7.11.15

A questão não é apenas ser contra o PT e contra a oposição (PSDB, PMDB, Veja, etc.), mas ser a favor do que?




A insatisfação com o governo Dilma é cada vez maior entre os trabalhadores. As razões concretas são a alta dos preços que mais pesam para o trabalhador (alimentos, aluguéis, conta de luz, gasolina), as demissões e a ameaça de desemprego crescente, os ataques contra os direitos (PIS, seguro desemprego, pensões), a lei da terceirização (que mesmo não sendo de autoria do PT, entra no mesmo pacote porque se percebe claramente que o governo não fez nada para detê-la), o endividamento, o arrocho salarial, os serviços públicos que continuam precários. Tudo isso foi agravado pela sensação de traição das promessas da campanha eleitoral de 2014 (desde o anúncio do ministério, literalmente loteado entre os segmentos da classe patronal) e pela continuidade dos escândalos de corrupção envolvendo o PT.
Aproveitando-se disso, o movimento pelo impeachment de Dilma ressurge com força, através de manifestações marcadas para o dia 16/08. O PSDB está agora oficialmente convocando a população a se manifestar pela saída de Dilma (depois que se fechou a disputa entre os seus caciques para escolher o candidato à sucessão, na figura de Aécio). O Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do PMDB, está manobrando para viabilizar a votação do impeachment no Congresso. A grande imprensa está há meses em campanha permanente contra o governo, bombardeando a população apenas com as denúncias de corrupção que envolvem o PT (poupando os demais partidos) e as más notícias da situação da economia. Grupos bancados por interesses estadunidenses, como “revoltados on line”, “vem pra rua”, “movimento Brasil livre” etc., também estão convocando para o dia 16.
É certo que o volume da convocação deve diminuir bastante, depois que a FIESP, FIRJAN e a Globo emitiram notas e editoriais em favor da “governabilidade”, o que para bom entendedor significa: “a tentativa de derrubar Dilma e a luta do PT para defender seus cargos podem causar meses de confusão e instabilidade no país, que seriam ruins para os negócios. Não queremos isso agora. Portanto, vamos parar com esse movimento por enquanto, deixar o PT aplicar o ajuste, atrair o ódio dos eleitores por mais alguns anos, e trocar de governo ordenadamente em 2018.” A “confusão” que os patrões temem é o aumento da mobilização dos trabalhadores.

Nem dia 16...
Ainda que esses setores importantes da burguesia brasileira estejam dando seu recado, as manifestações devem ocorrer, e o que é pior, dessa vez, é possível que uma quantidade numericamente significativa de trabalhadores compareça a essas manifestações. Evidentemente, mesmo que se confirme uma presença considerável de trabalhadores, seria um erro participar desses atos. Os trabalhadores que estiverem presentes, dispersos e sem organização, não vão mudar o caráter do ato, que é claramente de direita. O rumo político desses atos não está em disputa, não pode ser revertido em direção à esquerda. O processo que está por trás dos atos do dia 16 não favorece os interesses da nossa classe. Trata-se de uma disputa entre dois blocos burgueses, pró-patronais e pró-capitalistas. A pior derrota dos trabalhadores seria tomar partido de algum desses blocos, ao invés de desenvolver uma política independente.
No novo governo que hipoteticamente surgiria desse movimento, a mesma situação de deterioração da economia e os ataques aos trabalhadores continuariam. Os problemas da economia não são resultado apenas da gestão do Estado pelo PT, mas de uma crise profunda do capitalismo, que em breve deve se manifestar mais uma vez com toda sua virulência em escala mundial, piorando ainda mais a situação do nosso país. Diante dessas crises, os gestores do capitalismo não têm outra escolha além de atacar os salários, direitos e condições de vida dos trabalhadores, para tentar salvar os lucros dos capitalistas. Isso está acontecendo no mundo inteiro, mesmo em países com governos ditos de “esquerda”, como a Grécia com o Syriza, que foi eleito para acabar com a austeridade, mas vai aplicá-la a ferro e fogo. É o que o PT está fazendo, e o que os seus opositores vão fazer. Não há saída para a crise, do ponto de vista dos capitalistas, a não ser atacar os trabalhadores, e do ponto de vista dos trabalhadores, a não ser uma saída anticapitalista.

