28.12.11

Eleições 2010: nosso voto é pela luta


1. O que é política

A discussão sobre a tática a adotar para as eleições deve partir de alguns fundamentos. Em primeiro lugar, é preciso discutir o que é política.

A política, nos clássicos do marxismo, é definida como sendo a expressão dos antagonismos existentes na sociedade de classes. O fato de que exista uma divisão da sociedade em classes faz com que esta sociedade tenha que encontrar uma forma de administrar a divisão. Essa forma recebe o nome de política. A política serve para manter a divisão da sociedade em classes, portanto, ela serve para que a classe dominadora mantenha o seu poder sobre os dominados. A luta dos dominados para derrubar a dominação é uma luta que envolve por sua vez abolir a própria política. A luta política da classe trabalhadora é uma luta anti-política. A luta pelo poder político é uma luta pela constituição de um anti-poder, que seja exercido contra a classe dominante e em seguida dissolvido. A luta dos trabalhadores pelo poder político não visa manter esse poder indefinidamente, mas abolir o poder político.

A política é uma esfera separada da vida social, uma esfera alienada, produzida pela atividade dos homens, mas que opera como se estivesse acima e separada dos homens que a produzem. Para abolir a política, a classe dominada deve absorver de volta para si os poderes sociais que estão separados e concentrados nessa esfera da política. Numa sociedade sem classes não deve existir política, mas uma forma de auto-administração da vida social. Essa auto-administração assumirá o controle das forças sociais que estão separadas na economia e na política, acabando ao mesmo tempo com a separação entre economia e política, de forma que a sociedade seja administrada pelos produtores associados, que decidirão de maneira consciente o que produzir e como produzir.

Essa esfera da política enquanto esfera alienada, separada da vida social, se manifesta como poder, como força de coação organizada. A manifestação exterior desse poder organizado é o Estado, que assume diversas formas ao longo da história da sociedade de classes. O moderno Estado burguês é a forma mais perfeita e acabada de poder político, justamente porque esconde em sua constituição mesma a separação das classes. O Estado burguês moderno tem como fundamento exatamente a igualdade formal e jurídica entre os cidadãos. Dizer que todos são iguais perante a lei é uma forma de esconder que todos são desiguais do ponto de vista fundamental que é o da produção, pois existem compradores e vendedores de força de trabalho. A igualdade abstrata da lei ignora a desigualdade concreta entre proprietários e não proprietários, pois ela existe precisamente para manter essa desigualdade.

Ao longo do século XX o Estado burguês foi sendo forçado a conceder cada vez mais igualdade formal para se legitimar. A luta da classe trabalhadora pelo socialismo obrigou o Estado burguês a reconhecer os trabalhadores como participantes da esfera da política e reconhecer os partidos operários como forças políticas aptas a participar do jogo. Isso foi feito por meio do sufrágio universal, ou seja, do direito ao voto estendido a todos os cidadãos (no século XIX o voto era censitário, ou seja, somente os proprietários votavam). A participação dos partidos operários nos processos eleitorais foi uma das vias para a sua transformação em partidos reformistas, assim como a atividade dos sindicatos limitada a reivindicações economicistas. Ao invés de alcançar o poder através do voto para chegar ao socialismo por reformas do Estado, os partidos operários reformistas passaram a legitimar o Estado ocupando cargos e acabaram por negar a necessidade da revolução.

A cooptação dos partidos reformistas para a defesa e manutenção do Estado burguês (e por extensão a manutenção do próprio capitalismo) foi o que obrigou a ala revolucionária do movimento socialista a romper com esses partidos. A crítica dos revolucionários já no início do século XX era de que qualquer participação nos processos eleitorais deveria servir para denunciar essa falsa democracia burguesa e apresentar aos trabalhadores a alternativa socialista. A ruptura definitiva entre revolucionários e reformistas veio a partir de uma tragédia, em 1914, quando os deputados dos partidos socialistas reformistas votaram a favor da guerra nos parlamentos europeus, dando início à I Guerra Mundial. A guerra foi uma grande derrota histórica para o movimento socialista, e deixou os revolucionários isolados e em minoria, fato que foi uma das causas das dificuldades da Revolução Russa para realizar uma transição ao socialismo, dificuldade que acabou se provando intransponível. Essa condição de isolamento e marginalização dos revolucionários por sua vez se agravou com a burocratização da Revolução Russa e a ascensão do stalinismo como direção. Após a II Guerra Mundial, o stalinismo emergiu como falsa alternativa ao capitalismo e ao Estado burguês. Na segunda metade do século XX o stalinismo usurpou boa parte do prestígio de que os antigos partidos reformistas desfrutavam, mas sua política era também na essência reformista, pois o stalinismo, enquanto expressão política dos interesses sociais da burocracia, não tinha a intenção de realizar a revolução em parte alguma.

