31.5.12

Primavera Árabe: Líbia, Síria e além


Texto apresentado como rascunho preparatório nos debates do Espaço Socialista para o fechamento de um artigo do coletivo sobre a Síria.


Um dos elementos centrais da nova situação política mundial iniciada em 2011 é a chamada “Primavera Árabe”, o gigantesco levantamento dos povos do Oriente Médio e norte da África.

Os ideólogos e a imprensa burguesa interpretam esses acontecimentos como estando motivados por uma luta pela “democracia”, como se fossem uma reedição da redemocratização dos países latino-americanos nos anos 1980, ou da queda do bloco soviético nos anos 1990, como se todos os conflitos possíveis no mundo fossem determinados pela disjuntiva “democracia X ditadura”. Com essa posição, o imperialismo estadunidense e europeu quis cinicamente passar a imagem de que estava apoiando a luta dos povos por “democracia”, quando na verdade estiveram durante décadas apoiando os mesmos ditadores que agora estão sendo derrubados.

Com uma posição anti-imperialista e de denúncia da farsa da “democracia”, posição que no geral é correta, existem correntes de esquerda que interpretam a Primavera Árabe de modo negativo ou com bastante ressalvas. Correntes chavistas, castristas ou stalinistas reciclados tendem a tratar esse movimento como se não tivesse nada de autêntico, como se fosse desde o começo uma armação do próprio imperialismo, ou mesmo como uma imensa conspiração via “facebook” para colocar milhões de jovens manipulados nas ruas. Como não acreditam no potencial desse movimento, colocam-se em alguns casos contra ele, como no caso da Líbia, em que apoiaram Kadafi contra os rebeldes.

Maio 2012
Daniel M. Delfino



O caso da Líbia



Essas correntes cometem um erro teórico elementar, o de considerarem que algum tipo de sujeito social que não a classe trabalhadora, ou seja, líderes nacionalistas, militares, burocratas, etc., podem de algum modo substituir o proletariado na tarefa da revolução e da transição ao socialismo. Assim, apóiam essas lideranças não-operárias nem socialistas, como se seus governos, mesmo os mais ditatoriais e corruptos, pudessem ser de algum modo um ponto de apoio para os trabalhadores. Partindo desse erro, apoiaram Kadafi, com base em seu limitado e distante passado anti-imperialista, apesar do fato de que há décadas ele já tinha boas relações com o imperialismo europeu e há tempos já não era mais sequer listado como parte do “eixo do mal”. Para justificar esse apoio, passaram a desconsiderar sumariamente qualquer sinal de independência e auto-organização nas milícias que combateram o ditador líbio, enxergando apenas os vínculos do governo fantoche líbio do CNT com o imperialismo e os bombardeios da OTAN.

Para ser preciso, defendemos a vitória do processo que resultou na queda de Kadafi, pelo avanço histórico que representou, mesmo com os sérios limites que teve, mas somos contra a intervenção do imperialismo, contra os bombardeios da OTAN e contra o governo fantoche do CNT. Se figuras como Kadafi não são um ponto de apoio para a luta dos trabalhadores, menos ainda o são o CNT, a OTAN, e o conjunto do imperialismo. A questão é que as milícias líbias não eram agentes diretos do imperialismo, sua composição era heterogênea, continha elementos reais de auto-organização e não estavam subordinadas ao CNT. Sua vitória representava a continuidade do processo de lutas em curso no país e na região, mesmo com sérias distorções.



A questão da subjetividade



A guerra civil na Líbia não avançou para uma revolução, as milícias gradualmente se desmobilizaram e o CNT segue vendendo o petróleo líbio. Entretanto, como no conjunto dos países sacudidos pela Primavera Árabe, as condições para a dominação imperialista já não são mais as mesmas. Os povos árabes adquiriram um senso de independência, organização, autonomia, confiança nas próprias forças que somente os grandes acontecimentos históricos conferem, quando alguns meses de luta produzem avanços na consciência que as décadas de estagnação precedentes não presenciaram.

Por outro lado, isso não pode ser confundido com um avanço linear e direto rumo a uma revolução socialista, erro simetricamente oposto cometido por outras correntes da esquerda. No afã de enxergar uma revolução socialista em qualquer luta social, cometem também o erro de ignorar a ausência do sujeito da revolução, a classe operária, e de organizações, programas e consciência socialistas envolvidos no processo, como se a revolução pudesse surgir diretamente de um confronto puramente objetivo com as forças da burguesia e do imperialismo. Não se pode identificar imediatamente toda e qualquer luta social com uma luta política contra o capitalismo. As revoluções socialistas não podem surgir sem um sujeito social determinado, e sem que esse sujeito tenha um grau mínimo de consciência das tarefas históricas. Não foi esse o caso da Líbia e nem é também o da Síria, que ocupa agora os holofotes.



