15.6.12

Contra a “Economia Verde” dos capitalistas, uma economia vermelha dos trabalhadores!





Crítica ao Eco-Reformismo da Cúpula dos Povos



1. A farsa imperialista da Rio+20



Nos dias 20 a 22 de junho de 2012 acontece no Rio de Janeiro a “Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável” da ONU, chamada de “Rio+20”. A Conferência reunirá centenas de chefes de Estado para discutir o projeto da chamada “Economia Verde”, que seria simultaneamente uma saída para os problemas ambientais do planeta e os impasses da economia capitalista. O projeto está materializado em um documento intitulado “O Futuro que queremos” (original em inglês em formato pdf disponível em: http://www.uncsd2012.org/rio20/content/documents/370The%20Future%20We%20Want%2010Jan%20clean.pdf, sendo que há uma tradução não-oficial disponível em: http://cupuladospovos.org.br/2012/01/rascunho-zero-do-documento-final-para-a-rio20/).

A função dessas Conferências é garantir a continuidade da produção destrutiva capitalista, tal como aconteceu com a Rio 92 e acontecerá também com a Rio+20. Ao mesmo tempo em que se assinam acordos que mantém intocados os crimes das corporações capitalistas, consegue-se iludir a opinião pública mundial com discursos sobre “desenvolvimento sustentável” ou “Economia Verde”, onde a única coisa que se tenta sustentar é o lucro e a única coisa verde são os dólares dos capitalistas. Sob o pretexto de se preocupar com as mudanças climáticas e os problemas ambientais do planeta, e ainda a fome, a miséria, a exclusão, etc., e um conjunto de outras causas que aparecem nos discursos e declarações oficiais, os governantes do mundo estarão garantindo às corporações capitalistas a continuidade de seus lucros às custas da destruição do planeta e das vidas humanas.

E ainda, estarão ampliando o fôlego da especulação financeira ao transformar recursos naturais em ativos negociáveis nos mercados financeiros. A grande novidade no documento da ONU é a possibilidade da emissão de títulos negociáveis no mercado financeiro vinculados à conservação de florestas, bacias hidrográficas, reservas de biodiversidade, recursos naturais em geral, que assim passam à jurisdição do capital financeiro. A lógica que preside o documento dos governos e empresas capitalistas é de que é preciso atribuir um valor econômico-financeiro aos recursos naturais, como florestas, água, atmosfera, biodiversidade, etc., tornando-os passíveis de serem negociados nos mercados financeiros, pois somente aquilo que tem valor econômico pode ser preservado. Essa lógica identifica propriedade com propriedade privada capitalista, como se não houvesse outra forma de propriedade, de apropriação dos recursos naturais, uma forma coletiva, comunista e racional.

Está subentendido que os camponeses, povos originários, comunidades ribeirinhas, pescadores, extrativistas, etc., não sabem fazer bom uso dos territórios em que habitam, não são capazes de preservá-los, não merecem continuar usufruindo deles e podem ser expropriados e removidos pelos meios que forem necessários, inclusive a violência da polícia, milícias e jagunços, em benefício das corporações capitalistas como mineradoras, petrolíferas, agronegócio, empresas de energia, água, etc., que compreendem o verdadeiro sentido de propriedade. Não se poderia esperar outra coisa de um órgão do imperialismo mundial como a ONU.



2. A Cúpula dos Povos



Como contraponto ao evento oficial da Rio+20, acontece também no Rio, entre os dias 15 a 23 de junho a “Cúpula dos Povos por Justiça Social e Ambiental e contra a mercantilização da vida”. Trata-se de um mega-evento que pretende aglutinar todos os setores contrários ao projeto expresso na Conferência da ONU, aí incluídos partidos políticos, centrais sindicais, movimentos sociais, ONGs e outras organizações da chamada “sociedade civil”, tanto nacionais como internacionais. Um breve olhar sobre a lista de entidades brasileiras que participam da articulação da Cúpula (disponível em: http://cupuladospovos.org.br/quem-organiza-a-cupula/), tais como CUT, CNBB, Via Campesina, Jubileu Sul, etc., ou seja, componentes do que podemos denominar com muito boa vontade de “ala esquerda do governo Dilma-PT”; já é suficiente para identificar a linha política e ideológica que orienta o conjunto do evento.

Sobre a falta de combatividade dessas entidades e do evento, basta lembrar que o governo que apóiam, ou com o qual no mínimo são coniventes, o governo Dilma, acaba de aprovar o novo Código Florestal, que seria muito melhor denominado como “código ruralista”. O código legaliza a destruição da Amazônia, das áreas de preservação, reservas, margens de rios, encostas e morros, a grilagem de terras, a expulsão de trabalhadores sem-terra, indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas, extrativistas, etc., em benefício do agronegócio (nome que se dá à associação do setor mais reacionário do latifúndio com o capital internacional). Não vimos nenhuma das entidades organizadoras encabeçar nada além de uma oposição protocolar ao código, muito menos uma ampla campanha nacional com ações massivas de luta que seriam necessárias para barrar sua aprovação.

Outro dado relevante para caracterizar a Cúpula é a lista de apoiadores institucionais, como Caixa Econômica Federal, Fundação Ford, Oxfam, e as Fundações Heinrich Böll e Friedrich Ebert. A participação daquelas entidades governistas e dessas empresas capitalistas leva à conclusão de que se trata de um evento que não vai se contrapor de fato à Rio+20 oficial. A Cúpula vai funcionar como uma oposição consentida e “bem-comportada” à Conferência da ONU, para centralizar setores e organizações sociais e políticas em torno de uma pseudo-alternativa ilusória. Essa pseudo-alternativa não fará nenhum enfrentamento real contra o projeto da “Economia Verde” e vai apenas confundir os setores da opinião pública que com razão desconfiam da Rio+20.

Esses setores críticos vão se deparar com o festival de pseudo-alternativas da Cúpula e estacionar no meio do caminho, sem avançar em direção às raízes do problema ambiental. A Cúpula e as organizações que a promovem funcionam assim como um anteparo ideológico para impedir que se realize um avanço na consciência crítica capaz de perceber que só com a superação do capitalismo por um modo de produção socialista serão possíveis a sobrevivência da humanidade e a preservação do ambiente planetário.



3. As bases programáticas da Cúpula



Para uma crítica mais profunda da concepção expressa na Cúpula não basta evidentemente apenas aquele breve olhar sobre a lista de organizadores, é preciso questionar seus fundamentos teórico-programáticos. Podemos encontrar esses fundamentos no documento intitulado “Outro Futuro é Possível!” (disponível em formato pdf em: http://rio20.net/wp-content/uploads/2012/02/Outro-Futuro.pdf), produzido pelos Grupos Temáticos do Fórum Social Temático preparatório da Cúpula dos Povos. Na sua apresentação, o documento se pretende anti-neoliberal, anti-capitalista, “de esquerda” e “progressista”, evoca princípios como ética, justiça social, sustentabilidade e apela para sujeitos como “os povos” e a “sociedade civil”, contra as corporações, os bancos e as finanças mundiais.

O texto de 32 páginas contém uma série de propostas de reformas organizadas em tópicos que tocam praticamente todos os temas abordados na Conferência, tais como educação, conhecimento científico, extrativismo e energia, agricultura e pesca, empregos climáticos, consumo responsável, economia solidária, recursos Comuns (sic), direito à água, saúde, migrantes, cidades, governança mundial, etc. Não faremos a crítica detalhada das propostas referentes a cada um desses tópicos, mesmo porque isso sobrecarregaria por demais este texto e o tornaria tão longo quanto o original que critica. Partiremos apenas de um dos conjuntos de medidas propostas para identificar a lógica a partir da qual estão estruturadas, lógica que preside todas as demais propostas temáticas. Identificada essa lógica, veremos então quais são as suas fragilidades políticas, a sua perspectiva de classe e as suas inconsistências filosóficas.

Vejamos portanto inicialmente o que o documento propõe a respeito de um dos temas particulares, o problema do acesso à água:

“- Reafirmamos nossa luta pelo direito à água e contra a sua privatização ou apropriação indevida em detrimento da livre circulação para a alimentação dos povos, de forma conjunta com a luta por um ambiente são e sustentável.

- Defendemos a adoção de políticas públicas integradas a nível local, nacional, regional e internacional, necessárias para garantir a equidade de acesso e distribuição, a partir de uma ética de preservação do recurso, do seu uso racional e de equidade social.

- O controle social sobre os Comuns (sic) que é a água, no sentido amplo, é um corolário dessas ditas políticas.

- Denunciamos os processos de dessalinização da água do mar, que não respeitam o princípio de precaução frente a tecnologias ambientalmente insustentáveis.” (capítulo 18)

Essas medidas em si mesmas não parecem erradas. De fato é preciso envidar medidas contra a privatização da água, contra a poluição, contra a escassez artificial, pelo acesso à água, etc. Da mesma forma prosseguem as propostas relativas a todos os demais eixos temáticos, como agricultura, energia, consumo, etc. Para todos eles se elencam medidas pontuais que em si parecem capazes de minorar ou reverter os processos destrutivos em curso.

Entretanto, quem vai garantir essas medidas? Quem vai aplicá-las em nível mundial? Quem vai ser o agente que vai combater a sanha destrutiva das corporações? Será o Estado capitalista ou serão os trabalhadores organizados, as comunidades indígenas e camponesas, os povos em luta? O documento cita a todo momento a necessidade de empoderar as comunidades locais e os povos do mundo inteiro contra o Estado e as corporações. Mas qual é o horizonte dessa luta? Até onde vai a sua oposição ao Estado e às corporações? É o que veremos no próximo ponto.