No final do século XX o stalinismo foi derrubado e a burguesia se aproveitou para tentar enterrar junto com ele a idéia do socialismo. Os antigos partidos reformistas e stalinistas se converteram abertamente à administração do capitalismo e passaram a disputar espaços de poder no interior do Estado burguês para sustentar seus interesses enquanto burocracias. É nesse contexto e com o retrospecto dessa história que os revolucionários devem discutir hoje a sua participação nos processos eleitorais.

2. O reformismo no Brasil: o caso Lula

O que separa revolucionários e reformistas não são as reformas, mas a revolução. Os revolucionários não negam as reformas, mas os reformistas negam a revolução. Os revolucionários entendem que a luta pelas reformas é uma maneira de fazer avançar a luta pela revolução. Através da luta pelas reformas, a classe trabalhadora pode ser levada a se tornar consciente da necessidade de realizar a revolução. Os revolucionários lutam por cada reforma mínima, cada direito democrático, inclusive o direito ao voto, não por causa dessas reformas em si, mas porque a luta ensina os trabalhadores a se constituir como força social e como alternativa social. A constituição de um movimento político da classe enraizado na base, dotado de um programa de luta e independente das instituições do Estado, é a única possibilidade de se conquistar avanços. Toda vez que se deposita alguma confiança nas instituições burguesas (parlamento, justiça, etc.), isso é usado pela burguesia para esvaziar as lutas, sustar a ação direta da classe e retirar o potencial de ruptura revolucionária do movimento. Ao mesmo tempo em que usa a sedução das instituições democráticas para desarmar o movimento dos trabalhadores, a burguesia não respeita sua própria democracia e apela para medidas anti-democráticas a cada momento em que a luta dos trabalhadores ameaça romper os estreitos limites da institucionalidade. Surgem então os golpes de Estado, as guerras civis, as invasões imperialistas sob o pretexto de “guerra ao terror”, ou outro qualquer, etc., tudo para impedir que a luta dos trabalhadores transborde da simples luta por espaços no interior do Estado para uma luta contra o próprio Estado e a dominação de classe.

A lição fundamental portanto é de que a luta dos revolucionários não deve se dar no plano da democracia burguesa, mas contra ela, no plano da luta social organizada da classe para se constituir como alternativa de poder. Se acreditássemos que as eleições têm realmente o poder de mudar a realidade, teríamos que fazer campanha com a máxima intensidade e batalhar para eleger o máximo de candidatos. Em determinadas situações históricas os revolucionários podem ou até mesmo devem lançar candidatos para cargos no parlamento ou no executivo, desde que isso seja concebido como um instrumento auxiliar para o esforço fundamental que é a organização da classe trabalhadora através das lutas sociais. O que muda a realidade são as lutas e não as eleições (“só a luta muda a vida”, dizia o slogan do PSTU de anos atrás). Quando ameaçada, a burguesia desconhece o resultado das eleições, conforme já afirmamos acima, e derruba governantes eleitos, instala ditaduras, usa o exército e a polícia contra os trabalhadores, apela para bandos fascistas, etc. A única defesa contra a burguesia está na organização da classe trabalhadora, por fora e contra o aparato do Estado (daí a importância da independência dos sindicatos e centrais, conforme discutimos na tese para o Conclat).

Conforme o caso, pois, os revolucionários podem e devem chamar voto em alguma candidatura, mas desde que se tenha clara a função desse chamado como via auxiliar para o processo fundamental que é a organização das lutas. Já houve situações históricas no Brasil, como na campanha de Lula em 1989, em que o processo eleitoral expressava, ainda que de maneira distorcida, o acúmulo de lutas que vinha se desenvolvendo ao longo de toda a década. Naquele caso era correto se engajar numa campanha eleitoral, mantidas as ressalvas quanto à independência de classe, que consistiria na ausência de acordos e contribuições da burguesia; quanto ao programa socialista, o método de discussões pela base, etc. A política a ser tirada para esta ou aquela eleição tem a ver com as circunstâncias históricas em que estamos vivendo, com a correlação de forças, o grau de consciência e organização da classe, o impacto que determinada eleição tem na consciência. Trata-se portanto de uma questão concreta, de análise da realidade dada e dos seus componentes.