...nem dia 20
Isso quer dizer, portanto, que também não se deve defender o governo do PT. No dia 20/08, os aparatos dos movimentos sociais dirigidos direta ou indiretamente pelo PT, como CUT, MST e MTST, entre outros estão também convocando manifestações em defesa da “democracia” e contra o “golpe”. Essas manifestações também podem atrair um número importante de trabalhadores, e inclusive de ativistas conscientes, preocupados com a ameaça da direita que está presente na ofensiva pelo impeachment. As bancadas do agronegócio, da repressão policial e do fundamentalismo neopentecostal, chamadas de “BBB” (boi, bala e bíblia), que formaram uma espécie de bloco no Congresso e tomaram a iniciativa política no país, representam os interesses mais reacionários e estão aprovando todos os projetos da sua pauta (terceirização, redução da maioridade penal, lei antiterrorismo). O seu avanço faz com que se sintam encorajados a ponto de querer derrubar a presidente.
Entretanto, ainda assim seria um erro reforçar as manifestações governistas. A luta contra a ameaça dessa ala da direita deve ser travada de maneira completamente independente do PT. Mesmo porque, o PT é uma outra ala dessa mesma direita. É sempre preciso insistir no significado correto das palavras. “Direita” significa defesa da ordem social existente, ou seja, o capitalismo, e “esquerda” significa mudança da ordem social, portanto fim do capitalismo. É por isso que nem o Syriza na Grécia, nem o PT no Brasil são de esquerda. Ambos tentam se acomodar às margens de manobra disponíveis para a gestão do capitalismo. Como essas margens estão se estreitando devido à crise estrutural do capital, o seu caráter de defesa do capitalismo, do lucro, dos interesses da classe dominante, da exploração e da opressão, acaba vindo à tona.
O governo do PT segue sendo um governo burguês, oposto aos trabalhadores, que busca de todas as formas atender os interesses da classe dominante. Quanto mais se deteriora a situação da economia e os empresários vêem seus lucros ameaçados, mais o PT se apressa a atender seus interesses, encaminhando medidas como o ajuste fiscal, cortes de verbas, incentivos para setores específicos, a lei que permite reduzir salários, etc. Ao mesmo tempo, os aparatos dirigidos pelo PT impedem que as lutas em defesa dos salários, direitos e condições de vida dos trabalhadores se desenvolvam. As empresas demitem, rebaixam salários, terceirizam, desrespeitam os direitos trabalhistas, sem que os sindicatos encaminhem as lutas. Não há mais organização nos locais de trabalho, não há mais democracia nas assembleias, os sindicatos e demais organizações estão burocratizados.
De maneira oportunista, o PT usa a ameaça da “direita” e do “golpe” para blindar Dilma, e impedir que se desenvolvam críticas ao governo. Enquanto a classe trabalhadora se apresenta indecisa e dividida entre os atos do dia 16 e do dia 20, o PT já escolheu de que lado vai ficar. Ao invés de romper com a burguesia e colocar as organizações sob sua direção a serviço da luta e da mobilização, o PT aprofundou sua aliança com o grande capital nacional, através do loteamento do ministério, da política econômica de Joaquim Levy, do ajuste fiscal e outras medidas. Essa opção não é recente, ela já estava traçada desde o momento em que o partido optou por administrar o capitalismo brasileiro.
Na verdade, desde muito antes de chegar ao governo com Lula em 2003, o PT já tinha se transformado no seu oposto. Já não era mais um partido de trabalhadores, um partido de classe, um partido de luta de classes, mas um partido eleitoral. A CUT já não praticava mais o sindicalismo combativo, mas um sindicalismo de conciliação de classes, um sindicalismo “cidadão”, sindicalismo “de resultado” (slogan da concorrente, a Força Sindical), que priorizava as negociações, as câmaras setoriais, etc. Desde aquele momento, o PT se afastou da sua antiga base social, se afastou da sua história, renegou sua trajetória de luta, desfez o acúmulo de politização. É tarde demais para que o partido queira se apresentar como representante da esquerda contra a ofensiva da direita. A direita “golpista” é uma cobra que o próprio PT agasalhou no seu peito. Agora, no momento em que o PT mais precisa de uma base social para enfrentar o ataque da bancada “BBB”, ela não está mais presente.