4. Fragilidades políticas



Aparentemente, o documento realiza uma dura denúncia do controle que as grandes corporações capitalistas exercem hoje sobre as riquezas do planeta, inclusive os seus recursos naturais. Acertadamente, o documento denuncia a escandalosa desigualdade social que vigora hoje no mundo:

“Em um mundo em que 50% da população pobre respondem por 1% das riquezas do planeta, nos quais as três pessoas mais ricas do mundo têm o mesmo rendimento que os 600 milhões mais pobres, não será possível erradicar a pobreza nem restabelecer a harmonia com a natureza.” (capítulo 8)

Indo além, o documento preparatório da Cúpula denuncia também a “Economia Verde” que está sendo proposta na Rio+20:

“Em consequência, a Economia Verde trata a natureza como capital – 'capital natural'. A Economia Verde considera que é essencial atribuir um preço às plantas, aos animais e aos ecossistemas para mercantilizar a biodiversidade, a purificação da água, à proteção dos recifes de coral e ao equilíbrio climático. Para a Economia Verde é necessário identificar as funções específicas dos ecossistemas e da biodiversidade para avaliar sua situação atual, fixar um valor monetário e concretizar em termos econômicos o custo de sua conservação para desenvolver um mercado por cada serviço ambiental particular. Para os ideólogos da Economia Verde, os instrumentos de mercado seriam ferramentas para superar 'a invisibilidade econômica da natureza'.(idem)

E conclui:

“A Economia Verde é uma manipulação cínica e oportunista das crises ecológica e social. Em lugar de tratar as verdadeiras causas das desigualdades e as injustiças, o capital se está servindo de um discurso 'verde' para lançar um novo ciclo de expansão. As empresas e o setor financeiro necessitam que os governos institucionalizem as novas regras da Economia Verde para assegurarem-se contra os riscos e criar um marco institucional para abarcar partes da natureza nas engrenagens financeiras.”(idem)

Entretanto, por trás dessa crítica aparentemente radical, se esconde o mais impotente reformismo. Qual é o agente, como perguntamos no ponto acima, que vai frear o avanço dessa privatização desenfreada da natureza, que está dando mais um salto na Rio+20? Vejamos como se encaminha a resposta:

“O desafio da Rio+20 está na definição dos processos decisórios para a sua implementação, dada a inoperância dos mecanismos multilaterais de gestão. Siglas como FMI, BM, OMC não estão à altura desta responsabilidade. A própria ONU, parceira indispensável das mudanças, encontra-se profundamente fragilizada.”(capítulo 20)

A ONU é definida como “parceira indispensável das mudanças”. Mas o que é a ONU senão um rascunho mal-acabado de Estado mundial que funciona como instrumento das maiores potências imperialistas? O problema da ONU não é o fato de que ela esteja “profundamente fragilizada”, mas se deve à sua própria natureza, à sua essência de instituição que preserva e reproduz as relações de poder vigentes a serviço do imperialismo mundial. A ONU tal como existe é irreformável. Em várias passagens, porém, o documento preparatório da Cúpula reproduz a crença na ONU como instituição capaz de ser empregada como instrumento dos povos, basta que seja reformada:

“É evidente que a governança das relações entre os Estados, regulada pelo sistema das Nações Unidas depois da Segunda Guerra Mundial e do período de descolonização posterior, já não responde aos desafios do presente. (…) As propostas de democratização dos organismos das Nações Unidas referidas às questões da sustentabilidade deverão ser definidas e implementadas também nas questões relativas à paz e à segurança internacional. Deve haver um reequilíbrio democrático do Conselho de Segurança, com abertura a novos atores, não somente a Estados que permanecem marginalizados, mas também aos atores e organizações sociais nos diversos territórios e regiões, assim como as redes e organizações em escala mundial.” (capítulo 23)

A ONU é encarada como uma espécie de parlamento mundial dos Estados nacionais. Quando a maioria dos Estados nacionais estiver a favor das mudanças propostas no programa da Cúpula, estes vão, por sua vez, transformar a ONU no instrumento que vai garantir a sua aplicação em escala mundial, que seria capaz de disciplinar os Estados recalcitrantes. Como se fosse possível impor algum tipo de medida, por exemplo, contra os componentes do Conselho de Segurança, que pudesse forçá-los a aceitar uma divisão democrática de poderes. São justamente os mais poderosos Estados imperialistas, como Estados Unidos, Japão e União Européia os que mais se beneficiam da ordem capitalista vigente e os que controlam todos os mecanismos da ONU. Em todas as questões decisivas a ONU é absolutamente incapaz de impor qualquer medida que contrarie os interesses da tríade imperialista. Basta lembrar as incontáveis resoluções contra o bloqueio estadunidense a Cuba ou contra o genocídio dos palestinos nas mãos de Israel, as quais viram letra morta, pois nenhuma resolução é capaz de se impor contra os poderes prevalecentes.



5. Perspectiva de classe



5.1. A crença no Estado



A crença na ONU é, por sua vez, um subproduto da crença no Estado como agente de mudanças que possam beneficiar os trabalhadores e os povos. Essa crença no Estado transparece a todo momento no documento preparatório da Cúpula, em trechos como o seguinte:

“Um Estado respeitoso dos direitos dos cidadãos é condição de institucionalidade democrática do poder. (...) Os sistemas de representação vigentes não correspondem às exigências de uma participação ativa. O prioritário é potenciar a participação implantando sistemas de informação transparentes e mecanismos de consulta abertos para que a tomada de decisões seja eficaz. Mas trata-se de ir mais fundo. É preciso radicalizar a democracia, tanto das instituições estatais como da sociedade em seu conjunto. Assim, progressivamente, se irá transformando o Estado e os sistemas de representação repensando novas instituições políticas.” (capítulo 23)

A chave da questão é a concepção de que se pode ir “transformando o Estado” em direção às mudanças necessárias. Ora, o Estado nacional, qualquer que seja ele, imperialista ou dominado, é a instituição das instituições, o pilar fundamental da ordem capitalista. Qualquer possibilidade de que os trabalhadores se apossem de porções do Estado para fazer valer seus interesses vai se deparar com a reação brutal das classes dominantes, como já aconteceu em outros momentos da história, com o fascismo e as ditaduras militares.

Não há outra solução a não ser “quebrar a máquina do Estado”, como já ensinou Lênin em “O Estado e a Revolução”. As “novas instituições políticas”, por sua vez, não podem ser outras que não as organizações surgidas do próprio processo de luta dos trabalhadores e dos povos. Os conselhos de trabalhadores da cidade e do campo devem ser os organismos que vão administrar coletivamente e racionalmente os recursos naturais, e não as instituições do velho Estado capitalista “reformadas”.

Chegamos assim ao limite que impede o documento preparatório da Cúpula de propor soluções reais para os problemas sociais e ambientais do planeta, a sua crença na capacidade de agir por dentro das instituições do Estado e de reformá-las para colocá-las a serviço das mudanças necessárias. A concepção que orienta o documento preparatório da Cúpula realiza um imenso exercício de contorcionismo teórico para evitar a menção do único processo que poderia viabilizar as mudanças, ou seja, quebrar a máquina do Estado e construir novas instituições: a revolução socialista.



5.2. A questão da democracia



Ao invés disso, o método em que se aposta é a “democracia”, compreendida como algo absolutamente abstrato:

“A democracia é guiada pelos princípios e valores éticos da liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação, todos juntos e ao mesmo tempo. O método democrático pode transformar tudo o que se afirmou anteriormente como fundamentos civilizatórios em uma utopia possível, potenciando o surgimento de uma nova arquitetura de poder, do local ao mundial.” (capítulo 3)

Essa democracia não tem qualquer caráter de classe. Ou seja, não está especificado se se trata da democracia burguesa tal como existe hoje ou da democracia operária que precisa ser posta em prática. Fala-se simplesmente em “democracia”, como se a democracia que existe hoje não tivesse um caráter de classe, ou seja, como se a democracia representativa e o Estado burguês não fossem essencialmente impermeáveis a qualquer mudança radical. Como se a burguesia não fosse capaz de abrir mão de métodos democráticos assim que lhe convier (lembramos acima os casos do fascismo e das ditaduras) para preservar seus interesses. Como se no próprio processo da crise econômica em andamento a burguesia não fosse capaz de impor os governantes que lhe interessam ao arrepio do processo democrático formal e das vontades dos eleitores, como acabamos de ver na Grécia e na Itália. Como se a democracia hoje em vigor não fosse capaz de empreender a mais dura repressão contra os trabalhadores em greve ou os movimentos sociais em luta, com tropas de choque, prisões, mandados judiciais, processos administrativos, perseguições, etc., todos desencadeados dentro da mais absoluta legalidade democrática.