O caso Lula é um caso clássico de partido reformista, o PT, que emergiu das lutas contra a ditadura e das greves para se transformar em instrumento de administração do capitalismo. A transformação do PT (e por extensão da CUT, MST, UNE, etc.) em instrumento da administração do capitalismo é uma expressão política da derrota social da classe trabalhadora, do retrocesso de suas lutas, do esvaziamento de suas greves, da burocratização dos sindicatos e outras entidades, da mudança ideológica global (queda do muro, “fim da história”, mundialização do capital), da ofensiva neoliberal (privatizações, contra-reformas, desregulamentação, etc.), do predomínio ideológico da burguesia em todos os demais planos da cultura, do avanço da reestruturação produtiva e das modernas técnicas de administração (toyotismo) nos locais de trabalho, do avanço do individualismo e retrocesso na solidariedade de classe em cada local de trabalho, etc. Esses fatores objetivos devem ser levados em conta para explicar os processos político-ideológicos. A derrota dos revolucionários no interior do PT não é apenas um caso de traição dos dirigentes burocratizados, mas de derrota no plano da luta social e da organização da classe.

3. O rouba mas faz dos pobres

O que temos de levar em consideração na nossa análise da realidade é o impacto que essa trajetória de Lula tem sobre a consciência da classe. Do ponto de vista dos revolucionários, Lula era um dirigente de um partido e de um movimento combativo, mas de perfil político reformista e metodologia burocrática, que foi cooptado definitivamente para um programa social-liberal. Do ponto de vista dos trabalhadores, entretanto, Lula é o melhor presidente que o Brasil já teve. O governo Lula conta com uma aprovação em torno de 80% segundo as pesquisas de opinião. A sua política é apoiada desde a alta burguesia e o imperialismo até as favelas. Do ponto de vista da burguesia, Lula é aprovado porque o seu projeto se mostrou mais adequado à continuidade dos negócios, servindo inclusive como exemplo mundial. O que cabe então discutir é porque os trabalhadores apóiam Lula.

A explicação de que o governo cooptou os trabalhadores mais pobres por meio do bolsa-esmola é verdadeira, mas é insuficiente. O trabalhador cooptado pelo bolsa-esmola não faz uma leitura política do que significa a sua cooptação, ele nem sabe que foi cooptado, porque não sabe que poderia fazer outra coisa. A sua leitura é objetiva, ou objetivista, material e imediata: o bolsa-esmola melhora sua vida. O governo Lula melhorou a vida de milhões de famílias trabalhadoras. Isso é um fato material que ninguém pode contestar, nem a burguesia nem os revolucionários. Negar-se a enxergar esse fato é negar-se a encarar a realidade, é tapar o sol com a peneira, fugir do mundo cruel porque ele não nos agrada e refugiar-se no mero discurso, e essa atitude é um erro que os revolucionários não podem cometer jamais.

A discussão deve se dar a partir do reconhecimento do fato material de que o governo Lula melhorou sim a vida de milhões de trabalhadores. Feito esse reconhecimento, discute-se então o que esse fato significa, o seu entorno, seu contexto, sua história, seus condicionantes e limites, as tendências que o configuram. Todo fato é produto de um conjunto de tendências contraditórias que levam à sua manifestação e levarão ao seu final. A melhoria material na vida dos trabalhadores existe, mas é limitada, tanto no tempo como no seu alcance. É um resultado de uma conjuntura econômica peculiar, de uma certa inserção do Brasil no mercado mundial, de uma certa especialização na divisão internacional do trabalho, em que o país se beneficiou de uma alta no preço das commodities e manufaturas de baixo valor. Tudo isso deu a Lula a margem de manobra para fazer concessões aos mais pobres. O seu bolsa-esmola é a versão brasileira do mesmo “populismo de commodities” que Chávez faz na Venezuela com o petróleo ou Evo Morales faz na Bolívia com o gás. Também há uma margem de crescimento do mercado interno que está sendo explorada, ou mais do que isso, tensionada até os seus limites, através do crédito. Há uma explosão do endividamento dos trabalhadores (os bancários que o digam, pois reproduzem esse processo cotidianamente no seu trabalho) que mantém aquecido o mercado interno em aparente descolamento da economia mundial.

