe aqui é demonstrar o quanto essa leitura empobrecedora tem de equívoco. Resgatar o ano de 1968 significa evocar o velho espectro da luta de classes, que emergiu plenamente consciente de si no célebre Manifesto que inaugurou a Primavera de 1848; que lançou seu desafio no assalto direto ao poder em 1917; e que está sempre à espreita para perturbar o sono dos apologistas da ordem, renovando-se permanentemente para indicar à humanidade os caminhos para formas de vida verdadeiramente humanas, autênticas e livres.

O resgate de 1968 deve começar pelo exame do contexto da Guerra Fria, passar pela referência de fundo às transformações sociais das décadas do pós-guerra, para só então percorrer, numa breve visão panorâmica, o rico caudal revolucionário daquele ano vermelho, terminando por uma sistematização das implicações teóricas e lições que foram tiradas do movimento, à guisa de conclusão.

2. A Guerra Fria

A Guerra Fria foi um acordo entre o imperialismo e a burocracia soviética para evitar a eclosão de novas revoluções socialistas. O stalinismo passou da teoria do “socialismo em um só país”, consolidada já nos anos 1930 com o expurgo dos últimos revolucionários na URSS, para a prática da “coexistência pacífica” com o imperialismo no pós-guerra. Os acordos de Terã, Ialta e Potsdam, que dividiram o mundo em áreas de influência, consolidaram a renúncia da burocracia à tentativa de subverter a ordem capitalista mundial. Para que isso fosse aceito no interior do movimento socialista, a burocracia desenvolveu o discurso de que a superioridade do socialismo seria demonstrada “naturalmente” por meio da abundância material, quando a URSS produzisse mais ferro e carvão do que os Estados Unidos. Assim, o mundo inteiro seguiria Moscou, o farol dos povos, e se tornaria “gradativamente” socialista, sem a necessidade de novas revoluções e lutas pelo poder.

A conclusão prática desse discurso estava na política dos Partidos Comunistas (PCs) nos países imperialistas e na periferia. Os PCs stalinistas renunciaram à estratégia da revolução socialista e se adaptaram ao capitalismo, tal como os partidos socialistas da II Internacional haviam feito já desde antes da I Guerra. Tanto socialistas quanto comunistas adaptaram-se à democracia burguesa, passaram a disputar eleições, dedicaram-se a melhorias limitadas no interior do capitalismo e domesticaram os sindicatos para colaborar na administração do sistema, ao invés de organizar os trabalhadores para abolir a sociedade existente.

Na periferia, os PCs adotaram a estratégia de coligação com os “setores progressistas” das burguesias nacionais para realizar as tarefas democráticas pendentes da revolução burguesa nesses países, prometendo para um indefinido porvir (que na prática nunca vinha) a revolução socialista.

O problema desse acordo geral é que faltou combinar com o adversário: a revolução continuou sendo uma necessidade dos trabalhadores e dos povos oprimidos. A decomposição dos antigos impérios coloniais europeus na África e Ásia nas décadas de 1950 e 60, bem como os movimentos e governos nacionalistas na América Latina, que ensaiavam passos na direção de uma autonomia real perante o imperialismo, colocaram em cena grandes movimentos de massa, mobilizações operárias, camponesas e estudantis, vanguardas organizadas e guerrilhas que inevitavelmente se chocavam de forma aberta contra a ordem.

Tudo isso acontecia num cenário marcado por uma série de transformações sociais e culturais de proporções cataclísmicas, as quais serão discutidas logo a seguir, e que atingiram também os países imperialistas e os Estados da órbita soviética, o que dificultou sobremaneira a administração e o controle que os operadores do sistema esperavam conseguir sobre esses processos. Foi desse lapso de controle que nasceram os movimentos de 1968.

3. As transformações sociais

3.1 Fim da Idade Média

A dimensão das transformações sociais globais de meados do século XX pode ser aquilatada por meio de uma contundente afirmação do historiador Eric Hobsbawm: “Para 80% da humanidade, a Idade Média acabou de repente em meados da década de 1950; ou melhor, sentiu-se que ela acabou na década de 1960” (A Era dos Extremos, p. 283). A História mundial sempre transcorreu em ritmos desiguais (e combinados), com várias sociedades se desenvolvendo mais rápida e intensamente que as outras. No século XX, esses ritmos se aceleraram e se homogeneizaram.

