28.12.11

Oscar 2010: Por que "Guerra ao Terror" e não "Avatar"?




A lógica do espetáculo e o Oscar


No clássico “Sociedade do Espetáculo”, de 1967, Guy Debord identifica um salto de qualidade nos mecanismos de mistificação ideológica, por meio do qual se criou uma esfera que concentra em si toda a representação do mundo, substitui a representação real, impede a manifestação do real e impõe o domínio da falsificação. É a essa esfera que Debord denomina espetáculo. A característica central do mundo do espetáculo é a falsificação. O inautêntico se impõe como verdade e bloqueia a aparição do autêntico.


Todas as relações sociais trazem a marca da encenação, do inautêntico, do falsificado. O fetichismo da mercadoria se concretiza como império da imagem, da narrativa e da encenação. Tudo é performance e nada é ação. Não se trata de uma simples explosão quantitativa do volume de produção e influência da indústria cultural e dos meios de comunicação, mas da conformação de toda uma estrutura que permeia de alto a baixo as relações sociais, da cultura até a política.


Periodicamente, o Espetáculo precisa produzir uma pseudo-negação do sistema, pois do contrário as pessoas podem chegar a alguma forma verdadeira de negação. A pseudo-negação do sistema está em certas obras de arte, vendidas como produtos da indústria cultural, que apresentam elementos de crítica da realidade. Tais obras mobilizam as emoções e a inteligência dos espectadores contra aspectos parciais do sistema, mas não lhes dão os instrumentos para uma negação do sistema na sua totalidade. Assim, o potencial crítico se esteriliza na falta de ações práticas e o público espectador retorna à passividade pretendida.


Esse seria o caso de um filme como “Avatar”, que apresenta uma crítica da destruição da natureza e das invasões imperialistas, mas uma crítica parcial, que não atinge o núcleo do sistema, a lógica do capital. Mas o filme de James Cameron é um caso à parte, pois as proporções extraordinárias do seu sucesso (nada menos do que o recorde mundial de bilheteria), forçaram a indústria cultural a providenciar um antídoto contra os seus efeitos “negativos”, recusando-lhe a consagração final dos prêmios Oscar, concedidos ao rival “Guerra ao Terror”.


Essa escolha foi interpretada como uma vitória do “favorito da crítica” contra o “favorito do público”, ou ainda, de um “filme de arte” contra um “filme de efeitos especiais”, um filme “independente” e “artesanal” contra um “filme dos grandes estúdios” e sua multibilionária máquina publicitária. Mas como se trata de espetáculo, as aparências podem ser enganosas...


O paradoxo da técnica em “Avatar”


“Avatar” é indubitavelmente um salto adiante na capacidade do cinema de funcionar como uma armadilha sensorial que suspende o espectador da sua relação com o mundo real e o arremessa no universo da fantasia. A sala escura, a tela gigante, a luz em que brilham os astros e estrelas, o volume ensurdecedor do som, a trilha sonora cuidadosamente arquitetada para conduzir as emoções, o ritmo da edição, a profusão dos efeitos especiais, ganharam nas últimas décadas a companhia das imagens em CGI e no caso em questão, da profundidade em três dimensões.


A extrapolação da corrida tecnológica para o cinema corresponde proporcionalmente à vigência dessa mesma corrida tecnológica na vida social em geral. Não é apenas o cinema que se tornou irreal, mas a vida real que se tornou cinematográfica, espetacular, fantástica, ilusória e instável, no contexto histórico do capitalismo plenamente mundializado, o que vale dizer, plenamente atravessado pela aceleração explosiva das suas contradições constituintes. Nesse sentido, o cinema mais espetacular e irreal pode ser também o produto ideológico mais típico e ilustrativo de determinados fenômenos sociais muito reais. Isso atualiza o valor crítico do cinema e da crítica de cinema, ainda que o cinema em questão venha à tela completamente despido de intenções críticas; e demonstra também a impossibilidade de se fazer crítica de cinema e de arte com alguma seriedade e coerência sem uma perspectiva crítica do conjunto da vida social.