A bolsa-esmola e o crescimento do mercado interno via crédito postos em prática por Lula são um achado político, pois permite manter e administrar a miséria com um mínimo de atrito. Esse atrito, quando acontece, diz respeito a setores minoritários da classe que entraram em luta com o governo Lula, mas não conseguiram provocar uma polarização contra o governo (aqui entra em cena o papel da burocracia ao desviar essas lutas e também a incapacidade da oposição de organizá-las). É isso que faz toda a diferença em favor de Lula num cenário mundial marcado pela crise e pela emergência de alternativas mais problemáticas do ponto de vista da burguesia, como o próprio chavismo. Por isso a burguesia nacional e o imperialismo apoiaram Lula e devem apoiar Dilma. Aliás, esse é um ponto sobre o qual precisamos ter uma caracterização precisa: Dilma deve ganhar a eleição, pois representa a continuidade do projeto lulista apoiado pela burguesia. Claro que a burguesia não discute o fato de que essa via lulista de enfrentamento da crise usa como remédio o mesmo veneno que foi a causa da crise nos Estados Unidos, o endividamento dos trabalhadores, das empresas e do governo. A burguesia não se preocupa com a viabilidade de qualquer política a longo prazo, seja porque, como disse lorde Keynes, “a longo prazo estaremos todos mortos”, seja porque sabe que em qualquer crise sempre poderá contar com o Estado para salvá-la.

A questão central é a forma como esses fatos são percebidos pela classe trabalhadora. Os revolucionários sabem que a política de Lula é limitada, mas os trabalhadores não sabem. A maioria da classe vai comparecer nas urnas para votar, e a maioria vai votar em Dilma, porque apóia Lula (afinal ele melhorou a sua vida), porque quer evitar a volta do PSDB, porque acha que o seu dever de cidadão é escolher o melhor (ou o menos pior) e porque não vê outra alternativa de participação política além do voto. No seu horizonte e no seu parâmetro de avaliação, os trabalhadores tem razão em dizer que o governo Lula é o melhor governante que já houve. No seu horizonte não há termo de comparação, nem passado nem futuro. Não há nada além do capitalismo, desse capitalismo, em que o Brasil se transforma em exportador de commodities, mas o trabalhador começa a ter acesso a bens de consumo. Não há outra alternativa de modo de vida, outra alternativa social, ou em outras palavras, não há alternativa socialista. O trabalhador compara Lula com o que ele conhece, que foi a era FHC, pois não pode compará-lo com o que não conhece, que é o socialismo.

A questão da ausência de uma alternativa socialista se expressa também no outro extremo da classe, o seu setor mais organizado. Não são apenas os trabalhadores mais pobres que apóiam Lula e provavelmente vão votar em Dilma, mas na outra ponta também os servidores públicos, metalúrgicos, bancários, professores, etc., ou seja, o setor mais avançado da classe. Para este setor, a escolha política que está colocada é a que opõe Dilma e Serra. Este trabalhador enxerga Serra como o próprio anti-cristo. Logo, por pior que seja o PT, Dilma é um mal menor. Serra é a privatização, Dilma é o estatismo. É nestes termos que o setor mais organizado da classe enxerga as alternativas. Por mais que este setor tenha sido atacado por Lula (vide o caso dos bancários), continue sendo neste momento (vide o judiciário) e continuará sendo sob o governo Dilma, estes trabalhadores não enxergam alternativa além do PT. Ou seja, aqui se manifesta de maneira bastante dramática a crise da alternativa socialista, na forma de uma ausência de projeto e na rendição ao projeto da burocracia.

No interior do setor mais organizado da classe existe uma vanguarda que sindicalmente acompanha os partidos socialistas e as oposições de esquerda contra a burocracia. Mas mesmo esse setor vai votar em Dilma, em nome do voto útil, pois prefere optar por um “mal menor” ao perigo da “volta da direita”. Podem até simpatizar com os partidos socialistas, mas não sentem firmeza neles, ou podem também já ter constatado os seus vícios na condução do movimento, e preferem ficar mesmo com o PT, optando pelo certo em lugar do duvidoso. Assim, não só os trabalhadores desorganizados e os mais organizados, mas também os decepcionados com a esquerda vão votar em Dilma.