A imensa maioria da humanidade, nos continentes da Ásia, da África e em certos rincões e sertões da América Latina, até então vegetava em modos de vida que remontavam praticamente aos tempos bíblicos. Subitamente, no espaço de tempo de uma ou duas gerações, esses povos descobriram-se arremessados no mundo da revolução industrial, da produção em massa, da economia global, das grandes metrópoles, da cultura letrada, dos motores de combustão, das armas de fogo, dos meios de comunicação eletro-eletrônicos, do Estado nacional e suas instituições burocráticas. Aquilo que a Europa e os Estados Unidos levaram dois séculos para construir e assimilar tornou-se realidade em poucas décadas para o restante do mundo.

A população mundial dobrou entre 1950 e 1990 (de 3 para 6 bilhões). Na Europa e Estados Unidos, a explosão demográfica do pós-guerra recebeu o nome de “baby boom”. A população global não apenas explodiu em números absolutos, mas concentrou-se nos meios urbanos com impressionante velocidade. O processo acaba de se completar neste início de século XXI, com a industrialização da China e da Índia, quando, pela primeira vez na História, a população urbana global tornou-se maior que a rural. Em meados do século XX, precisamente na década de 1960, a tendência irrefreável em direção a essa inversão histórica já se tornava nitidamente visível por meio da proliferação de dezenas de metrópoles com vários milhões de habitantes, que se multiplicaram por toda a periferia global (São Paulo, México, Xangai, Bombaim, Cairo, Jacarta, etc.) e se tornaram o padrão das sociedades modernas.

O século XX foi um dos mais belicosos e assassinos da história e registrou também seus surtos de epidemias, fomes, catástrofes naturais, etc. Mesmo assim, a expectativa de vida média aumentou exponencialmente, graças à generalização (mesmo que limitada) dos avanços da medicina e da higiene e ao aumento expressivo da produtividade agrícola. A queda da mortalidade, especialmente da mortalidade infantil, mais do que o aumento da natalidade, é o que explica a explosão demográfica do século XX.

Apesar da diminuição brutal e constante da população camponesa, a produção mundial de grãos quase duplicou entre 1950 e 1980, devido à generalização do uso de fertilizantes, pesticidas e maquinário. A população camponesa emigrou em massa para as metrópoles e lá encontrou uma economia industrial cuja produtividade aumentava também de modo vertiginoso e propiciava já a formação de um gigantesco setor de serviços. A classe operária industrial manteve aproximadamente a mesma proporção em relação à população total, mas a produção mundial de manufaturas quadruplicou entre o início da década de 1950 e o início da década de 1970.

De modo muitíssimo acelerado, o mundo se tornou portanto mais populoso, mais urbano e mais produtivo. A abundância material tornou-se uma realidade para parcelas nada desprezíveis da população, embora largos contingentes permanecessem atolados na miséria das favelas que cresciam incontrolavelmente no entorno das metrópoles. O mundo se tornou também mais interligado: o comércio mundial de manufaturados aumentou dez vezes.

Tornou-se ainda “mais feminino”: em 1980, mais da metade das mulheres trabalhava fora de casa nos Estados Unidos, contra 14% em 1940. A invenção da pílula anti-concepcional, que permitiu às mulheres controlar a reprodução, coincidiu com a entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho, tanto na indústria como no setor de serviços, com diferentes proporções entre os países imperialistas e a periferia. A saída parcial das mulheres da escravidão doméstica ensejou a sua mobilização e organização política. O reaparecimento do feminismo interrompeu a predominância milenar do patriarcado e produziu a crise da família nuclear burguesa, embora a emancipação total das mulheres ainda esteja longe de ser uma realidade.

Finalmente, o mundo tornou-se mais alfabetizado e mais culto. A população universitária, antes uma elite minúscula, demograficamente insignificante, passou de 0,1 % antes da II Guerra para 2,5 % no final da década de 1980, um crescimento de 25 vezes! Também em 1980, metade dos estudantes universitários nos países mais avançados já eram mulheres (os dados apresentados nesta seção também são todos do livro “A Era dos Extremos”, de Eric Hobsbawm).