“Avatar” representa a chegada ao patamar histórico em que qualquer coisa que pode ser imaginada pode também ser filmada de modo tecnicamente convincente, o que coloca em pauta uma outra questão: o hiper-realismo proporcionado pela técnica cinematográfica acrescenta credibilidade à fantasia ou destrói a sua fecundidade, já que não deixa nada ao espectador para ser livremente imaginado? Ou dito de outra forma, porque o cinema fantástico hiper-realista deve ser considerado um avanço em relação ao teatro de bonecos, se este pode ser tão eficiente quanto aquele na sua tarefa fundamental, que é contar uma história?


O culto da novidade e da técnica como substitutos da vida é mais um sintoma da patologia social contemporânea, da qual “Avatar” é mais uma confirmação. Mas é uma confirmação invertida, pois a moral da história é justamente... a volta à natureza!


Esse paradoxo é o grande achado de “Avatar”. O homem adquire a capacidade de viajar pelo espaço, conservar-se vivo em sono criogênico, colonizar outros planetas, construir e reconstruir corpos por engenharia genética, controlar remotamente um outro corpo, etc., mas o seu objeto de desejo é retornar à mesma relação com a natureza que os índios praticam: caminhar descalço pela floresta, beber água coletada da chuva pelas folhas das árvores, dormir em rede, contar histórias em torno da fogueira...


O bom-mocismo do século XXI


A história de “Avatar”, que já foi descrita como “Pocahontas no espaço”, é um completo clichê: soldado se apaixona por nativa e se volta contra os colonizadores dos quais era parte. O que torna essa narrativa culturalmente significativa é o acréscimo da questão ambiental. O ambientalismo é o bom-mocismo do século XXI. É a causa que (aparentemente) unifica a todos, gregos e troianos, o que ajuda a explicar o sucesso do filme (e o recorde de bilheteria), para além do refinamento visual. Ao colocar de um lado a defesa da natureza e de outro a sua destruição, “Avatar” fornece ao público heróis para os quais torcer e vilões aos quais odiar, e não há nada que o grande público aprecie mais do que heróis virtuosos derrotando vilões odiosos. Sem isso, não há efeitos especiais que bastem para construir um sucesso artístico e comercial dessa magnitude. Mesmo sendo rasa, banal, repetitiva, pouco criativa, a narrativa central de “Avatar” fornece ao espectador uma experiência dramática gratificante, ou seja, boa diversão.


A consagração artística e comercial do ambientalismo em “Avatar” (através de uma overdose de técnica cinematográfica) representa ainda uma espécie de “vingança estética” contra a era Bush. O discurso dos vilões do filme é literalmente o mesmo dos sinistros personagens que povoaram os noticiários na década de 2000, os procônsules estadunidenses no Oriente Médio e os executivos rapaces da Enron, Halliburton, AIG, Lehman Brothers e Cia. O executivo que dirige a exploração do mundo de Pandora em “Avatar” diz que tudo o que importa para os acionistas é o balanço trimestral, a mesma obsessão dos especuladores trazidos à berlinda pela atual crise econômica. O coronel que chefia a milícia particular da empresa diz que se deve “combater o terror com terror”, a mesma coisa que os Estados Unidos fazem no Iraque e no Afeganistão (e em Guantánamo ou em outras bases secretas nas quais torturam “suspeitos de terrorismo”) ou que Israel faz contra Gaza.


Dando mostras do quanto está sintonizado com o sentimento anti-Bush ainda presente na opinião pública mundial, “Avatar” dá a pista dos próximos alvos da “guerra ao terror”, quando lembra que o protagonista, antes de ser mandado para o espaço, serviu na Venezuela, enquanto o coronel servira na Nigéria, ambos “coincidentemente” produtores de petróleo. Ao aterrissar em Pandora, o ex-fuzileiro paraplégico ainda acredita que na Terra as forças armadas estadunidenses estão “lutando pela liberdade”, sendo que os problemas acontecem quando soldados servem como mercenários de uma empresa privada.