Existe até mesmo o reconhecimento de que o governo Lula teve problemas, no plano da “ética na política” (sic). Há o reconhecimento de que houve corrupção no governo Lula, da parte de seus componentes orgânicos e base de apoio. Mas em todo governo há corrupção. Isso não incomoda os apoiadores de Lula, pois apesar de haver roubo, está havendo melhorias para os pobres. Pelo menos, é “um dos nossos” que está roubando e não um deles, como sempre foi. Há um setor que encontra consolo nessa espécie de vingança rebaixada contra a direita. Se eles roubam sempre, agora nós roubamos também, já que não se pode fazer outra coisa além de roubar. O Lula também rouba, mas pelo menos faz alguma coisa pelos pobres. É o rouba mas faz dos pobres, como se a única diferença possível entre partidos políticos, que por natureza são todos corruptos, fosse entre os que tem mais e menos “cara de povo”. Os trabalhadores de todas as camadas e segmentos da classe, os intelectuais de esquerda acadêmicos, a pequena-burguesia progressista, etc. todos absolvem Lula, porque ele “é bom para os pobres”. É a isso que se resumiu a política, o varejo das miudezas e misérias da gestão do Estado. Desaparece assim o referencial de classe, de projeto social, de alternativa entre capitalismo e socialismo. É a desclassicização da política.

4. O dilema da política como alternativa de classe

O efeito mais daninho da trajetória de Lula sobre a consciência da classe é precisamente a legitimação dessa redução da política ao varejo dos índices econômicos conjunturais e mais ou menos “ética” na gestão do Estado. E dentro dessa política rebaixada, talvez o pior crime de todos esteja precisamente em validar a percepção popular vaga e generalizada de que a política é um meio de “se dar bem” e não há nada de errado nisso. Ao absolver Lula da corrupção porque ele “ajuda os pobres”, o trabalhador está admitindo implicitamente que todo político, qualquer político, seja ele “de esquerda” ou de direita, no fundo também só quer se aproveitar do aparato. Durante todo o período de ascenso das lutas e de construção do PT, consolidou-se a percepção de Lula como algum tipo de alternativa, por mais vaga e genérica que fosse essa alternativa na consciência da classe. Agora, o esvaziamento dessa alternativa se revela em toda a sua crueza nos escândalos de corrupção e aparelhamento do Estado pelo PT. Consolida-se assim a visão de que os partidos (e por extensão os sindicatos ou qualquer outra entidade da classe) servem apenas para alçar os dirigentes ao comando do Estado para que possam se locupletar. Quem “se mete com sindicato” e essas coisas quer ficar conhecido para se eleger para algum cargo, e uma vez lá, colocar seus parentes, seus partidários, os parentes destes, e toda a corriola de oportunistas, apaniguados e aproveitadores que gravita em torno das figuras de destaque.

A desqualificação da política pelo PT é a base histórica e ideológica para a rejeição aos partidos no movimento. O trabalhador vê com desconfiança qualquer um que se apresenta pedindo seu voto, porque sabe que na verdade essa figura está de olho no seu bolso. A percepção popular da política como “roubalheira” é outro dado da realidade com o qual é preciso lidar. O ódio popular pelos políticos e o desprezo pelas instituições, incluindo aí Congresso e Judiciário, são produto de um desgaste da democracia burguesa que se mede aproximativamente na quantidade de abstenções, votos brancos e nulos, mas fica também oculto numa quantidade incerta de votos “de nariz tapado” de eleitores que votam por obrigação, sem entusiasmo algum. Não se trata de um setor majoritário da classe, ainda, mas representa já um número importante. A gravidade desse processo está no fato de que essa rejeição da política não caminha na direção de construir uma anti-política, ou seja, uma negação da política por meio da sua superação revolucionária. É uma negação que se recusa a disputar politicamente com a burguesia, o que acaba por ajudar a perpetuar o próprio domínio da burguesia. Coloca-se então o problema de como fazer política revolucionária lidando com a existência desse sentimento de rejeição da política por parte de um setor da classe.