3.2 Cultura e Contra-cultura

Não houve crise econômica em 1968. Pelo contrário, o capitalismo nos países imperialistas vivia naquele momento o período que os historiadores consideram os seus “anos dourados”. As guerras mundiais, a Grande Depressão que se seguiu à crise de 1929, e, principalmente, a Revolução Russa, haviam demonstrado cabalmente aos gestores do sistema a impossibilidade de se manter o capitalismo operando nos moldes do liberalismo típico do século XIX e a necessidade de reformas que aperfeiçoassem seu funcionamento. No pós-guerra, o Estado realizou reformas para salvar o sistema, assumindo o papel de regulador da economia e fazendo importantes concessões à classe trabalhadora (aumento de salário, redução da jornada, previdência, investimentos pesados em serviços públicos) para evitar a eclosão de novas revoluções. As reformas conseguiram estabilizar o sistema durante os anos 1950 e 60 (até que no início dos anos 1970 o efeito estabilizador se esgotou e as crises retornaram) usando toda a margem de manobras disponível num período de crescimento.

O aumento da produtividade (queda do valor unitário das mercadorias), combinado ao aumento dos salários, permitiram a milhões de trabalhadores estadunidenses e europeus adquirirem bens de consumo duráveis que nas décadas anteriores estariam restritos à burguesia. Casas, carros, eletrodomésticos, viagens turísticas e produtos culturais se tornaram ítens de consumo de massa nos países imperialistas (na periferia essa massificação foi um pouco posterior, mais lenta e limitada). Entre outras conquistas, os filhos do proletariado também tiveram acesso ao ensino superior. A geração nascida no “baby boom” do pós-guerra adentrou à universidade em meados da década de 1960. As ciências humanas estavam “na moda”. Filosofia, sociologia, história, psicologia, antropologia e ciência política eram cursos bastante procurados.

Autores antes “proibidos” podiam agora ser estudados na academia. Marx, Lukács, Gramsci e toda a Escola de Frankfurt foram descobertos (ou redescobertos, reinterpretados, reinventados, adaptados e enriquecidos) e alcançaram grande popularidade nos meios estudantis. Intelectuais idolatrados como Sartre realizaram aproximações fecundas com o marxismo e se engajaram nas causas políticas mais palpitantes da época. Autores malditos como Reich ressurgiram das cinzas. Os mais ousados e inovadores, como Debord, provaram ser os que estavam melhor sintonizados com o espírito do tempo. Revolucionários “marginais” como Trotsky e Rosa Luxemburgo voltaram a ter audiência, a ponto de seus seguidores poderem desafiar o monopólio do stalinismo na esquerda, ao lado de inspirações contemporâneas vindas do 3º Mundo (em especial, da China e de Cuba).

Parte da juventude que estava nas universidades sendo preparada para ocupar postos de direção nas corporações e na burocracia do Estado recusou-se a aceitar o papel que lhe estava destinado e passou a questionar o sistema. Os universitários insatisfeitos recusavam-se a ser gestores do capital, pois aspiravam a ser gestores de suas próprias vidas.

O despertar da juventude se dava por meio da descoberta de um marxismo reinventado e da experiência concreta do momento histórico: a descolonização da Ásia e da África, as guerrilhas da América Latina, o movimento de imensas e diversas populações da periferia global com suas culturas peculiares, a luta das mulheres contra o patriarcado, a luta de minorias como os negros nos Estados Unidos, a decepção com o socialismo burocratizado da URSS; todos esses fatores agiram como influências simultâneas que convergiram para o que foi chamado de “a grande recusa”. A sociedade burguesa, industrial, tecnocrática, ocidental, branca, cristã e patriarcal era recusada como um todo.

Assim como a autoridade do patrão sobre os trabalhadores é contestada pelo movimento socialista “tradicional”, os movimentos dos anos 1960 passaram a contestar também a autoridade dos civilizados sobre os primitivos, dos cristãos sobre os pagãos, dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, dos professores sobre os alunos, dos moralistas sobre os corpos. A família, a moral tradicional e “os bons costumes” foram questionados. A própria Igreja Católica tentou adaptar-se ao contexto do século XX realizando algumas reformas internas (por meio do Concílio Vaticano II, de 1962 a 65) que acabaram permitindo o surgimento de uma teologia da libertação.