5.3. A questão das classes



Essa crença no Estado burguês e na sua democracia decorre de uma debilidade programática ainda mais fundamental, a falta de uma perspectiva de classe claramente definida. O documento preparatório da Cúpula não especifica quem é o agente social das medidas necessárias para a reorganização social e ambiental, nem o processo político e o regime social necessários para obtê-los. Ao invés disso, passeia sem o menor rigor sobre uma paisagem pós-moderna repleta de “atores” e “múltiplos sujeitos”:

“Múltiplas dimensões do que pode e deve ser uma nova subjetividade vem sendo forjados nestas lutas anti-sistêmicas e devem ser tematizadas conscientemente, se quisermos apresentar uma alternativa dotada de credibilidade. Devem ser debatidas e sistematizadas como valores, formas de conhecimentos, visões de mundo e cultura contra-hegemônica.”(capítulo 2)

Ao falar em subjetividades que “estão sendo forjadas nas lutas anti-sistêmicas”, não se trata simplesmente de agregar novos sujeitos sociais aos processo de luta. Se trata de criar algo que não só pode como “deve ser uma nova subjetividade”. O documento está evidentemente rejeitando a subjetividade do movimento operário e da revolução socialista. Isso está expresso com todas as palavras num outro trecho:

“Não há solução para os dilemas societários fora das lutas sociais e das grandes disputas políticas. Mas esta visão, que orientou a quase totalidade das mobilizações progressistas da história, não é suficiente. (...) Emancipação, libertação, eliminação de todas as formas de exploração e opressão são objetivos que os movimentos progressistas se propõem alcançar, socialistas ou de esquerda com força cada vez maior ao longo dos últimos séculos. Mas retomar hoje esses objetivos requer muito mais do que reavivar os ideais de 'liberdade, igualdade e fraternidade' ou de eliminação da exploração do trabalho pelo capital. Requer questionar as bases sobre a qual se assentou a modernidade, o capitalismo e a dominação europeia do mundo, requer uma revolução mental que abale a infraestrutura intelectual compartilhada não só pelas elites capitalistas, mas também por boa parte dos movimentos que procuraram até hoje combatê-las.” (idem)

Ora, é perfeitamente legítimo que os proponentes do projeto político expresso no documento preparatório da Cúpula pretendam substituir a revolução socialista e a classe operária por um outro processo de transformação a ser realizado por um outro sujeito social (ou conjunto de sujeitos). Mas fazer essa substituição requer no mínimo um balanço consistente e circunstanciado dos motivos que levaram ao fracasso dos processos baseados no projeto socialista e no movimento operário, como por exemplo, a Revolução Russa. Se se trata de descartá-los, é preciso dizer porque não funcionaram e não servem mais. Não encontramos nem sinal desse balanço no documento preparatório da Cúpula. Não encontramos nenhuma tentativa de balanço que explique os motivos internos e externos da derrota da Revolução Russa, de seu isolamento e burocratização, sua posterior decomposição, etc. Não encontramos em conseqüência disso nenhuma explicação de porque as derrotas históricas de processos como a Revolução Russa servem como justificativa para descartar a revolução socialista como projeto e para substituir esse projeto e seu sujeito social por algum outro.



5.4 A diversidade da classe trabalhadora



Essas questões transcendentais são simplesmente ignoradas. A emergência dos “novos sujeitos” capazes de por em prática um outro projeto de transformação social é tratada como uma evidência definitiva e estabelecida, e como se fosse por si só suficiente para descartar a necessidade desse espinhoso debate sobre os lineamentos do projeto societário a ser construído. Como corolário, também fica ausente um outro debate: a emergência das “múltiplas dimensões” de uma “nova subjetividade” que “vem sendo forjados nestas lutas anti-sistêmicas” é necessariamente incompatível com o projeto socialista orientado a partir da classe operária?

Para dizer claramente e dar nome aos bois, a luta dos povos originários, dos camponeses, das comunidades ribeirinhas e extrativistas, dos remanescentes quilombolas, das minorias étnicas e religiosas marginalizadas e discriminadas em cada país, dos trabalhadores sem terra, sem teto, das mulheres, dos negros, dos homossexuais, da juventude, dos coletivos de artistas e mídia independente, etc., são necessariamente incompatíveis com o projeto socialista orientado a partir da classe operária? Ou ao contrário, todos esses movimentos não tem muito mais a ganhar ao se lhes acrescentar a dimensão programática da abolição da propriedade privada, da socialização dos meios de produção, do controle social e racional dos recursos naturais e tecnológicos, da abolição do Estado e implantação da democracia direta, etc.; dimensões que são patrimônio histórico do movimento operário e suas organizações de perfil socialista revolucionário? Isso não contribuiria para superar o atual isolamento desse diversos movimentos específicos e não possibilitaria lutas muito mais massivas e unitárias? Não tornaria todos esses movimentos mais próximos de atingir suas metas específicas?

Entendemos que sim, por isso discordamos da perspectiva expressa no documento preparatório da Cúpula. As reivindicações específicas desses movimentos não são apenas palavras de ordem táticas para engrossar o movimento socialista, são a expressão de necessidades vitais de setores da classe trabalhadora, que não podem ser colocadas sob a “subordinação” ou “em obediência” a outros setores. Essas reivindicações precisam ser incorporadas e desenvolvidas em toda sua radicalidade pelo movimento socialista e suas organizações, se se deseja realmente avançar para novas relações sociais efetivamente emancipadas. A questão é que as reivindicações gerais e específicas só podem ser atendidas por um movimento que supere a ordem capitalista (o que não significa que devem esperar pela revolução socialista para serem postas em pauta). É o próprio curso da luta que vai determinar qual o eixo de luta, se de natureza sindical ou social, vai ter maior poder de mobilização sobre a classe trabalhadora e vai fazê-la se chocar com a ordem estabelecida, colocando na ordem do dia a tomada do poder e a transformação social.

Mas é preciso ir além. Não basta apontar a ausência (na verdade rejeição) do projeto socialista e da classe operária na concepção expressa no documento preparatório da Cúpula, é preciso apontar as deficiências intrínsecas dessa concepção, o que faremos a seguir.



6. Inconsistências filosóficas



O trecho citado acima diz que o projeto de emancipação deve não apenas rejeitar ou superar o “velho” movimento operário e o “velho” projeto da revolução socialista, pois: “Requer questionar as bases sobre a qual se assentou a modernidade, o capitalismo e a dominação europeia do mundo, requer uma revolução mental que abale a infraestrutura intelectual compartilhada não só pelas elites capitalistas, mas também por boa parte dos movimentos que procuraram até hoje combatê-las.”

Ou seja, sob o pretexto de realizar uma crítica ainda mais profunda e radical do conjunto da civilização, o documento preparatório da Cúpula evita o debate concreto sobre qual civilização estamos falando (capitalista), quais os poderes que a governam (Estados imperialistas), quais os instrumentos de que se servem para sua dominação (democracia burguesa), quais as suas instituições fundamentais (propriedade privada), qual a sua situação atual (crise estrutural), qual a correlação de forças vigente (a crise capitalista coincide com crise a da alternativa socialista), quais os processos necessários para a superação dessa ordem (revolução socialista), qual o sujeito desse processo (a classe trabalhadora com todos os seus segmentos).

Ao invés desse debate complexo, empreende-se uma pretensiosamente audaciosa refundação filosófica do projeto emancipatório. Dentro dessa refundação, a própria “infraestrutura intelectual” dos movimentos que procuraram até hoje combater a ordem capitalista precisa ser reformulada, pois é preciso “questionar as bases sobre a qual se assentou a modernidade”, não apenas o capitalismo. Trata-se de questionar os valores que herdamos do Renascimento e do Iluminismo, mais do que apenas os valores impostos pelo capitalismo. O problema da humanidade não seria a apropriação privada da produção coletiva, realizada pelo capitalismo, mas o desrespeito à “Mãe Terra” por conta da pretensão cientificista e eurocêntrica de tudo conhecer para dominar e produzir além dos limites.



6.1 O deslocamento para a cultura



Eis como se anuncia essa refundação filosófica:

“O primeiro passo desta tarefa é profundamente filosófico: necessitamos renovar nossa visão da humanidade para situar as atividades humanas dentro do contexto mais amplo da Vida e da Mãe Terra. Como seres humanos, somos somente uma parte desta matriz interdependente que nos dá fonte de vida, nos integra e nos abre os horizontes de um destino comum planetário em relação indivisível, complementária e espiritual com os demais seres vivos. Cada ser, cada ecossistema, cada comunidade natural, espécie e outras entidades naturais, se definem por suas relações como parte integrante da Mãe Terra. Essa é a fonte de vida, alimento, ensinamento, de onde provém tudo o que necessitamos para um bem viver justo e equilibrado.” (capítulo 16)

Podemos concordar que é necessário repensar as atividades humanas numa escala planetária e histórica. Mas essa história é concreta e possui momentos determinados, como a sociedade de classes e o capitalismo. Vejamos como é compreendido o capitalismo dentro desse novo projeto filosófico:

“O capitalismo é mais que um modo de produção. É uma lógica social e política que se irradia por todo o corpo social. Sua lógica não só estrutura instituições e concentra poder, mas também está internalizado em nós. Atravessa os nossos corpos. Coloniza as nossas mentes. Ocupa a nossa terra. Emancipar-se dessa colonização e eliminar todas as formas de dominação é o objetivo a ser alcançado pelos movimentos progressistas. Isso requer questionar as bases sobre a qual se assentou a modernidade. Requer uma revolução mental que abale a infraestrutura intelectual vigente. Também temos que modificar a nós mesmos, já que as instituições e as lógicas mercantis se reproduzem nos indivíduos e são eles que mantêm essas estruturas funcionando.”(capítulo 2)

Todas essas afirmações são aparentemente irretocáveis. Mas, ainda que o capitalismo seja “mais que um modo de produção” ele continua sendo um modo de produção, que precisa ser combatido enquanto tal, ou seja, por meio de uma revolução política e econômica. Para evitar o problema da revolução política e econômica (expropriação da burguesia, destruição do Estado, ditadura do proletariado etc., ), o problema é deslocado do âmbito das relações de produção em que vige o capitalismo para o das esferas culturais. O inimigo da humanidade seria um certo viés cultural, o “eurocentrismo”, que desrespeita as culturas locais, coloniza os continentes, escraviza os negros, extermina os povos originários, submete as mulheres ao patriarcado, destrói a “Mãe Terra”, etc. Não se percebe que esse “eurocentrismo” não é a fonte dos males, mas a sua forma ideológica, a expressão de determinadas relações de produção muito precisas, as relações capitalistas. São essas relações que, para se desenvolver, exigem a opressão das culturas locais, dos negros, dos povos originários, das mulheres, etc., bem como a destruição do meio ambiente.

Mais grave do que isso, não só o problema é deslocado para a esfera das relações culturais, como a “solução cultural” que se dá para a colonização mental capitalista está radicalmente equivocada. Não negamos que a superação do capitalismo por relações emancipadas exigirá uma profunda reformulação cultural, muito pelo contrário. Será preciso sim repensar as relações políticas e econômicas, mas também as relações sociais em geral, relações entre os povos, entre as gerações, entre os gêneros, o direito, os costumes e comportamentos, a moral, a sexualidade, as concepções de ciência, arte, etc. Sem reformular todas essas esferas não se supera a alienação capitalista.



6.2 A questão da ciência



A questão é que a “revolução mental” proposta não avança na direção de realizar essa necessária desalienação e descolonização dos corpos e mentes, mas ao contrário. Ao invés de partir dos elementos críticos da cultura existente e de seu potencial de negação da sociedade capitalista, rejeita-se essa cultura como um todo, os elementos críticos inclusive. A herança cultural da sociedade em que surge o capitalismo, a sociedade européia, traz consigo, além dos valores liberais do individualismo burguês, os valores do humanismo e do iluminismo. Em certos momentos o documento parece oscilar entre uma condenação total desses valores e um resgate parcial deles. Vejamos o que diz sobre a ciência:

“A ciência é um padrão de conhecimento eurocêntrico que se alicerça no pressuposto de que se deve conhecer para se transformar e submeter, um padrão de conhecimento indelevelmente antropocêntrico e patriarcal, avesso à democracia e tecnocrático, porque fundado na separação entre os que conhecem e os que não conhecem? Ou a ciência é portadora de valores cognitivos úteis para compreendermos a Terra e sua dinâmica, valores que ainda carregam um potencial emancipatório e são importantes para o estabelecimento de uma sociedade sustentável?” (capítulo 5).

Aqui existe uma flagrante confusão entre a ciência como método cognitivo e a ciência como conjunto de atividades vinculadas ao processo produtivo capitalista. A ciência não está fundada numa separação entre os que conhecem e os que não conhecem. É a apropriação privada da ciência pelo capitalismo que impede que os conhecimentos científicos sejam apropriados coletivamente por todos. É a propriedade privada capitalista que cria a separação entre os que conhecem e os que não conhecem. Quanto ao método científico em si, é absolutamente contingente que um determinado cientista realize uma descoberta e naquele momento imediato “saiba mais que os outros”. Não está na natureza desse conhecimento que ele exclua todos os demais segmentos sociais. Isso está na natureza das relações sociais que vigoram na sociedade em que o cientista trabalha.

São essas relações que tem que ser rompidas para que o conjunto da sociedade se aproprie daquele conhecimento particular. Para que a própria ciência como método cognitivo se desenvolva, seria fundamental que todos os cientistas pudessem trabalhar em cooperação, partilhando livremente suas descobertas parciais, em direção a conhecimentos mais totalizantes. A cooperação é muito mais produtiva do que a competição capitalista hoje em vigor, com os cientistas assalariados pelas corporações e suas descobertas patenteadas e escondidas da sociedade. A ciência é uma das forças produtivas cujo desenvolvimento está bloqueado pelas relações capitalistas. Não se trata pois de rejeitar a ciência, mas de libertá-la das relações capitalistas.



6.3 Os “direitos da Mãe Terra”



Entretanto, o documento preparatório da Cúpula não oscila por muito tempo entre a condenação e o resgate da ciência, ele foge desse falso dilema realizando a negação dos valores em que o método científico está fundado. Nega-se o humanismo, ou seja, a capacidade do homem de conhecer o mundo e determinar seu destino sem depender de nenhuma outra força. O humanismo é rejeitado com o nome de “antropocentrismo”. O homem deve ser deslocado do centro do projeto emancipatório em favor do reconhecimento de direitos a uma outra entidade superior, a “Mãe Terra”. Os direitos humanos, na verdade, são incompatíveis com os direitos da “Mãe Terra”:

“Não se pode seguir falando em termos genéricos sobre os direitos humanos como se fossem um conjunto de conquistas plenamente compatíveis entre si, e cuja extensão/ampliação/defesa significassem necessariamente um avanço no caminho para a emancipação humana. Uma lógica de permanente expansão dos direitos humanos não é compatível com os direitos da Mãe Terra (se for efetivamente uma janela para outro padrão civilizatório, e não só uma consigna), é absolutamente necessário repensar de forma radical toda a tradição dos direitos humanos que, além do seu núcleo liberal, é profundamente antropocêntrica.” (capítulo 15)

Ora, a tradição dos direitos humanos possui um núcleo liberal, a idéia da emancipação como emancipação meramente política, no âmbito do reconhecimento da cidadania, que confere direitos iguais aos indivíduos entendidos como abstrações descoladas de relações de produção determinadas. Como se o comprador e o vendedor de força de trabalho fossem iguais apenas porque a lei os reconhece como iguais. A superação desse núcleo liberal consiste em ir além da emancipação política e lutar pela emancipação humana, não apenas no campo dos direitos dos cidadãos, mas no campo das relações materiais efetivas em que os homens reproduzem a sua existência. Exige portanto aprofundar o humanismo e não negar o “antropocentrismo”.

Contraditoriamente, a concepção expressa no documento preparatório da Cúpula quer exatamente reconhecer a “Mãe Terra” como sujeito de direito e reconhecer-lhe a cidadania política como mais uma personalidade abstrata, no mesmo plano da concepção liberal que aparentemente critica. Ao invés de tratar concretamente da relação produtiva do homem com a natureza, uma relação que deve ser reequilibrada (corrigindo os danos causados pela produção destrutiva capitalista), trata-se abstratamente da “Mãe Terra” como sujeito de direito dotado de uma personalidade própria.

“É por isso que expomos aos povos do mundo a revalorização dos conhecimentos, sabedorias e práticas ancestrais dos povos indígenas, afirmados na vivência de um bem estar enraizado no conceito de 'Bem Viver'. Da mesma forma, as economias devem estabelecer medidas de precaução e restrição para prevenir que as atividades humanas conduzam à extinção de espécies, à destruição de ecossistemas ou alteração dos ciclos ecológicos. Como corolário deve garantir que os danos causados por violações humanas dos direitos inerentes a Mãe Terra sejam expostos e que os responsáveis prestem contas para restaurar a integridade e a saúde da Mãe Terra.” (capítulo 16)



6.4 O humanismo em questão



De acordo com a concepção acima, é em respeito à “Mãe Terra” e sua saúde que se deve parar com a destruição do meio ambiente. Pede-se que o homem seja comedido em sua relação com a natureza, em nome de uma ética abstrata entre dois sujeitos de direito igualmente abstratos, o homem e a natureza. Mas o homem não é uma abstração, é um homem concreto, que vive numa situação histórica concreta, sob o império de relações de produção determinadas, as relações capitalistas, que não respeitam qualquer limite em sua expansão. Sem falar em termos concretos, tudo que se pode fazer é uma predicação moral para que o homem “respeite a natureza”. Mas qual é a medida desse respeito? Quantos milhões de toneladas de aço se pode extrair respeitosamente da “Mãe Terra” e quantos representam um desrespeito? Como fixar essa medida, em relação a qualquer recurso natural? Se fosse possível calcular essa medida, como fazer qualquer país respeitá-la? Como estabilizar uma medida aceitável de consumo de recursos naturais num planeta em que as condições de vida variam da miséria ao extremo luxo?

Só é possível responder às questões acima tendo como referência as necessidades do homem, e não da natureza. A relação responsável e equilibrada com a natureza é uma necessidade humana, mas que não pode ser satisfeita sob as atuais relações de produção. É o homem que deve ser o centro das reflexões e das propostas. O humanismo (que tem origem no Renascimento, avança no Iluminismo e desde o século XIX sobrevive no projeto socialista) reafirma a prerrogativa do homem de dispor da natureza para aumentar seu bem estar material. Nesse sentido, o humanismo é uma conquista histórica em relação a todos os modos de pensar religiosos, obscurantistas, supersticiosos, reacionários, que prescreviam limitações a essa prerrogativa humana. Uma conquista histórica à qual não podemos jamais renunciar! O que se trata de determinar é se o uso que se faz da natureza pode ser prolongado indefinidamente ou não. Não está implícito no humanismo que o uso da natureza seja feito de forma destrutiva. Isso é uma característica da produção capitalista.

Dentro das relações de produção capitalistas os produtos do trabalho humano têm a forma de mercadorias, com um duplo caráter de valor de uso e valor de troca. A condição das mercadorias de portadoras de um valor de uso está subordinada à sua função de realizar o valor de troca nelas contido, concretizando a reprodução ampliada do capital. Isso significa que o valor de troca tende a se impor sobre o valor de uso até sua quase completa anulação. As mercadorias deixam de ter relação com necessidades reais e passam a visar apenas a realização do lucro. Daí a fabricação constante de novas necessidades artificiais, bem como a obsolescência programada das mercadorias (produtos com tempo de vida útil cada vez mais curto, que precisam ser substituídos por novos produtos, e assim sucessivamente). O capital só pode existir em expansão permanente, daí sua necessidade de produzir e vender sempre cada vez mais mercadorias, mesmo que o valor de uso real de tais mercadorias seja reduzido ao mínimo. Durante um certo período histórico, o impulso do capitalismo para produzir sempre mais foi um avanço. Desde o século XIX, quando surge o projeto socialista, com uma proposta de controle social sobre as forças produtivas, o capitalismo é um retrocesso das forças produtivas humanas, que se tornam forças destrutivas.

Para completar o raciocínio em relação ao humanismo, a faculdade de dispor da natureza não significa necessariamente a sua destruição. Ao contrário, a emancipação do homem, que é o motor do humanismo, é inseparável da manutenção de condições que garantam a sua sobrevivência material. Ou seja, o humanismo pressupõe um intercâmbio com a natureza que possa se prolongar indefinidamente. Ou seja, só o humanismo pode garantir a preservação da natureza. Não se trata pois de rejeitar a centralidade do homem, em favor do culto à “Mãe Terra”, mas de reafirmar o humanismo. Mas que fique bem claro, trata-se do humanismo socialista.



6.5 A manipulação da sensibilidade ecológica



Voltando ao documento preparatório da Cúpula e sua prédica contra o “antropocentrismo”, reafirmamos que não é preciso descartar a ciência para deter a destruição capitalista da natureza, ao contrário. Ao invés de um balanço crítico da relação entre a ciência e o capitalismo, o documento prefere “jogar fora o bebê com a água do banho” e rejeitar a ciência como parte do bloco das relações capitalistas. Em seu lugar, enunciam-se como postulados outros princípios alternativos capazes de estruturar um intercâmbio mais equilibrado do homem com a natureza. Esses princípios são os do “Bem Viver”, expressos na forma de mandamentos éticos:

“Harmonia e equilíbrio entre todas as pessoas e com elas;

Complementaridade, solidariedade, e equidade;

Bem estar coletivo e satisfação das necessidades fundamentais de todas as pessoas em harmonia com a Mãe Terra;

Respeito aos direitos da Mãe Terra e aos Direitos Humanos;

Reconhecimento do ser humano pelo que é e não pelo que tem;

Eliminação de toda forma de colonialismo, imperialismo e intervencionismo;

Paz entre os Povos e com a Mãe Terra.” (capítulo 16)

Esses princípios foram enunciados na Conferência Mundial dos Povos sobre as Mudanças Climáticas e os Direitos da Mãe Terra organizada na Bolívia, em abril de 2010. A Bolívia é a sede do governo de Evo Morales, um dos integrantes da onda do nacionalismo burguês reciclado que contagiou a América do Sul no início da década passada. Esse nacionalismo burguês reciclado, que tem como base social os camponeses e povos originários, os trabalhadores mais pobres, as vítimas que mais sofrem com a exploração capitalista, é um projeto que na verdade não avança em nenhuma reforma significativa contra o capitalismo (por isso nem sequer merece ser chamado de reformista). Esse mesmo nacionalismo burguês que não rompe com o capitalismo, mas canta odes ao “socialismo do século XXI”, é o mesmo que reprime os povos originários em conflito contra a exploração mineira no Equador de Rafael Correa ou contra a abertura de estradas na mesma Bolívia de Evo Morales, que garante a implantação de indústrias de celulose na Argentina de Cristina Kirchner, que persegue dirigentes sindicais independentes na Venezuela de Chávez, entre outras façanhas...

Pois bem, assim como o Brasil de Dilma e do Código ruralista sedia uma Cúpula dos Povos, a Bolívia de Evo Morales também sediou a sua Conferência. Se a Rio+20 realiza uma “manipulação cínica e oportunista das crises ecológica e social” para avançar na “Economia Verde”, essas Cúpulas e Conferências dos Povos realizam uma manipulação sentimental da sensibilidade ecológica para mascarar alternativas políticas centristas e vazias de qualquer conteúdo anticapitalista. Como adorno dessa manipulação, tenta-se erigir a cosmovisão dos povos originários em alternativa filosófica ao projeto socialista no combate à ideologia capitalista.

A cosmovisão dos povos originários pode ter sentido progressivo ou conservador, assim como qualquer religião. Pode levar os indivíduos que nela acreditam a se colocar em luta ou colocá-los contra a luta. O catolicismo teve a Teologia da Libertação e hoje tem o reacionário Papa Ratzinger, para citar um exemplo. As aspirações por emancipação dos indivíduos, ainda que tenham raízes em sua situação material, podem ser expressas em linguagem religiosa (por vezes com muita poesia e força motivacional). Os indivíduos podem achar que estão construindo o “Reino de Deus na Terra” ou defendendo a “Mãe Terra”, mas estão enfrentando a dominação do capital. Por isso, a religião deve ser respeitada como questão de foro íntimo (até que se chegue a um mundo que não precisa da religião). Mas não será com sermões sobre a Mãe Terra que se vai convencer os executivos das corporações capitalistas a deixar de destruir a natureza para perseguir os seus lucros trimestrais...



7. Por uma economia vermelha dos trabalhadores



Conforme dissemos no ponto 5, não é legítimo questionar o projeto socialista sem realizar um balanço dos processos que tiveram o socialismo como referência, em especial a Revolução Russa. Esse balanço está ainda em aberto no movimento socialista. Não há hoje nenhum setor ou corrente do movimento socialista que possa reivindicar ter encontrado a resposta definitiva para os impasses que levaram às derrotas do movimento no século XX. O que temos hoje são apenas respostas parciais, nenhuma das quais adquiriu autoridade de resposta conclusiva. Isso porque essa resposta não será uma elaboração meramente teórica (pois para os marxistas a prática é o critério de verdade), mas um conjunto de métodos de ação capazes de superar aqueles impasses e construir um processo realmente emancipatório capaz de se colocar de fato como alternativa concreta à ordem estabelecida. Essa exigência da prática não dispensa os setores do movimento socialista de buscar elaborações teóricas que deem conta dos novos desafios (pois para os marxistas não há prática revolucionária sem teoria revolucionária). Os avanços da teoria devem caminhar paralelamente aos da prática, e vice-versa.

Assim, é preciso realizar de fato uma profunda auto-crítica e rearmamento teórico do movimento socialista para dar conta dos desafios práticos da realidade do século XXI. Entre esses desafios está inequivocamente a questão ambiental, pois o grau de degeneração imposto ao meio ambiente planetário pela produção destrutiva capitalista alcança uma proporção catastrófica. E o que é mais grave, as calamidades ambientais só podem ser solucionadas por iniciativas de porte global, já que os desequilíbrios afetam ecossistemas cuja constituição não respeita as fronteiras entre os Estados nacionais (como os rios, florestas, reservas de biodiversidade, etc.) ou se desdobram numa escala global (como os oceanos e a atmosfera). Os apelos contidos no documento preparatório da Cúpula dos Povos em relação a ética, justiça, solidariedade, etc., e outros valores abstratos, são uma tentativa ilusória de fugir da questão crucial da revolução mundial. A luta contra o capitalismo tem a forma de revoluções nacionais, mas o seu conteúdo é uma transformação mundial, que vai necessariamente transformar as relações do homem com a natureza.

Ou em outras palavras:

“A crise do capitalismo é uma crise que afeta a totalidade do modo de vida. A resposta da classe trabalhadora precisa também, além de defender as condições imediatas de vida, repensar a totalidade do processo de reprodução social. O atual padrão de consumo perdulário e destrutivo precisa ser substituído por uma forma racional de gestão dos recursos naturais e tecnológicos, que coloque a produção a serviço das necessidades humanas, e contemple inclusive a reversão dos danos ambientais provocados pelo capitalismo, a busca de fontes de energia renováveis em substituição aos combustíveis fósseis, e a garantia do fornecimento de uma alimentação saudável e produzida de forma sustentável para todos os seres humanos.” (resoluções internacionais da Conferência 2009 do Espaço Socialista)

Mais do que simplesmente atenuar os danos causados pelo capitalismo, é preciso sim repensar a lógica da produção de mercadorias. Ao invés de produtos fabricados com o objetivo de serem trocados no mercado para realizar valor de troca, precisamos de produtos fabricados com o objetivo de atender necessidades humanas. A mudança não é apenas quantitativa, ou seja “mais bens para todos”, como promete a propaganda enganosa da publicidade capitalista, mas “os bens de que realmente necessitamos”. Isso significa que:

“(...) o socialismo não pode ser uma realização dos sonhos de consumo do capitalismo pelo simples fato de que tal realização é materialmente inviável e ambientalmente insustentável. O socialismo não poderá dar a todos os seres humanos do planeta o padrão de consumo perdulário e destrutivo da classe média estadunidense, por exemplo, porque isso simplesmente esgotaria o globo terrestre em dois tempos. O socialismo pressupõe o emprego racional dos recursos, o que significa o contrário do desperdício irracional da abundância capitalista. É evidente que o socialismo procurará atender às necessidades materiais, extraindo recursos da natureza e transformando-a, mas o fará numa medida compatível com a capacidade do meio ambiente planetário de continuar fornecendo os recursos indispensáveis à vida da espécie humana numa escala de tempo infinita. O consumo de recursos como aço, petróleo, minérios, madeira, borracha, terras férteis, água, etc., não será feito na mesma quantidade e terá um caráter radicalmente diferente, pois não estará comprometido pelo desperdício individualista, pela poluição, etc. A própria tecnologia para manipulação dos recursos naturais, liberta das relações de propriedade burguesas e portanto muito mais avançada, tornará mais fácil o uso racional de tais recursos.

“(...) uma sociedade socialista irá necessariamente reformular a própria definição daquilo que se consideram 'os recursos indispensáveis à vida da espécie humana'. Isso porque essa sociedade os utilizará para desenvolver uma categoria diferente de objetos, e não mais os perdulários automóveis individuais e outras bugigangas multiplicadas irresponsavelmente pelo consumismo individualista burguês, os quais serão substituídos por bens e serviços de utilização coletiva. Uma sociedade socialista não vai apenas expropriar a indústria automobilística, precisará ir além e questionar o pressuposto da atividade desse ramo de produção, que é o de que cada ser humano do planeta precisa ter um automóvel. Ao invés disso, será preciso redirecionar as forças produtivas sociais para atender racionalmente as necessidades humanas, substituindo o automóvel pelo transporte coletivo. E assim sucessivamente, em todos os ramos de produção.” (“A luta pela cultura e a cultura pela luta”, Revista “Primavera Vermelha”, nº2, 2011)

A substituição de mercadorias de consumo individual por bens de uso coletivo requer uma substituição também da mentalidade e da relação que os indivíduos desenvolvem com os objetos que utilizam para viver. Essa mudança da mentalidade e das relações sociais só é possível por meio de uma transformação profunda que torne os indivíduos conscientes das suas possibilidades e também das suas responsabilidades. É a essa transformação que damos o nome de revolução. E essa revolução só é possível se partir de uma base social concreta que possa realizar os valores da coletividade e da solidariedade. Não temos dúvida em afirmar que essa base social é a classe trabalhadora, com toda a sua diversidade e também com sua oposição radical à lógica do capital.

