28.12.11

O legado da ditadura e a novela amor e revolução


Na segunda metade do século XX, a América do Sul foi vitimada por uma série de ditaduras militares, que foram substituídas por democracias formais nas últimas décadas. No processo de restabelecimento da democracia formal, vários países levaram os militares e agentes da repressão ao banco dos réus pelos crimes cometidos durantes a ditadura. A Argentina já condenou 486 criminosos que mataram, torturaram, prenderam, cassaram e exilaram militantes de esquerda (Folha/UOL, 27/03/2011). O Brasil é um dos poucos países em que os criminosos não foram julgados. Muitos deles, passadas mais de duas décadas do fim da ditadura, envergam os pijamas da aposentadoria com a tranquilidade da impunidade, e de vez em quando até saem das catacumbas para defender publicamente o golpe de 1964.

A transição para a democracia formal foi feita por meio de acordos de cúpula, em que um grupo político burguês substituiu outro ligado aos militares na condução do Estado, sem romper com a política burguesa em geral e em particular sem romper com o arcabouço repressivo (anistia para os crimes da repressão, manutenção da lei de segurança nacional, cultura policial repressiva, etc.). O forte processo de lutas sindicais e populares da década de 1980, com a fundação do PT e da CUT, as tentativas de greve geral, a campanha das "Diretas Já", o ascenso dos movimentos sociais em geral, movimentos de sem terra, de moradia, de estudantes, de mulheres, negros e LGBTs, etc., tudo isso não foi suficiente para derrotar de fato a direita militar e civil.

A direção política do processo de luta, a Articulação (corrente dirigente do PT e da CUT), burocrática e oportunista desde o início, gradativamente fez com que o movimento abandonasse quaisquer veleidades de transição ao socialismo, mesmo reformistas, conforme o PT aderia abertamente à gestão do capital. No plano interno isso se consolida com a derrota da campanha de Lula em 1989, que teve participação decisiva da Rede Globo, emissora de TV construída pela ditadura para servir como seu instrumento ideológico. No plano mundial, a queda do muro de Berlim e da URSS abriu caminho para o discurso da "derrota do socialismo" e para a ofensiva política e ideológica do neoliberalismo e da "globalização".

Esses processos deixaram o movimento socialista revolucionário numa situação de isolamento e o conjunto da classe trabalhadora na defensiva, pois mesmo que os estados burocráticos do leste europeu não fossem o "modelo" de socialismo, a sua desaparição fez com que desaparecesse junto a própria idéia de uma alternativa ao capitalismo, configurando aquilo que denominamos como crise da alternativa socialista. As lutas da classe trabalhadora deixaram de estar armadas de uma perspectiva de superação do capitalismo, limitando-se a questionar aspectos parciais do sistema e com isso condenando-se à impotência.

Nesse contexto de crise da alternativa socialista, o PT assumiu o governo com o ex-dirigente sindical Lula e a ex-guerrilheira Dilma, e ambos deixaram intocada a impunidade dos criminosos da ditadura, para não incomodar setores burgueses de extrema direita e comprometer a política de conciliação de classe de seus governos. Lula foi preso político por ter sido grevista e Dilma foi além disso torturada por ter participado da luta armada. Ambos jogaram na lata do lixo a memória daqueles que lutaram contra a ditadura ao manter inalterada a política neoliberal da burguesia. No governo da ex-guerrilheira Dilma, o militante italiano Cesare Battisti segue ilegalmente preso e ameaçado de extradição para a Itália.

É nesse cenário que surge a novela "Amor e Revolução" no SBT, contando a história dos primeiros anos da ditadura e dos militantes que a enfrentaram. A novela tem sido tema de debate entre setores populares, pois o assunto é praticamente desconhecido das novas gerações, que ignoram a história do país, e das antigas gerações, deixadas ideologicamente órfãs pelo PT, que nunca fez uma disputa ideológica a fundo com a classe trabalhadora para combater as idéias burguesas.

A exibição da novela não significa que o SBT tenha se tornado um bastião de progressismo social. Na verdade, emissoras como SBT e Record, que tem tentado com algum sucesso desfazer o antigo monopólio da Globo, são tão reacionárias quanto a sua rival. Todas as emissoras difundem ideologias conservadoras, nas formas de fanatismo religioso, sensacionalismo, pornografia e regressão cultural. Na disputa pela audiência, vale tudo, até mesmo resgatar um tema polêmico da história do país, a tortura contra militantes que se opuseram a ditadura. No contexto da ideologia pós-moderna, a história real é só mais um drama televisivo sem conseqüências políticas e existenciais, e a dramaturgia televisiva com suas fórmulas prontas e clichês (o mito do final feliz, do amor romântico, do indivíduo como centro do mundo, etc.) substitui a vida real e a possibilidade de conflitos políticos e existenciais reais.

Mesmo com sua fragilidade estética gritante, roteiro pífio e interpretações canhestras, a novela provocou uma forte reação da extrema direita, que pediu a censura dos depoimentos de vítimas de tortura. Posando de democrático, o SBT atendeu a manifestação de espectadores que se posicionaram na internet em favor dos depoimentos e os manteve no ar.

Evidentemente, como se trata de uma telenovela, a qualquer momento podem surgir reviravoltas na trama. Não se pode esperar que uma emissora comercial possa fazer justiça à luta dos militantes que combateram a ditadura, nem muito menos apresentar uma visão correta do projeto de sociedade que defendiam, dos prós e contras da estratégia de luta armada, etc. Podem também surgir, por exemplo, tentativas de "humanizar" o outro lado, os agentes da repressão, na intenção de mostrar-se equidistante e imparcial, de acordo com o típico senso comum pequeno-burguês: "todos podem ter sua opinião", "o que é errado é o extremismo", "tanto de esquerda como de direita". Pode ser essa a conclusão da história, ou a emissora pode manter o tratamento favorável aos militantes. Seja qual for a opção para o desfecho, o mais provável é que a novela permaneça no nível da caricatura.

Aconteça o que acontecer na tela, prevalece o fato de que, na vida real, a herança da ditadura permanece bastante viva. Os criminosos daquele período permanecem impunes, a repressão aos trabalhadores que lutam permanece brutal, a alienação e a despolitização geral permanecem dominando, a politica da burguesia segue sendo aplicada, a ditadura de classe permanece sendo exercida por meio dos mecanismos da democracia burguesa. Por isso, a luta dos revolucionários pelo socialismo ainda terá vários capítulos na vida real.

Daniel Menezes Delfino
07/05/2011

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