Instaurou-se o conflito de gerações. Os cortes de cabelo e o vestuário dos jovens indicavam sua escolha por uma vida diferente daquela de seus pais. Os rebeldes se tornaram ídolos de massa. Os artistas mais populares, em especial os músicos de rock, passaram a refletir em suas letras e em suas atitudes as escolhas dessa geração. A cultura de massa, a televisão, o cinema, as histórias em quadrinhos, a ficção científica, a corrida espacial, haviam de certo modo preparado a ruptura com a cultura burguesa anterior. Essa ruptura seria completada pelos artistas da contra-cultura.

As drogas foram experimentadas em profusão. Difundiram-se o amor livre e os relacionamentos abertos. Buscava-se uma revolução na vida cotidiana, nas relações interpessoais, que em alguns casos se colocava também contra as estruturas da política e da economia. A biopolítica, a luta para libertar os indivíduos das coerções sexuais, comportamentais, psicológicas, etc., estava momentaneamente em sintonia com a “grande política” da luta pelo poder (ou contra o poder). A busca de um modo de vida autêntico engrossou uma série de movimentos contestatórios e atitudes inclusive opostas entre si, como a guerrilha e o pacifismo, passando pelo misticismo, comunalismo, ambientalismo, utopismo, anarquismo, espontaneísmo, hedonismo, psicodelismo.

A sede de experiências não era diretamente motivada por razões econômicas. A insatisfação era mais profunda e mais total. A sensação de que havia algo muito errado no mundo era ao mesmo tempo difusa e palpável, não mensurável, mas inescapável. A contra-cultura expressava a luta por uma intersubjetividade verdadeira e autêntica, numa sociedade que a abundância material havia aprisionado no tédio e na artificialidade do consumismo. A abundância e o consumismo eram as derradeiras armas do sistema para conter as massas, nas sociedades mais avançadas. Isso não significa que o sistema tivesse dispensado suas armas mais primitivas, ou seja, a violência e a guerra, que continuaram grassando.

3.3 As guerras quentes

A visão dos anos intermediários do século XX como um período de “Guerra Fria” entre URSS e Estados Unidos mistifica a ocorrência de uma série de “guerras quentes” na periferia do sistema. A decomposição dos impérios coloniais não foi um processo pacífico. A Argélia sustentou uma duríssima guerra contra o colonizador francês até obter sua independência em 1962. Angola e Moçambique também passaram por prolongadas lutas de guerrilha para se libertar do senil império português.

A burocracia soviética cumpriu sua parte no acordo, ou seja, sabotou por meio dos PCs o desenvolvimento da revolução socialista na periferia. Onde a revolução se tornou irrefreável, como em Cuba (1959), a repressão foi exercida diretamente pelo imperialismo. Os Estados Unidos, líderes do “mundo livre”, fomentaram golpes de Estado e ditaduras assassinas onde quer que os interesses de suas corporações estivessem ameaçados e onde os dirigentes locais se mostrassem demasiado débeis para conter as massas.

Intervenções desse tipo se verificaram no Irã em 1953, na Guatemala em 1954, em Cuba em 1961, no Brasil em 1964, na Indonésia em 1965 (algo em torno de 1 milhão de comunistas foram mortos), no Chile em 1973. Destas intervenções, apenas a de Cuba foi derrotada (sem mencionar as guerras da Coréia e do Vietnã). Logo em seguida, quando Cuba alinhou-se à esfera soviética, ocorreu a crise dos mísseis, ocasião em que os mais afoitos temeram que o mundo estivesse à beira de um holocausto nuclear. Os Estados Unidos concordaram em não invadir Cuba e a URSS reafirmou seu compromisso de não fomentar novas revoluções. Um dos líderes do movimento revolucionário cubano, o indômito Che Guevara, ignorou esse acordo e insistiu em levar a revolução para além de Cuba, primeiro no Congo e depois na Bolívia, onde morreu em 1967.

A moral inatacável de Che e sua dedicação à causa o tornaram um mártir da revolução, uma inspiração para seus contemporâneos e para gerações de militantes que se seguiram. Sua imagem é uma das mais marcantes do século e se tornou inclusive objeto de comércio. Em 1968, Che esteve presente em todas as barricadas, ao lado de Marx, Lênin, Mao e Ho Chi Mihn.

Daniel M. Delfino
Novembro 2008

Nenhum comentário: