28.12.11

Para além das enchentes: a lógica capitalista e a degradação das cidades


No início de 2011 as fortes chuvas de verão provocaram deslizamentos que deixaram quase 800 mortos na região serrana do estado do Rio de Janeiro. Tragédias desse tipo têm sido recorrentes: em 2010 as chuvas também deixaram mortes e desabrigados em São Luís do Paraitinga, interior de São Paulo, e no bairro de Jardim Pantanal, zona leste da capital. Também houve enchentes no norte de Alagoas e sul de Pernambuco em meados de 2010, com os mesmos efeitos catastróficos. Os governos e a imprensa burguesa colocam a culpa no excesso de chuvas, fazem acusações a algumas autoridades e mobilizam a sensibilidade popular na solidariedade às vítimas. Entretanto, as causas de fundo do problema das enchentes permanecem intocadas. As enchentes e outros problemas das grandes cidades não são produtos de causas puramente naturais, mas sociais. O sistema capitalista impõe um determinado tipo de ocupação das cidades, que privilegia os interesses da burguesia e joga os trabalhadores para as regiões mais pobres e precárias. Para solucionar os problemas urbanos, precisamos questionar o projeto capitalista em implantação no país, que está sendo tocado pelos governos Lula e Dilma (e pela oposição burguesa do PSDB/DEM), e lutar por um outro projeto que contemple as necessidades dos trabalhadores.

O PAC, a especulação imobiliária, e a falsa solução para o problema da moradia
O Brasil tem sido apresentado como um modelo mundial de sucesso no enfrentamento da crise econômica, por ter tido um crescimento de 7,7% em 2010 (agência EFE, 13/12/2010). Entretanto, boa parte desse crescimento foi artificial, insustentável, baseado num aumento do endividamento, tanto do governo, que soltou quantias enormes de dinheiro para as grandes empresas, quanto dos consumidores. Entre 1995 e 2009 a dívida pública saltou de R$ 60 bilhões para R$ 2 trilhões, mesmo que o país tenha pago R$ 1 trilhão em juros e amortização. Só em 2010 foram doados mais de R$ 350 bilhões para as empresas. Em relação aos consumidores, boa parte do endividamento tem a ver com a especulação imobiliária nas grandes cidades.

O crédito fácil precipitou uma orgia de construção de casas e prédios. Os bairros residenciais estão sendo ocupados por edifícios de apartamentos, que estão sendo vendidos por meio de empréstimos a perder de vista. Só a Caixa Econômica Federal elevou em 53,6% o volume de crédito imobiliário em 2010 (Estadão, 11/02/2011). Ao mesmo tempo, as construtoras se beneficiam de programas de financiamento estatal a juros baixíssimos. Assim, programas como o PAC e o "minha casa, minha vida" do governo federal estão amarrando os trabalhadores em dívidas, ao mesmo tempo em que os bancos, construtoras e fornecedores de materiais ganham rios de dinheiro, e a qualidade de vida nas cidades se deteriora. Não é por acaso que as empreiteiras fizeram doações milionárias para a campanha de Dilma, a "mãe do PAC", contando com a continuidade da politica implantada por Lula. As empreiteiras contribuíram com um quarto dos custos da campanha de Dilma, num total de R$ 33,7 milhões. Um grupo de 12 empreiteiras, responsável por R$ 28,4 milhões, foi agraciado em 2010 com contratos no valor de R$ 1,24 bilhão em obras do governo federal (Estadão, 31/12/2010).

O PAC e o "minha casa, minha vida" são apresentados como formas de beneficiar os trabalhadores com o acesso à moradia, mas na verdade estão cevando os bancos e construtoras. O déficit habitacional no Brasil está em 5,8 milhões de moradias, enquanto que o número de imóveis ociosos nas grandes cidades é de 6,07 milhões, segundo dados do censo do IBGE de 2010 (portal IG – Último Segundo, 11/12/2010). Isso significa que o déficit habitacional poderia ser solucionado desapropriando-se os imóveis ociosos para uso da população sem teto ou que vive em habitações precárias nas favelas e ocupações. Mas para isso, seria preciso desafiar um dos pilares da sociedade capitalista, a propriedade privada, e enfrentar alguns dos principais suportes políticos dos governos Lula/Dilma, os bancos e empreiteiras. O PT jamais vai romper com a burguesia para quem governa, assim como a oposição burguesa PSDB/DEM, por isso não pode fazer outra coisa além de oferecer falsas soluções para os problemas dos trabalhadores.

A ocupação destrutiva do espaço urbano

As construções que estão surgindo no processo de especulação imobiliária e dos programas do governo também não levam em consideração questões básicas como a qualidade das construções e a lógica da ocupação do espaço urbano. Notícias sobre desabamentos em construções pelo Brasil afora pipocam diariamente na imprensa: "(...) construção irregular pode ser uma das causas (...) desabamento ocorrido na tarde de quarta-feira, 8, na Vila Matilde, Zona Leste", Agência Brasil, 09/12/2010 - "Desabamento em construção fere operário na zona sul de SP", Folha.com, 03/02/2011 - "Prédio em construção desaba em Belém", Portal G1, 29/01/2011 - "Ameaçam desabar 600 prédios na região metropolitana de Recife", Jornal da Record, 10/12/2009 - "Quatro morrem em desabamento de prédio no Rio", Veja, 30/10/2010; etc.

As novas construções estão sendo feitas às pressas, para aproveitar o momento comercial favorável, mas com material de qualidade inferior e sem seguir os padrões de segurança necessários. Além do problema da segurança das construções, também não estão sendo levados em conta uma série de aspectos da organização do espaço urbano. O fornecimento de água, escoamento de esgoto, coleta de lixo, são projetados em cada bairro e cada cidade para determinado volume, que determina a quantidade de construções que a infra-estrutura urbana é capaz de suportar, dentro de um plano tecnicamente racional de zoneamento urbano. Essa capacidade da infra-estrutura urbana não está sendo considerada, de modo que em várias cidades as casas e prédios estão sendo “amontoados” e a sua ocupação sobrecarrega a vazão de água, esgoto e coleta de lixo suportáveis. A ausência de investimentos em infra-estrutura e a sanha desenfreada das construtoras (com a conivência dos órgãos de fiscalização municipais corruptos) se combinam para criar cenários de catástrofe urbana, como acúmulo de lixo, entupimento de bueiros e galerias, contaminação dos rios e córregos, etc., que se agravam dramaticamente nas épocas de chuvas mais intensas.

A infra-estrutura das cidades também não comporta o volume do tráfego de automóveis. O município de São Paulo tem 6.093.551 veículos em circulação (carros, ônibus, micro-ônibus, caminhões e caminhonetes, segundo o site do Detran-SP), para uma população de 11.057.629 habitantes (dados de 2010, site da Prefeitura). Essa quantidade de veículos lança 10.562.000 toneladas de toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera (dados do Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa, elaborado pela Prefeitura em 2005, o mais recente disponível). O efeito estufa consiste num aumento da temperatura média global, que resulta em desequilíbrios climáticos e aumento das chuvas, causa imediata das enchentes. Trata-se de um verdadeiro círculo vicioso, em que um problema se conecta com o outro. Todos esses fenômenos estão interligados, pois fazem parte da lógica do capitalismo. A especulação imobiliária expulsa os trabalhadores dos bairros centrais, jogando-os para locais mais distantes, a ausência de investimento em transporte coletivo faz com que as pessoas tenham que usar automóveis, o excesso de automóveis em escala planetária influencia no aquecimento global, que faz com que aumentem as chuvas, que também afetam os trabalhadores dos bairros mais precários, e assim sucessivamente, etc.

O aquecimento global e as desordens climáticas

Dados mais recentes da World Meteorological Organization e do site Nature Geoscience mostram uma tendência contínua de aumento da temperatura média do planeta. Desde que as medições sistemáticas começaram em meados do século XIX, os anos mais quentes foram 1998, 2005 e 2010. O derretimento das calotas polares e das geleiras também avançou. Eventos climáticos extremos foram registrados em 2010, como a onda de calor na Rússia, que provocou incêndios e conseqüente quebra da safra de trigo, e as inundações no Paquistão, que deixaram 7 milhões de desabrigados. No início de 2011 houve aumento acima da média das chuvas na Austrália e no Brasil.

As últimas reuniões de cúpula internacionais sobre a mudança climática, em Copenhague e Cancún, serviram apenas para proteger os interesses imediatos das potências imperialistas e impedir a adoção de medidas realmente capazes de conter o aquecimento global. Tais medidas prejudicariam as mega-corporações da indústria automobilística, petrolífera e outras, que controlam a política dos países imperialistas, que fazem com que as discussões sobre mudança climática permaneçam no plano das declarações de intenções. Ao contrário de reverter os danos ao meio ambiente, os encontros sacramentaram os planos das mega-corporações imperialistas de seguir implantando práticas destrutivas, como os plantios transgênicos, os agro-combustíveis, o reflorestamento com espécies predatórias para abastecer as indústrias de papel, os mercados de câmbio de carbono, a aculturação e manipulação de populações aborígenes por ONGs, a invasão do território dos países periféricos, etc.

A “desproletarização” dos bairros operários de São Paulo

Nos últimos 20 anos, a cidade de São Paulo avançou em direção à periferia. Assim, os antigos bairros são tragados pelo centro, que se expande cada vez mais, a ponto de que antigos redutos proletários, ou até mesmo as favelas, passam a ser objeto de especulação imobiliária. Favelas como Heliópolis, Real Parque, Canão do Brooklin, Paraisópolis, antes lugares esquecidos pelos governos e imobiliárias, passaram a se valorizar com a expansão da malha urbana. Os terrenos e edificações localizados em antigos bairros ocupados historicamente pelos trabalhadores passam a interessar ao capital, ao mesmo tempo em que estes mesmos trabalhadores passam a ser empecilho para a especulação imobiliária, fazendo com que os pobres e oprimidos sejam “convidados” a saírem de suas casas.

Isso pode ser feito pela via comercial, num sistema em que as incorporadoras compram diversas casas, todas vizinhas, para serem derrubadas e substituídas por condomínios de luxo. Na cidade de São Paulo, bairros como a Vila Leopoldina chamam bastante a atenção como exemplo desta tendência. Nos últimos 20 anos, um lugar que era vizinho a um lixão à beira da Marginal Pinheiros, passou a ser, por obra das construtoras e imobiliárias, a mais “nova Moema” da cidade. O lixão se tornou o famoso Parque Villa Lobos e as velhas casas de operários dão lugar aos condomínios de luxo em que o custo de cada unidade passa de 7 dígitos. Os antigos proprietários, depois de venderem suas residências para as construtoras, não conseguem se manter no bairro por conta da supervalorização dos terrenos, e da subseqüente elevação geral do cuso de vida. As poucas casas que ficaram de pé são destinados ao comércio, que se adapta para atender a nova e “nobre” vizinhança.

Quando a compra não é suficiente para desocupar as áreas valorizadas, o Estado se encarrega de fazer o trabalho sujo para os barões imobiliários, simplesmente derrubando os imóveis, como foi o caso da região do Real Parque e da Favela do Canão, encrustados ao lado da Avenida Luiz Carlos Berrini, conhecida por ser a “nova Avenida Paulista” por causa dos grandes prédios comerciais.

Este novo “boom” imobiliário promove a super-ocupação do solo. Satura-se o centro e impermeabiliza-se a periferia, de modo que a água da chuva não tem mais para onde correr, sobrecarregando a vazão dos rios e córregos, transbordando para as ruas e para dentro das casas, causando mortes e prejuízos para os trabalhadores. Vítimas da especulação imobiliária, os trabalhadores são obrigados a ir cada vez mais longe na direção da periferia, onde só lhes resta ocupar as áreas de risco. Os moradores das áreas de risco sofrem prejuízos patrimoniais e familiares com as enchentes e deslizamentos, como pudemos constatar no interior do Rio em 2011, onde foram ceifadas centenas de vidas, todas de trabalhadores. No ano passado, o Jardim Pantanal, na Zona Leste de São Paulo ficou meses debaixo d’água. A população que se recusou a sair teve suas casas derrubadas pela prefeitura. Em troca de habitações que custaram uma vida inteira de esforço para adquirir, a prefeitura os “ajudou” com um vale-aluguel de 300 reais.

O mais comum nessa situação é que se coloquem os trabalhadores como criminosos, afinal a “culpa” é deles por “invadirem” áreas de risco de deslizamentos e enchentes. As vítimas são apresentadas como culpados pela própria desgraça. A mídia burguesa faz uma “criminalização seletiva” da ocupação do solo, pois quando se trata de grandes empreendimentos imobiliários que ocupam essas mesmas áreas, o tratamento não é o mesmo. Para se ter uma idéia disso, as margens dos dois grandes rios que cortam a cidade (Tietê e Pinheiros) estão todas tomadas por construções e empreendimentos “chiques”, como os centros comerciais do Eldorado, Morumbi, Villa Lobos, Center Norte, Jóquei Clube, Daslu, etc, etc, etc. Essas ocupações são tão ilegais quanto às dos pobres, mas nunca foram incomodadas pelo Estado ou forçadas a se retirarem das margens dos rios. Na verdade, o próprio Estado muitas vezes é o meliante, por conta da impermeabilização de todo o solo da cidade com asfalto e cimento, em nome da prioridade para o transporte automobilístico.