Junho 2012
Daniel M. Delfino




A crise e a decomposição da "Europa Social"


Texto apresentado nos debates internos do Espaço Socialista



A Europa foi durante décadas o continente com o melhor nível de vida do planeta. O chamado “Estado do bem estar social” europeu foi fruto da política adotada ao final da II Guerra Mundial para reconstruir o capitalismo e evitar uma revolução socialista no continente. Foram feitas concessões aos trabalhadores para evitar que se organizassem para tomar o poder e impor suas reivindicações por meio da luta. Empregos praticamente vitalícios, altos salários, jornadas de 8 horas ou menos, seguro-desemprego, aposentadoria, saúde pública de qualidade, educação pública e universal garantida até a universidade, transporte público, moradia, etc. Durante décadas os trabalhadores europeus tiveram essas condições de vida como direitos praticamente naturais.

A erosão do “Estado do bem estar social” começou na década de 1970, por conta do próprio esgotamento do período de crescimento do pós-guerra. O capitalismo entra no período que chamamos de crise estrutural, quando não há mais fronteiras para expansão e não é mais possível fazer concessões. A “solução” é crescer artificialmente através do endividamento e da especulação financeira desenfreada e retomar as conquistas sociais concedidas aos trabalhadores no passado. No início da década de 1980 tornam-se hegemônicas nos países imperialistas as chamadas políticas neoliberais, que preveem um ataque direto à organização dos trabalhadores, leis anti-sindicais e anti-greve, retirada de direitos sociais e trabalhistas, privatização de empresas e serviços públicos, desregulamentação financeira, impulso às corporações. O capitalismo dá o salto para o seu período de mundialização.

O neoliberalismo enquanto receituário de política econômica não foi suficiente para relançar o crescimento da economia nos níveis do pós-guerra (o que aliás não seria jamais alcançado novamente) nem nos Estados Unidos nem na Europa, mas na década de 1990 entraram em cena duas ilusões ideológicas que tiveram importante resultado político para a manutenção do capitalismo europeu. A primeira delas foi a queda do muro de Berlim e dos Estados burocráticos (URSS e seus satélites) entre 1989 e 91, que foi propagandeada como o “fim do socialismo” (ainda que aqueles países não fossem socialistas) e vitória definitiva do capitalismo, sob a forma de “globalização”, fatos que tiveram impacto mundial contra as idéias socialistas e as lutas dos trabalhadores em geral. A segunda foi a transformação do Mercado Comum Europeu em União Européia (UE) com o tratado de Maastricht em 1992, que teve como resultado a implantação do euro, em 1999 (sob a forma de cédulas e moedas a partir de 2002).



A ilusão do euro



A entrada em vigor da UE e do euro serviram não só para dar novo fôlego ao capitalismo europeu, mas funcionaram também como sustentáculo para o discurso político de uma “Europa social” como contraposição ao capitalismo neoliberal “puro” e à “lei da selva” que vigora por exemplo nos Estados Unidos. No início do novo século a hegemonia política e econômica dos Estados Unidos estava sendo questionada por eventos como a quebra da bolsa de valores virtual (NASDAQ) em 2000 e os atentados de 11 de setembro de 2001. A Europa aparecia como um modelo alternativo de sociedade, com um capitalismo mais “humanizado”, e o euro aparecia então como a moeda que se candidatava para substituir o dólar como principal moeda mundial. Passou a ter destaque também o crescimento de países como China, Rússia e Índia. Tudo isso convergiu para o discurso de um mundo chamado “multipolar”.

Para utilizar a moeda comum européia os países teriam que se comprometer com certas taxas de câmbio no período de convergência entre as moedas, baixos índices de inflação, baixo déficit público (3% do PIB), baixa dívida pública (até 60% do PIB), entre outras condições. Utilizam hoje o euro gigantes como Alemanha, França, Itália e Espanha e países menores como Áustria, Bélgica, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Finlândia, Grécia, Irlanda, Luxemburgo, Malta, Países Baixos e Portugal. O euro é emitido pelo Banco Central Europeu (BCE), com sede em Frankfurt, na Alemanha. A UE tem sede em Bruxelas, na Bélgica, e compreende mais 10 países, dos quais alguns, como a Inglaterra, optaram por ficar fora do euro, e outros se candidatam a ingressar e “esperam na fila” até atingirem as condições. A UE fiscaliza o cumprimento das condições para participação no euro, além de impor outras medidas sobre os Estados nacionais para que adaptem suas legislações e instituições.



A continuidade do neoliberalismo



Além da implantação do euro, a UE criou medidas compensatórias que por algum tempo pareceram aliviar a pobreza e diminuir o abismo entre as grandes potências e os países ou regiões mais pobres do continente, como Irlanda, Portugal, Grécia e o sul da Itália. Isso fez parecer que ingressar no euro era um grande negócio. Mas entre as principais condições para ingresso no euro estão as mudanças nas legislações trabalhistas, que devem ser “flexibilizadas” para que os capitalistas europeus encontrem as mesmas condições em todos os países. A UE foi vendida aos europeus como um espaço de “livre circulação” de pessoas, mas quem encontra real liberdade de circulação é o capital. As empresas podem migrar dos países onde os salários são mais altos e os trabalhadores tem mais proteção para aqueles onde a mão de obra é mais barata, e ao mesmo tempo podem vender seus produtos em todo o continente. Começou assim uma “corrida” entre os governos para aprovar medidas anti-trabalhistas, que reduzissem o custo da mão de obra nos seus países, para atrair o investimento externo. Na prática, portanto, a UE não é um anteparo ao neoliberalismo, mas a forma da sua consolidação na Europa. A defesa do euro e da UE é na verdade a defesa do neoliberalismo.

Cabe destacar que essas medidas neoliberais foram aplicadas tanto pelos partidos conservadores como pelos partidos trabalhistas, socialistas e social-democratas que se reivindicam como “esquerda”. Esses partidos se revezam com os conservadores nos governos de toda a Europa aplicando as mesmas medidas, contando com a colaboração das centrais sindicais e entidades “oficiais” dos trabalhadores. Controlados direta ou indiretamente por burocratas desses partidos (ou dos antigos partidos comunistas reciclados), os sindicatos não apenas deixaram de encaminhar as lutas como são colaboradores ativos das medidas estatais e patronais. Não há controle da base sobre os dirigentes, que podem legitimar acordos lesivos aos trabalhadores e evitar a organização e a luta em defesa dos salários, direitos e condições de vida. Quando a insatisfação é muito grande, convocam-se greves de 24 horas ou paralisações limitadas, que têm o efeito de “desabafo” e válvula de escape para aliviar pressão que vem dos trabalhadores, mas não se transformam em lutas conseqüentes capazes de barrar os ataques.



A lei do mais forte



Foi justamente durante a gestão de Gerard Schroeder, do Partido Social-Democrata (SPD), entre 1998 e 2005, que a Alemanha realizou reformas no seu mercado de trabalho criando formas de contratação temporária e sem proteção social (que não aparecem nas estatísticas de desemprego), aumentando a margem de lucro das empresas alemãs. No espaço de “livre concorrência” da UE os vencedores foram naturalmente as empresas dos países mais fortes, como Alemanha e França, que passaram a ter acesso aos mercados dos países mais fracos. Antes do euro, esses países menores podiam simplesmente desvalorizar suas moedas, para estimular seus consumidores a comprar produtos nacionais e diminuir as importações. Com o euro, esses países perderam o controle sobre suas moedas, e os consumidores passaram a ter acesso a produtos de todo o continente, facilitado pelo crédito barato em moeda forte. Podem comprar de outros países e até de outros continentes, o que enfraquece as empresas locais.

Na lógica do capital, a concorrência significa sempre a incorporação dos capitais mais fracos pelos mais fortes, que se tornam ainda maiores. Na prática, a implantação do euro representou a anexação econômica dos países menores da Europa pelo mais forte deles. A Alemanha multiplicou por sete o seu saldo positivo no comércio com parceiros da zona euro desde a implantação da moeda única (dados do site Economia & Negócios, do portal Estado, 16/05/2012). Em momentos de crise, o desnível de poder entre os mais fortes e os mais fracos se torna ainda mais aparente. A crise econômica de 2008 encontrou consumidores e empresas da periferia européia altamente endividados, justamente no momento em que o crédito fácil desapareceu. Os governos intervieram assumindo as dívidas dos bancos e empresas, que por sua vez cortaram seus custos, demitindo em massa.



Os ataques aos trabalhadores



Os governos desses países (PIGS, ou seja, “porcos”, na sigla pejorativa em inglês para Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha), na tentativa de salvar bancos e empresas, viram sua dívida se multiplicar. O aumento explosivo do endividamento torna as dívidas impagáveis, num mecanismo que se auto-alimenta. Quanto mais aumenta a dívida, fica mais difícil conseguir novos empréstimos para pagar os antigos, e é preciso pagar juros mais altos em prazos mais curtos. Quanto mais altos ficam os juros e mais curtos os prazos, maior fica a dívida, e assim sucessivamente. Para pagar as dívidas contraídas com os pacotes bilionários lançados para salvar bancos e empresas, os governos lançam as chamadas “medidas de austeridade”, ou seja, cortam gastos sociais, como seguro-desemprego e aposentadorias, congelam os salários ou simplesmente demitem funcionários públicos, sucateiam os serviços públicos, elevam impostos, além de “flexibilizarem” a legislação trabalhista em geral, diminuindo a proteção aos trabalhadores para “fazer a economia crescer”. O resultado dessas medidas é naturalmente a continuação ou aprofundamento da recessão.