A situação na Síria



Durante meses o povo Sírio se levantou contra o governo de Assad, seguindo o exemplo de seus irmãos em vários países da região. Assim como Kadafi, o governo sírio partiu para a repressão militar, abrindo guerra contra setores de seu próprio povo. Assim como na Líbia, o imperialismo passou a procurar formas de capitalizar para si a possível queda do governo Assad, inimigo de Israel, com quem tem conflitos de fronteira (ver o filme “A noiva síria”), e tido como aliado dos palestinos no Líbano e do Irã, o verdadeiro alvo. Por outro lado, Assad tem um apoio mais incisivo da Rússia e da China, o que torna uma intervenção estadunidense direta muito mais difícil.

Ao invés de uma guerra civil que polarize amplo setores da população a favor e contra o governante, surge no horizonte um possível cenário de decomposição “ao estilo Iraque”, com atentados terroristas desencadeando um círculo vicioso de violência sectária, num país em que convivem cristãos e muçulmanos de diferentes denominações. Facções armadas pelos Estados Unidos (via Arábia Saudita) combateriam um governo que recebe suprimentos militares da Rússia e da China. Nesse cenário reafirmamos as seguintes posições:

- somos contra a intervenção do imperialismo estadunidense e europeu na Síria (e em qualquer país), seja sob o manto da OTAN, ou da ONU, sob qualquer pretexto humanitário ou democrático;

- não reconhecemos o governo Assad como um “combatente anti-imperialista”, nem como um apoiador conseqüente da causa palestina contra Israel, nem muito menos como um governo favorável aos trabalhadores em seu país;

- não reconhecemos a Rússia e a China como um suposto “campo progressista” contra as pretensões estadunidenses e européias; trata-se de potências que perseguem seus próprios interesses com a mesma violência e pragmatismo que seus rivais ocasionais no ocidente, e que igualmente exploram e oprimem os trabalhadores em seus próprios territórios e regiões sob seu controle;

- somos contra a divisão do povo sírio entre cristãos e muçulmanos, xiitas e sunitas, contra a violência sectária e o terrorismo indiscriminado como método de luta;

- somos a favor da luta dos trabalhadores sírios, baseados em suas próprias organizações, com independência em relação ao governo Assad e em oposição a ele, e também com independência em relação ao imperialismo e contra ele;



Contra a crise societal, reconstruir a alternativa socialista



A organização independente dos trabalhadores, a única saída para os impasses da Síria e de outros países árabes em que a Primavera ficou pela metade, é infelizmente a que parece mais frágil e ausente nesse momento. Entretanto, é a única alternativa em que os revolucionários socialistas podem apostar.

Isso porque a Primavera Árabe e outros movimentos que a acompanham pelo mundo, ao contrário do discurso burguês, não são produtos de lutas pela “democracia”. São resultados da crise estrutural do capital em andamento, a qual a partir de 2008 entrou numa fase de crise societal, expondo as debilidades do sistema em suas múltiplas dimensões, não apenas econômicas, mas políticas, sociais, ambientais, energéticas, etc. Longe de ter se encerrado, o movimento lançado pela Primavera Árabe está apenas em seu início.

Os países árabes apresentam uma enorme porcentagem de jovens na sua população. Destes, uma enorme porcentagem está desempregada. A saída tradicional para jovens do norte da África, Oriente Médio e outras regiões antigamente colonizadas era emigrar para a Europa, onde ocupavam os empregos mais subalternos, mal pagos e precarizados. Com a persistência da crise e o baixo crescimento na Europa, essa porta se fechou. “Aprisionados” em seus países, tiveram que conviver também com a alta dos preços dos alimentos, com picos que se sucedem desde 2008. Nesses países, governantes se perpetuavam no poder há décadas, entregando as riquezas ao imperialismo, locupletando-se na corrupção, reprimindo ferozmente qualquer tipo de oposição.

Foram essas condições sociais muito concretas que deram origem à Primavera Árabe, e não algum vago desejo por “democracia”. Essas graves condições sociais continuam sem solução, assim como a crise do capital. A mera troca de governantes, com mais violência, como na Líbia, ou menos, como no Egito e na Tunísia, não vai melhorar essas condições. Esse aprendizado logo será feito pelos povos árabes, que já aprenderam o poder da mobilização e da ação direta. Abre-se um campo mais fértil para a ação das organizações socialistas revolucionárias, para a propaganda e agitação do socialismo. Começam a se criar condições para que a crise da alternativa socialista que marcou as últimas décadas possa vir a ser superada.