O projeto da burguesia para as cidades

Ao lado do processo "espontâneo" de deterioração das condições de vida das cidades, que tem a ver com o próprio desenvolvimento automático da lógica destrutiva do capital, existe no Brasil um projeto deliberado e consciente da burguesia, aplicado pelo Estado, que consiste em remodelar as cidades para a Copa do Mundo e as Olimpíadas Não se trata apenas de eventos esportivos, mas de um projeto politico para as cidades, que contém uma série de objetivos embutidos.

Primeiro, apresentar o Brasil perante o mundo como exemplo de sucesso do capitalismo. Segundo, incrementar o mercado de turismo, reservando as belezas naturais do país para usufruto exclusivo dos visitantes endinheirados do mundo inteiro. Terceiro, sob pretexto dos eventos esportivos, realizar uma gigantesca operação de remodelação urbana, removendo populações inteiras das favelas e bairros periféricos, bem como os pobres, moradores de rua, comércio ambulante dos centros, etc., "limpando" as cidades e transformando-as em locais aprazíveis e "seguros" para a burguesia. Quarto, sob pretexto de "reprimir o crime", manter a população dos bairros pobres e periféricos sob a mira permanente do terror de Estado, na forma de ocupações militares, ocupações policiais, ações das tropas de elite, etc. Essas ações causam um efeito espetacular a princípio, mas isso é ilusório, pois ao final do processo estabelece-se o controle das milicias de policiais corruptos sobre os bairros. As UPPs no Rio já são parte desse projeto mais geral.

Em São Paulo, as enchentes no Jardim Pantanal no início de 2010 foram provocadas pelo fechamento deliberado da barragem da Penha, com o objetivo de proteger as obras da Avenida Marginal do Tietê, sacrificando as vidas e os bens dos moradores do bairro ("Comportas fechadas na barragem da Penha para proteger a marginal ajudaram a alagar a zona leste de SP", Portal UOL, 17/12/2009). O objetivo de longo prazo é remover toda a população da região e viabilizar o Parque Várzeas do Tietê: "O parque terá 75 km de extensão e 107 km² de área. Será o maior parque linear do mundo. Nele, serão construídos 33 núcleos de equipamentos de esporte e lazer, atendendo a população dos municípios da bacia do Alto Tietê: São Paulo, Guarulhos, Itaquaquecetuba, Poá, Suzano, Mogi das Cruzes, Biritiba Mirim e Salesópolis." ("São Paulo terá maior parque linear do mundo", Portal do governo do Estado, 20/07/09)

Em beneficio de uma minoria, do conforto da burguesia em seus bairros luxuosos e dos lucros da indústria automobilística, da construção civil, dos bancos e de outros parasitas, constrói-se um modelo de cidade que torna a vida infernal para a maior parte dos seus habitantes, a classe trabalhadora, obrigada a conviver com os aluguéis altíssimos, a insuficiência do transporte coletivo, a superlotação de ônibus, trens e metrôs, o trânsito insuportável, a poluição do ar, sonora e visual, a falta de áreas verdes, e para completar, as enchentes.

Como medidas imediatas para os problemas urbanos, defendemos:

- Priorizar realmente o transporte coletivo de qualidade. Investimento em mais trens e ônibus para diminuir o número de automóveis nas ruas e aumentar a área verde da cidade. Tarifa social de R$ 1,00 nos trens e ônibus. Que o empresariado e o estado assumam o restante do custo, com a criação de um Fundo de Transporte cortando gastos dos políticos, cargos privilegiados, e aumentando os impostos da empresas, que não disponibilizem ônibus fretados;

- Há milhares de imóveis vazios nas grandes cidades enquanto trabalhadores vivem em áreas de risco e distantes do trabalho. Portanto é preciso expropriar os imóveis ociosos nos centros e colocá-los à disposição dos trabalhadores a preços acessíveis;

- Por um plano de obras eficaz que viabilize a construção de moradias populares a preços compatíveis e não absurdos como hoje;

- Fim de financiamento público para condomínios de luxo e a utilização dessa verba para financiamento das moradias populares;

- Indenização do Estado a todas as vítimas de enchentes e deslizamentos;

- Casa para quem perdeu a casa nas enchentes e deslizamentos;

- Isenção de todos os tributos para as vítimas de alagamentos e desmoronamentos por seis meses;

- Por um plano de obras públicas que priorize o saneamento e a despoluição de rios e lagos; Proibição das empresas jogarem seus esgotos nos rios;

- Contra a repressão e a criminalização dos movimentos das vítimas de enchentes.

Daniel Menezes Delfino
15/02/2011

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