Conforme a exposição histórica e conceitual que fizemos no início, os partidos e organizações revolucionárias tem como tarefa diante das eleições denunciar a democracia burguesa e apresentar a alternativa socialista. Essa tarefa diante das eleições é parte das sua tarefa política fundamental de organizar a classe a partir de suas lutas. Entretanto, as lutas que ocorreram durante o governo Lula foram minoritárias, isoladas, desviadas e derrotadas. É nestas condições que nós enquanto parte do conjunto das organizações operárias entramos no processo eleitoral: derrotados. Se a política eleitoral já é tradicionalmente um jogo em que a burguesia detém o mando de campo, a torcida e o juiz, na atual conjuntura o seu controle é ainda mais absoluto. Em alguns casos, é melhor perder por WO do que perder por goleada. Permanecer em campo como se houvesse condições justas de disputa equivaleria a legitimar um jogo ilegítimo.

As eleições não mudam a realidade, elas dão a medida de uma certa correlação de forças sociais que já está dada na sociedade. A votação dos partidos dá a medida da penetração do seu projeto na consciência social. A dificuldade do PSDB em enfrentar o PT está no fato de que o PT roubou o projeto que era do próprio PSDB e o colocou em prática com mais eficiência. Assim, o PSDB não tem o que oferecer como alternativa. O seu discurso de ética e eficiência não convence e não seduz. Como disse um autorizado representante da burguesia, “em 2002 Serra representava a continuidade quando o povo queria mudança, e em 2010 Serra representa a mudança quando o povo quer continuidade”. O desejo de continuidade significa que a maioria do eleitorado foi ganha pelo PT, pelo seu projeto de administração do capitalismo.

Neste momento, a esquerda revolucionária se vê reduzida às suas reais dimensões, à sua condição extremamente minoritária perante a classe e a sociedade. A burguesia está nadando de braçada nas eleições. Além das candidaturas de Dilma e Serra, a burguesia pôde produzir até mesmo uma terceira e igualmente falsa alternativa, a de Marina Silva. Assim, o circo eleitoral está completo, e pode até mesmo dispensar a presença da esquerda como coadjuvante. Nem mesmo o papel anedótico de partidos nanicos trará alguma repercussão, já que o “script” está definido, como num programa do “Big Brother”, com apenas Dilma, Serra e Marina no paredão.

A inexpressividade eleitoral do PSOL, PSTU e PCB (não discutiremos o PCO, pois é uma burocracia auxiliar da Articulação com perfil de gangsterismo sindical) é um reflexo da inexpressividade das lutas da classe em face do projeto da burguesia. A classe trabalhadora brasileira não se mobilizou além de pequenas lutas defensivas atomizadas e não construiu um projeto de enfrentamento da crise e da política da burguesia. A proposta que defendemos de constituição de um movimento político dos trabalhadores que pautasse uma alternativa socialista diante do desafio da crise econômica e da política burguesa é uma proposta que acabou derrotada. O movimento não se constituiu e a classe ficou desprovida de uma referência político-programática e organizativa mínima. Depois do lançamento das candidaturas em separado pelos partidos operários, tivemos o complemento da sua postura irresponsável no CONCLAT e a falência da unificação no plano sindical.

5. O voto pela luta como saída

A dificuldade de definir uma tática socialista revolucionária para as eleições reside no fato de que as eleições apresentam um retrato instantâneo da correlação de forças ideológica na sociedade. Como essa correlação é extremamente desfavorável aos revolucionários, a sua posição diante das eleições é muito problemática. O voto traduz de maneira aproximativa o alcance ideológico de determinada proposta política na base da sociedade. O fato de que a burguesia tenha o controle total das eleições, apresentando as duas candidaturas principais e até mesmo uma falsa candidatura alternativa, é uma expressão do fato de que a burguesia detém o controle da disputa política na base da vida social. No enfrentamento diário da luta de classes, os trabalhadores acumulam derrotas sobre derrotas e o alcance da política revolucionária é muito limitado, para não dizer inexpressivo.

Como dissemos acima, a luta dos revolucionários não deve se dar no plano da democracia burguesa, mas contra ela, no plano da luta social organizada da classe para se constituir como alternativa de poder. E dissemos que conforme o caso, os revolucionários podem e devem chamar voto em alguma candidatura, mas desde que se tenha clara a função desse chamado como via auxiliar para o processo fundamental que é a organização das lutas. Essa distinção entre disputa eleitoral e disputa política é fundamental. A disputa eleitoral serve para dar a aparência de que o Estado burguês permite alguma margem de escolha real aos trabalhadores. Participar da disputa eleitoral sem questioná-la já contém um erro gravíssimo, que consiste em legitimar esse faz-de-conta da democracia burguesa, como se fosse a ocasião adequada para discutir política.