Entretanto, somente por meio de medidas de austeridade os países altamente endividados têm acesso a recursos de emergência para pagar dívidas de curto prazo e evitar o calote (“default”). A UE, sob liderança da Alemanha, exige que esses países se comprometam com ainda mais austeridade, ou seja, mais ataques aos trabalhadores, para ter direito aos pacotes de salvamento. O FMI, o BCE e a UE (a chamada “Troika”) lançaram um “Memorando” de ajuste para países endividados, em que seus governos têm que se comprometer com medidas duríssimas contra seus povos para ter acesso às centenas de bilhões de que necessitam para pagar suas dívidas. O detalhe é que a maior parte dessas dívidas foi contraída junto a bancos alemães e franceses, ou seja, dos dois países que controlam o FMI, o BCE e a UE. Isso significa que Alemanha e França estão impondo, sob a máscara das instituições européias, a degradação das condições de vida de milhões de pessoas nos demais países do continente, para garantir os lucros dos seus bancos.

Dentre os países europeus, a Grécia tem estado no centro das atenções devido não apenas ao volume de sua dívida e à dificuldade do seu governo em conseguir novos empréstimos e pacotes para a rolagem, mas especialmente devido à heróica resistência dos trabalhadores gregos contra as medidas de austeridade desde o início da crise. O país tem sido palco de colossais mobilizações dos trabalhadores, com greves gerais, ocupações de empresas e prédios, manifestações massivas, enfrentando uma duríssima repressão. Infelizmente, as principais organizações políticas da extrema esquerda grega, como SYRIZA (Coalização de Esquerda Radical), KKE (Partido Comunista), Esquerda Democrática, tem canalizado a rejeição popular ao “Memorando” da Troika para as eleições, que se decidem em meados de junho, e não para a luta organizada contra as instituições européias e o capitalismo.



O caso da Espanha



Depois dos pacotes de salvamento enviados à Grécia, Portugal e Irlanda, a Espanha, um dos gigantes da UE pela sua história, população (46 milhões de habitantes) e tamanho de sua economia (12º maior PIB do mundo), se tornou a "bola da vez" da crise na zona do euro. O país convive com uma taxa de desemprego de 24% no total da população economicamente ativa. Ou seja, praticamente um em cada quatro trabalhadores espanhóis está desempregado! Entre os jovens de 18 a 24 anos, essa taxa obre para assustadores 50%! Metade dos jovens espanhóis não tem emprego!(dados do Eurostat, escritório de estatísticas da UE, via google public-data).

A Espanha teve sua situação agravada pelo estouro da bolha imobiliária que movia a economia do país. Os bancos concediam empréstimos fáceis para a aquisição de imóveis, cujos preços subiam artificialmente, inflando por sua vez o patrimônio dos proprietários, que investiam na especulação, e assim sucessivamente. Com o estouro da bolha, "cerca de 160 mil famílias perderam seus imóveis e 700 mil construções estão embargadas por falta de pagamento (...) em 2012 houve um aumento de 35% no total de famílias que perdem sua casa diariamente em toda a Espanha" (notícia do site Terra, 16/03/2012).

Em meio ao agravamento da situação social dos trabalhadores, o governo do primeiro-ministro conservador Mariano Rajoy, do PP (Partido Popular), mostrou quais são suas prioridades ao empreender o resgate do conglomerado financeiro Bankia, um dos maiores do país, que tinha sua carteira recheada de títulos imobiliários impagáveis. O resgate subiu dos 7 bilhões de euros inicialmente previstos para mais de 20 bilhões. Imediatamente instalou-se a desconfiança em relação ao conjunto do sistema bancário espanhol, com sobressaltos que se estenderam às bolsas de valores da Europa e do mundo. Surgiram rumores de um “corralito”, ou seja, proibição da retirada de depósitos das contas bancárias, o que por si só levou os espanhóis a uma corrida aos bancos. Para estancar a ameaça de crise bancária, entrou em cena a Troika com um pacote de até 100 bilhões de euros para o sistema financeiro espanhol, aprovado no início de junho.

O pacote foi apresentado como algo diferente daquele que foi destinado aos demais PIGS, mas na prática significa uma renúncia do governo espanhol à regulação do seu sistema bancário, que passa a ser feito diretamente pelas instituições européias. Também se diz que o salvamento dos bancos não está condicionado a novas medidas de austeridade por parte do governo espanhol, o que é bastante difícil de acreditar... Os detalhes para que o governo espanhol tenha acesso ao dinheiro para resgatar os bancos, ou seja, quais as condições que serão impostas aos trabalhadores, ainda não foram revelados.



A reação dos trabalhadores



De qualquer forma, o governo espanhol já está comprometido com políticas pró-corporativas, a ponto de não se importar com o agravamento do desemprego. Foi lançado no início de 2012 uma reforma trabalhista que precariza ainda mais as relações de trabalho. "A nova lei reduz as indenizações por despedimento dos 45 para 33 dias por ano de trabalho, flexibiliza as contratações e os despedimentos e cria um novo contrato por tempo indeterminado para as PME’s, com menos de 50 funcionários, que terão benefícios fiscais se contratarem pessoas com menos de 30 anos (http://pt.euronews.com/2012/02/10/governo-espanhol-aprova-nova-lei-do-trabalho/)". Ou seja, para combater o desemprego, o governo facilita as demissões!

Em maio deste ano as principais centrais sindicais espanholas, a União Geral de Trabalhadores (UGT) e a Confederação Sindical de Comissões Operárias (CCOO) convocaram greves gerais de 24 horas por ocasião da votação das novais leis trabalhistas no parlamento. Evidentemente, esse método foi incapaz de barrar a aprovação das leis. Ao invés de convocar e organizar lutas reais, com greves por tempo indeterminado e iniciativas de ação direta como ocupação de empresas e prédios públicos, os dirigentes das principais centrais usaram as greves de 24 horas como meras válvulas de escape para o enorme descontentamento.

Uma luta real contra os ataques do governo poderia fazer com que os trabalhadores ultrapassassem a política dos dirigentes e se auto-organizassem, instalando comandos de base, elegendo representantes diretamente em assembléia, radicalizando a luta, enfrentando a repressão, polarizando a sociedade, avançando em sua consciência de classe. O objetivo dos dirigentes não era barrar de fato os ataques, mas ao contrário, impedir que as lutas fugissem ao seu controle e se manter no controle dos aparatos sindicais. As principais centrais espanholas não são mais instrumentos de luta dos trabalhadores, não passam de apêndices dos partidos da “esquerda” oficial, como o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) e Izquierda Unida, agentes fiéis do capitalismo espanhol. O PSOE governava a Espanha entre 2004 e 2011, com José Luiz Zapatero, que aplicava as mesmas políticas de austeridade aprofundadas pelo PP do atual governo Rajoy. Na Espanha se faz piadas sobre a existência de um partido único da burguesia, o “PPSOE”.



Em busca de uma alternativa



Em resposta à degeneração dos partidos e sindicatos e numa tentativa incipiente de desenvolver a luta contra a degradação das suas condições de vida, os jovens espanhóis se organizaram num movimento de protesto que ficou conhecido como “Os Indignados”. O movimento surgiu no início de 2011 em meio aos protestos estudantis, culminando numa massiva ocupação de praças públicas nas principais cidades, em 15 de maio (sendo por isso também chamado de “15M”), inspirando-se nas ocupações de praça da Primavera Árabe e servindo também de inspiração para movimentos semelhantes pelo mundo. O 15M se coloca abertamente contra os partidos oficiais, inclusive o PSOE, o qual é identificado como parte do governo dos bancos e grandes corporações. Entretanto, o movimento se limita a pedir uma “democracia real”, sem especificar e desenvolver o conteúdo e os métodos dessa “democracia” e sem avançar em direção à crítica do sistema social como um todo.

A “democracia” dos partidos oficiais e dos banqueiros está a serviço da perpetuação do sistema capitalista, em que os banqueiros e grandes capitalistas se beneficiam da exploração do trabalho da grande maioria da população, que vive em condições sociais cada vez piores. A luta por melhores condições de vida não tem como avançar sem medidas como:

- greve geral por tempo indeterminado no setor público e privado até o atendimento de todas as reivindicações;

- ocupação das empresas, universidades, prédios e praças públicas;

- comandos de base para organizar a luta (fora centrais pelegas!) e representantes eleitos em assembléia com mandatos revogáveis;

- não pagamento da dívida pública aos bancos europeus!

- destinação de todo o orçamento público em serviços de necessidade dos trabalhadores, como saúde, educação, moradia, transporte, etc.!

- cancelamento das dívidas dos trabalhadores com os bancos!

- devolução dos imóveis às famílias desalojadas!

- estatização do sistema financeiro sob controle dos trabalhadores!

- revogação da reforma da legislação trabalhista!

- redução da jornada sem redução do salários, até que haja emprego para todos!

Medidas como essas só podem ser impostas por lutas massivas e auto-organizadas dos trabalhadores, por fora dos partidos e entidades sindicais oficiais. Essas medidas vão se chocar diretamente com os interessas da burguesia espanhola e européia e contra o Estado que as representa. Por isso, vão exigir que a luta avance em direção à expropriação dos meios de produção por um poder dos trabalhadores, em substituição ao Estado burguês.