Algumas verdades por meio da fantasia


Algumas das falas do protagonista poderiam ter saído da boca de um veterano do Iraque dos nossos dias de crise econômica e desemprego galopante nos Estados Unidos, como quando ele diz que seria possível reparar sua espinha para que pudesse voltar a andar, “mas não nessa economia, não com essa pensão”. Gradualmente o protagonista muda seu ponto de vista sobre o mundo de onde veio, pois passa-se para o lado dos nativos. Supera-se também aos poucos a hostilidade mútua entre o soldado e os cientistas. A separação entre o homem de pensamento e o homem de ação, entre trabalho intelectual e trabalho braçal, típica da cultura estadunidense, também é vencida conforme o soldado se torna capaz de refletir (o videolog mostra-se uma ferramenta bastante útil, mas também perigosa) e os cientistas de se engajar numa rebelião contra a corporação. “Avatar”subverte ainda outro padrão típico da cultura estadunidense, retirando as mulheres do seu papel subalterno tradicional e dando-lhes funções decisivas, como aliás acontece em todos os filmes de Cameron. Em “Avatar”, temos personagens femininas fortes, como a cientista-chefe e até a piloto de helicóptero, mas o destaque fica para a guerreira nativa, capaz de desafiar as tradições de seu povo para unir-se ao estrangeiro por quem se apaixonou.


“Cedo ou tarde, sempre temos que acordar”, aprende o fuzileiro. A operação de exploração mineral em Pandora é uma metáfora de todas as invasões imperialistas no planeta Terra. Repete-se ali o mesmo processo que se desencadeou sobre a América, a África e a Ásia, onde se destruíram povos, culturas e ecossistemas em escala genocida e cataclísmica em busca de riquezas efêmeras, com a diferença de que, na batalha de Pandora, os nativos venceram. E o público que lotou os cinemas do mundo inteiro para dar a “Avatar” o recorde de bilheteria torceu pela vitória dos nativos.


Quando até mesmo um filme de Hollywood coloca em cena heróis em luta contra uma típica empresa imperialista, isso representa uma vitória política do ambientalismo, algo ideologicamente significativo. Mas o ambientalismo tal como é praticado pelas ONGs e movimentos ecológicos padece de um sério limite, que é o mesmo limite em que se encerra o filme “Avatar”, ou seja, uma defesa abstrata da natureza e um repúdio também abstrato da técnica e da “civilização industrial”. Ora, o problema da humanidade não está no excesso de técnica, mas no fato de que toda a tecnologia existente é propriedade de uma minoria de capitalistas, ao invés de servir à maioria, que são os trabalhadores. Cedo ou tarde a humanidade terá que acordar, como o protagonista de “Avatar”. Ou a classe trabalhadora se levanta e destrói o capitalismo ou o capitalismo destruirá o planeta.


A apologia do império em “Guerra ao terror”


O mesmo tipo de guerra criticado em “Avatar” é examinado clinicamente em “Guerra ao terror”. O filme de Kathryn Bigelow (ex-mulher de Cameron) não traz nenhuma inovação estética significativa. Não traz avanços técnicos revolucionários, não traz novidades na forma narrativa, que segue a linearidade tradicional, não apresenta interpretações excepcionais, com um elenco que se situa na média das atuações da escola hollywoodiana, etc. Não há nada que justifique artisticamente a sua escolha como vencedor do Oscar, a não ser o critério político. A importância do filme está em apresentar um retrato realista da vida dos soldados estadunidenses no Iraque.