Se os partidos socialistas não apresentam uma alternativa política classista e socialista aos trabalhadores no dia a dia, não será nas eleições, em clipes de 30 segundos na TV, que vão conseguir fazê-lo. O máximo que vão conseguir é criar a ilusão de que o sistema é justo, pois permite que todos se manifestem. Ao invés de romper o cerco ideológico da burguesia, contribuem para reforçar esse cerco sendo coniventes com a ilusão de que o voto pode mudar as coisas. Como não realizam um trabalho ideológico permanente, os partidos socialistas querem encobrir esse erro com outro erro, que consiste em achar que as eleições vão lhe dar a oportunidade de fazer o que não fazem no restante do tempo, ou seja, falar às massas. O fato de que as correntes socialistas tenham passado as duas últimas décadas sem combater adequadamente a crise de alternativa socialista (porque em geral não admitem que existe crise de alternativa e sim “crise de direção”, que se resolve “construindo o partido”, ou seja, o seu partido) não passa impune no teste da realidade. A sua punição é o fato de não conseguirem ultrapassar porcentagens infinitesimais nas eleições.

O problema é que essa “punição” aos partidos socialistas não repercute apenas sobre eles, mas prejudica o conjunto da classe. A incapacidade de PSOL, PSTU e PCB de constituir uma frente classista e socialista nas eleições e de constituir a unidade no plano sindical merece uma severa crítica. O aparatismo, o cupulismo e a ausência de programa puseram a perder o processo de reorganização que poderia apontar para a construção de uma referência de luta para os trabalhadores, algo extremamente necessário num período em que a ameaça de retorno da crise paira sobre nossas cabeças.

Os partidos socialistas não estão à altura de sua tarefa. O processo de reorganização sindical que poderia ser o embrião de um movimento político dos trabalhadores foi abortado no CONCLAT por opções políticas que privilegiam as conveniências burocráticas de cada corrente. A expressão eleitoral desse movimento deveria ser a de combater a falsa polarização da democracia burguesa e construir candidaturas e um programa socialista a partir das lutas e da base. Essas candidaturas teriam que se apresentar como uma alternativa política classista e socialista. A ação política da classe trabalhadora deve ter o caráter de uma anti-política, ou seja, de uma negação dos espaços de poder do Estado burguês. Uma candidatura socialista nas eleições deveria se apresentar como uma anti-candidatura, ou seja, uma candidatura que não tem como prioridade chamar votos e se eleger, mas defender uma proposta de programa e defender o método da luta como veículo para as mudanças.

Uma candidatura socialista que entra na disputa para chamar votos está implicitamente legitimando essa disputa como se ela fosse justa, ou seja, está capitulando à democracia burguesa. No atual momento histórico, esse seria um erro ainda mais grave, por conta da existência de Lula e do PT. A história do PT funciona como um exemplo negativo de como um partido de oposição se transforma em um partido da ordem. A trajetória de Lula serve para fixar na consciência dos trabalhadores uma narrativa de como um dirigente combativo se acomoda ao aparato do Estado burguês. Essa narrativa tem o efeito pedagógico devastador de dizer que a política serve a fins pessoais de enriquecimento ilícito e o máximo que pode haver como diferença entre os partidos está em quanto se parece mais ou menos com os pobres. Essa narrativa acaba servindo como modelo em que se encaixa qualquer partido ou figura política, que passa a ser visto como alguém que só está interessado em cargos.

Por isso, o papel dos partidos socialistas que querem se apresentar como alternativa a esse sistema deveria ser o de se negar a se encaixar nessa narrativa e defender o voto nulo programático. A campanha pelo voto nulo diria aos trabalhadores que a única forma de impedir os ataques da burguesia não é o “vote em mim”, mas é irmos à luta. A defesa dos trabalhadores contra as privatizações não é votar em Dilma contra Serra, mas constituir comitês de defesa do patrimônio público, e assim por diante. Uma campanha pelo voto nulo seria cassada pela justiça eleitoral, o que daria mais um argumento para se fazer a denúncia de um sistema que é anti-democrático em sua natureza e impede a livre manifestação.