No momento os trabalhadores espanhóis e europeus em geral estão longe de ter a consciência da necessidade dessas medidas. O processo de lutas torna urgente e dramática a reconstrução da alternativa socialista. Esse é o desafio dos revolucionários, intervir nos processos de auto-organização da classe para levar a consciência da necessidade de uma ruptura com o capitalismo e da construção de uma sociedade socialista. É dessa disputa política e ideológica que depende a solução para a crise européia, uma solução que só pode partir da classe trabalhadora.









31.5.12

Primavera Árabe: Líbia, Síria e além


Texto apresentado como rascunho preparatório nos debates do Espaço Socialista para o fechamento de um artigo do coletivo sobre a Síria.


Um dos elementos centrais da nova situação política mundial iniciada em 2011 é a chamada “Primavera Árabe”, o gigantesco levantamento dos povos do Oriente Médio e norte da África.

Os ideólogos e a imprensa burguesa interpretam esses acontecimentos como estando motivados por uma luta pela “democracia”, como se fossem uma reedição da redemocratização dos países latino-americanos nos anos 1980, ou da queda do bloco soviético nos anos 1990, como se todos os conflitos possíveis no mundo fossem determinados pela disjuntiva “democracia X ditadura”. Com essa posição, o imperialismo estadunidense e europeu quis cinicamente passar a imagem de que estava apoiando a luta dos povos por “democracia”, quando na verdade estiveram durante décadas apoiando os mesmos ditadores que agora estão sendo derrubados.

Com uma posição anti-imperialista e de denúncia da farsa da “democracia”, posição que no geral é correta, existem correntes de esquerda que interpretam a Primavera Árabe de modo negativo ou com bastante ressalvas. Correntes chavistas, castristas ou stalinistas reciclados tendem a tratar esse movimento como se não tivesse nada de autêntico, como se fosse desde o começo uma armação do próprio imperialismo, ou mesmo como uma imensa conspiração via “facebook” para colocar milhões de jovens manipulados nas ruas. Como não acreditam no potencial desse movimento, colocam-se em alguns casos contra ele, como no caso da Líbia, em que apoiaram Kadafi contra os rebeldes.

Maio 2012
Daniel M. Delfino



O caso da Líbia



Essas correntes cometem um erro teórico elementar, o de considerarem que algum tipo de sujeito social que não a classe trabalhadora, ou seja, líderes nacionalistas, militares, burocratas, etc., podem de algum modo substituir o proletariado na tarefa da revolução e da transição ao socialismo. Assim, apóiam essas lideranças não-operárias nem socialistas, como se seus governos, mesmo os mais ditatoriais e corruptos, pudessem ser de algum modo um ponto de apoio para os trabalhadores. Partindo desse erro, apoiaram Kadafi, com base em seu limitado e distante passado anti-imperialista, apesar do fato de que há décadas ele já tinha boas relações com o imperialismo europeu e há tempos já não era mais sequer listado como parte do “eixo do mal”. Para justificar esse apoio, passaram a desconsiderar sumariamente qualquer sinal de independência e auto-organização nas milícias que combateram o ditador líbio, enxergando apenas os vínculos do governo fantoche líbio do CNT com o imperialismo e os bombardeios da OTAN.

Para ser preciso, defendemos a vitória do processo que resultou na queda de Kadafi, pelo avanço histórico que representou, mesmo com os sérios limites que teve, mas somos contra a intervenção do imperialismo, contra os bombardeios da OTAN e contra o governo fantoche do CNT. Se figuras como Kadafi não são um ponto de apoio para a luta dos trabalhadores, menos ainda o são o CNT, a OTAN, e o conjunto do imperialismo. A questão é que as milícias líbias não eram agentes diretos do imperialismo, sua composição era heterogênea, continha elementos reais de auto-organização e não estavam subordinadas ao CNT. Sua vitória representava a continuidade do processo de lutas em curso no país e na região, mesmo com sérias distorções.



A questão da subjetividade



A guerra civil na Líbia não avançou para uma revolução, as milícias gradualmente se desmobilizaram e o CNT segue vendendo o petróleo líbio. Entretanto, como no conjunto dos países sacudidos pela Primavera Árabe, as condições para a dominação imperialista já não são mais as mesmas. Os povos árabes adquiriram um senso de independência, organização, autonomia, confiança nas próprias forças que somente os grandes acontecimentos históricos conferem, quando alguns meses de luta produzem avanços na consciência que as décadas de estagnação precedentes não presenciaram.

Por outro lado, isso não pode ser confundido com um avanço linear e direto rumo a uma revolução socialista, erro simetricamente oposto cometido por outras correntes da esquerda. No afã de enxergar uma revolução socialista em qualquer luta social, cometem também o erro de ignorar a ausência do sujeito da revolução, a classe operária, e de organizações, programas e consciência socialistas envolvidos no processo, como se a revolução pudesse surgir diretamente de um confronto puramente objetivo com as forças da burguesia e do imperialismo. Não se pode identificar imediatamente toda e qualquer luta social com uma luta política contra o capitalismo. As revoluções socialistas não podem surgir sem um sujeito social determinado, e sem que esse sujeito tenha um grau mínimo de consciência das tarefas históricas. Não foi esse o caso da Líbia e nem é também o da Síria, que ocupa agora os holofotes.



A situação na Síria



Durante meses o povo Sírio se levantou contra o governo de Assad, seguindo o exemplo de seus irmãos em vários países da região. Assim como Kadafi, o governo sírio partiu para a repressão militar, abrindo guerra contra setores de seu próprio povo. Assim como na Líbia, o imperialismo passou a procurar formas de capitalizar para si a possível queda do governo Assad, inimigo de Israel, com quem tem conflitos de fronteira (ver o filme “A noiva síria”), e tido como aliado dos palestinos no Líbano e do Irã, o verdadeiro alvo. Por outro lado, Assad tem um apoio mais incisivo da Rússia e da China, o que torna uma intervenção estadunidense direta muito mais difícil.

Ao invés de uma guerra civil que polarize amplo setores da população a favor e contra o governante, surge no horizonte um possível cenário de decomposição “ao estilo Iraque”, com atentados terroristas desencadeando um círculo vicioso de violência sectária, num país em que convivem cristãos e muçulmanos de diferentes denominações. Facções armadas pelos Estados Unidos (via Arábia Saudita) combateriam um governo que recebe suprimentos militares da Rússia e da China. Nesse cenário reafirmamos as seguintes posições:

- somos contra a intervenção do imperialismo estadunidense e europeu na Síria (e em qualquer país), seja sob o manto da OTAN, ou da ONU, sob qualquer pretexto humanitário ou democrático;

- não reconhecemos o governo Assad como um “combatente anti-imperialista”, nem como um apoiador conseqüente da causa palestina contra Israel, nem muito menos como um governo favorável aos trabalhadores em seu país;

- não reconhecemos a Rússia e a China como um suposto “campo progressista” contra as pretensões estadunidenses e européias; trata-se de potências que perseguem seus próprios interesses com a mesma violência e pragmatismo que seus rivais ocasionais no ocidente, e que igualmente exploram e oprimem os trabalhadores em seus próprios territórios e regiões sob seu controle;

- somos contra a divisão do povo sírio entre cristãos e muçulmanos, xiitas e sunitas, contra a violência sectária e o terrorismo indiscriminado como método de luta;

- somos a favor da luta dos trabalhadores sírios, baseados em suas próprias organizações, com independência em relação ao governo Assad e em oposição a ele, e também com independência em relação ao imperialismo e contra ele;



Contra a crise societal, reconstruir a alternativa socialista



A organização independente dos trabalhadores, a única saída para os impasses da Síria e de outros países árabes em que a Primavera ficou pela metade, é infelizmente a que parece mais frágil e ausente nesse momento. Entretanto, é a única alternativa em que os revolucionários socialistas podem apostar.

Isso porque a Primavera Árabe e outros movimentos que a acompanham pelo mundo, ao contrário do discurso burguês, não são produtos de lutas pela “democracia”. São resultados da crise estrutural do capital em andamento, a qual a partir de 2008 entrou numa fase de crise societal, expondo as debilidades do sistema em suas múltiplas dimensões, não apenas econômicas, mas políticas, sociais, ambientais, energéticas, etc. Longe de ter se encerrado, o movimento lançado pela Primavera Árabe está apenas em seu início.

Os países árabes apresentam uma enorme porcentagem de jovens na sua população. Destes, uma enorme porcentagem está desempregada. A saída tradicional para jovens do norte da África, Oriente Médio e outras regiões antigamente colonizadas era emigrar para a Europa, onde ocupavam os empregos mais subalternos, mal pagos e precarizados. Com a persistência da crise e o baixo crescimento na Europa, essa porta se fechou. “Aprisionados” em seus países, tiveram que conviver também com a alta dos preços dos alimentos, com picos que se sucedem desde 2008. Nesses países, governantes se perpetuavam no poder há décadas, entregando as riquezas ao imperialismo, locupletando-se na corrupção, reprimindo ferozmente qualquer tipo de oposição.

Foram essas condições sociais muito concretas que deram origem à Primavera Árabe, e não algum vago desejo por “democracia”. Essas graves condições sociais continuam sem solução, assim como a crise do capital. A mera troca de governantes, com mais violência, como na Líbia, ou menos, como no Egito e na Tunísia, não vai melhorar essas condições. Esse aprendizado logo será feito pelos povos árabes, que já aprenderam o poder da mobilização e da ação direta. Abre-se um campo mais fértil para a ação das organizações socialistas revolucionárias, para a propaganda e agitação do socialismo. Começam a se criar condições para que a crise da alternativa socialista que marcou as últimas décadas possa vir a ser superada.