O gênero dos filmes de guerra já trouxe algumas pérolas ao cinema, como “Apocalipse Now”, “Platoon” e “Nascido para matar”, que tratam todos da guerra do Vietnã. Todo o potencial crítico de tais filmes se esgota diante de uma séria limitação: seu foco está no sofrimento dos soldados estadunidenses, e não na iniqüidade da guerra em questão. O movimento contra a guerra do Vietnã dentro dos Estados Unidos, do qual tais filmes representam uma síntese, tinha como seu foco a defesa da vida dos jovens estadunidenses mandados para a guerra, e não a condenação da própria guerra de invasão imperialista a um outro país. O povo vietnamita aparecia algumas vezes como vítima, mas nunca como herói, pois esse é o papel que cabe aos povos periféricos no cinema, ao lado do de vilão. O herói é sempre por definição o jovem branco, protestante e anglo-saxão.


“Guerra ao terror” também se situa nesse mesmo registro, mas com alguns agravantes. O filme se concentra na psicologia dos soldados no Iraque, em especial de uma equipe que trabalha na desativação das bombas que são a principal arma da resistência iraquiana. A figura do especialista em bombas é romantizada por meio do clichê do herói relutante, indisciplinado e dotado de uma ousadia que beira o descuido (neste caso, o suicídio). Ao fazer isso, perde-se o horizonte em que se poderia discutir a guerra como um todo, ou seja, o significado da invasão estadunidense e suas causas políticas e econômicas. Descartado esse que deveria ser o eixo central de qualquer investigação séria sobre a realidade da guerra em questão, o que resta é uma apologia indireta da bravura e dedicação dos soldados. Ou seja, uma apologia da própria guerra.

Hollywood se reconcilia com a Casa Branca


Logo no início de “Guerra ao terror” uma bomba explode porque um soldado não consegue deter a tempo um iraquiano usando um celular. Outra cena-chave acontece quando um garoto é usado como bomba. Tais exemplos ilustram o discurso de que qualquer iraquiano (ou venezuelano, brasileiro, etc.) capaz de manipular um artefato tecnológico é uma ameaça, e de que os adversários do sistema (terroristas por definição) são capazes de qualquer desumanidade em sua guerra santa. Isso legitima a guerra ao terror. Em outras palavras, está declarada a guerra contra toda a população pobre do planeta, inimiga em potencial do império. A guerra ao terror substitui a Guerra Fria e fornece o pretexto para a manutenção de um aparato militar tão obsoleto tecnicamente (“para que servem os tanques?”, notou um dos soldados do filme) quanto necessário economicamente para a sobrevivência da economia artificial do império.


Ao descrever a verdade da guerra do Iraque, “Guerra ao terror” expõe o sifgnificado profundo da política imperialista de guerra mundial da burguesia contra os trabalhadores do mundo inteiro, em lugar da antiga guerra mundial entre Estados. Por ser mais verdadeiro, “Guerra ao terror” foi premiado pelo Oscar, mesmo que isso signfique a confissão feita por Hollywood das verdadeiras intenções do imperialismo estadunidense contra o resto do mundo. Ao desconsiderar a simpatia mundial para com “Avatar”, Hollywood manda o recado de que está se lixando para o resto do mundo.


A crítica feita por “Avatar” está em certo sentido deslocada, pois remete à era Bush, já superada pela eleição de Obama. Se tivesse surgido no encalço de um documentário de Michael Moore ou de “Uma verdade inconveniente”, a superprodução de James Cameron teria sido imbatível. “Avatar” perdeu o Oscar por ter perdido o timing. Na Era Bush, a crítica ainda era de bom tom ou pelo menos aceitável. Agora que “tudo mudou”, Hollywood se alinha com a Casa Branca e a crítica (mesmo limitada e parcial) cede lugar à apologia. A crítica à era Bush pairou num vazio, enquanto a verdade política da era Obama está em “Guerra ao terror”. A Academia de Hollywood foi fiel à verdade ao premiar a apologia da guerra, pois a eleição de Obama não mudou substancialmente a política estadunidense, apenas a sua embalagem. Em se tratando de espetáculo, a embalagem faz toda a diferença.


Daniel Menezes Delfino
12/04/2010

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