Há uma rejeição latente da política eleitoral, das instituições, dos partidos, dos corruptos, que não se manifesta porque não encontra um canal alternativo. Essa rejeição deveria ser canalizada e organizada por uma vasta campanha em defesa do voto nulo programático. Os setores que se decepcionam com a política eleitoral se afastam também da política revolucionária, já que esta insiste em ser parte da política eleitoral. A extrema-direita também faz campanha pelo voto nulo, e se beneficia do voto nulo despolitizado ou da abstenção. A esquerda socialista deveria politizar esse processo de descolamento da política burguesa.

A burguesia diz que a única alternativa de participação é o voto. A burocracia ganhou o voto dos trabalhadores, mas não realizou transformação nenhuma. Os partidos socialistas devem aproveitar esse exemplo histórico para dizer que a única alternativa de transformação é a luta. Essa alternativa contempla tanto os que estariam dispostos a votar nestes partidos quanto os que estavam dispostos a votar nulo.

Evidentemente, PSOL, PSTU e PCB não vão defender o voto nulo. Não estão preocupados com a necessidade de realizar uma política radical, que rompa com o Estado. Sua política permanece aprisionada nesses limites. Sua concepção de partido, de sindicato, de movimento, é toda ela estatal, institucional, dependente do sistema existente, adaptada e conformada a esses limites. Não contemplam a possibilidade de uma política classista autônoma em relação ao Estado e realizada por organismos de luta da classe. Diante desse comportamento, não há qualquer condição de se defender o voto em algum desses partidos.

Em 2008 estabelecemos alguns critérios para apoiar candidatos dos partidos operários nas eleições municipais, retirados do nosso Perfil Programático: que não houvesse financiamento da burguesia, que estivesse em pauta um programa socialista e que as candidaturas fossem construídas a partir da base. Nenhum desses critérios foi cumprido por PSOL, PSTU e PCB, mas mesmo assim a organização saiu com uma política de chamar voto nos candidatos desses partidos. No balanço que apresentei dessas eleições fiz uma crítica bastante dura no sentido de que estava se configurando uma relação bastante problemática com o programa. A meu ver o programa estava sendo reduzido a um belo texto, uma carta de intenções, que não se tem a menor intenção de fazer valer, pois optou-se por chamar voto nos candidatos daqueles partidos mesmo que não tivessem cumprido os critérios que defendíamos. Se o que dizemos no programa nunca vai acontecer e só serve como álibi para dizer que defendemos um programa, é melhor não ter programa.

Em 2010, avizinha-se a possibilidade de algo bastante semelhante acontecer. Depois de passarmos um ano inteiro defendendo nos jornais e nas intervenções a constituição de um movimento político dos trabalhadores que se expressasse no plano eleitoral em uma frente de esquerda classista e socialista e no plano sindical na constituição de uma Nova Central, temos que isso não aconteceu na realidade. Então, para completa desmoralização, vamos fazer de conta que a nossa proposta não existiu e mesmo assim chamar o voto em partidos que puseram seus interesses burocráticos acima da classe.

O mínimo que podemos fazer é respeitar nossa própria política, nosso discurso e nosso programa e defender uma indicação genérica de voto pela luta. Devemos fazer uma intervenção de propaganda tendo como eixo a política classista. O trabalhador não vota nas urnas, mas na luta. Só a luta muda a vida. A classe precisa se constituir como sujeito histórico, como portador de força social organizada para obter as mudanças pela luta. O que se faz na urna tem pouca importância em relação ao que se faz nos enfrentamentos do dia a dia. Minha intenção na urna é votar nulo. Uma vez que PSOL, PSTU e PCB também agrupam lutadores em suas fileiras, um voto nesses partidos também é um voto pela luta, e de certa forma também é um voto nulo, pois nega as candidaturas majoritárias.

O voto pela luta é um voto de negação da ordem estabelecida, do capitalismo, do Estado burguês e sua falsa democracia. Aquilo que o voto nulo deveria afirmar para completar essa negação está ausente, ou seja, a alternativa socialista. O movimento político dos trabalhadores não se constituiu. Nem sequer uma frente de esquerda se constituiu. Não se pode fingir que ele existe e chamar o voto em partidos que faltaram com a tarefa de construir esse movimento. Não se pode mascarar a realidade. Se a alternativa classista e socialista não está presente, o que de pode fazer é apontar o único caminho pelo qual ela pode se constituir, ou seja, pela luta.

Daniel Menezes Delfino
02/07/2010

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