Construir nas lutas uma alternativa
Entretanto, a dramaticidade da situação social reside em que neste momento a classe trabalhadora também precisa de uma nova referência. Dissemos que seria um erro estar nas manifestações do dia 16 contra o PT, mas também é um erro estar no dia 20 a favor do PT. O que fazer então? Há alguns que dizem que não tomar partido de um bloco ou de outro é “abstencionismo” ou ficar “em cima do muro”, ou “perder o bonde da história”, ou ainda, “ser conivente com o golpe”, etc. Entretanto, insistimos em que é necessário encontrar uma saída classista para a situação, e não capitular a nenhum dos dois blocos burgueses em disputa.
A única saída está nas lutas concretas da classe trabalhadora, contra a crise capitalista e todos os seus sintomas. É preciso combater os ajustes aplicados pelo PT, e é preciso derrubar a pauta reacionária da bancada BBB (proibição dos professores falarem sobre política, estatuto da família, transferência da demarcação das terras indígenas e quilombolas para o Congresso – a lista de abominações parece não ter fim). Quando dissemos que é preciso encontrar uma saída classista, isso não é uma pura declaração de princípios, de quem não quer se comprometer ou está se “abstendo” da luta de classes. Muito pelo contrário, significa um compromisso muito concreto com as lutas e as demandas dos trabalhadores. Existe uma base material muito concreta para uma luta independente dos dois blocos burgueses que disputam os rumos do país.
A classe trabalhadora brasileira não está parada simplesmente assistindo aos ataques que lhe são disparados de todos os lados. O número de lutas e greves no país tem aumentado de maneira sustentada. Entre 2004 e 2007 o DIEESE registra uma média de 300 greves por ano. A partir de 2008 esse número começa a aumentar. Tivemos 518 greves em 2009, 446 greves em 2010, 554 em 2011 e 873 em 2012. A partir de 2013, não é mais possível encontrar dados sobre o número de greves no DIEESE (?). As principais centrais sindicais também não informam esse número. 2013 foi o ano das chamadas jornadas de junho, em que a insatisfação com a situação do país motivou protestos de todas as camadas sociais, e inclusive, é claro, muitas greves. Em 2014 tivemos a emblemática greve dos garis no Rio e os protestos contra a Copa. Não há razões para acreditar que as lutas tenham diminuído no país.
Nos próximos meses, entre setembro e outubro, temos as datas bases de importantes categorias nacionais, como bancários, metalúrgicos, funcionários dos Correios e petroleiros. Isso sem falar na greve dos funcionários das universidades federais e outros segmentos do funcionalismo, em andamento há várias semanas. Essas campanhas vão acontecer em um país em situação de crise econômica e política, com uma grave deterioração nas condições de vida dos trabalhadores, e muitos ataques em andamento (terceirização, lei de redução dos salários, demissões). A luta contra a carestia e o arrocho salarial, contra as demissões e contra a terceirização diz respeito muito diretamente a cada uma dessas categorias, e também aos demais trabalhadores. O papel da esquerda é ter uma intervenção política nessas campanhas, fazendo com que as diversas categorias atuem da forma mais unitária possível, em torno de bandeiras de luta que dizem respeito aos interesses do conjunto da classe.
O ponto de partida dessa intervenção é lutar para unificar as campanhas, enfrentando as barreiras impostas pela burocracias governistas e pelegas no controle dos aparatos sindicais. É tarefa da esquerda atuar ofensivamente na base das categorias, defendendo a unificação das lutas. Por um calendário conjunto de mobilização! Datas conjuntas para uma greve nacional das categorias! Comando de greve eleito nas assembleias de base e com mandatos revogáveis! Piquetes e manifestações unificadas!
A partir dessas campanhas, temos que iniciar um movimento para impor a pauta dos trabalhadores no debate político do país.
- Contra a inflação, reposição das perdas salariais, salário mínimo do DIEESE como piso!
- Contra as demissões, redução de jornada sem redução de salário, até que haja emprego para todos!
- Estatização das empresas que demitirem ou fecharem, sob controle dos trabalhadores!
- Estatização do sistema financeiro sob controle dos trabalhadores!
- Não pagamento da dívida pública e uso desse dinheiro num programa de obras e serviços públicos sob controle dos trabalhadores!
Essas demandas evidentemente se enfrentarão com a lógica do lucro capitalista e o Estado a seu serviço, com todas as suas instituições e partidos, mídia, etc. Por isso, é preciso defender também a luta por uma ruptura do capitalismo, por um governo dos trabalhadores baseado em suas organizações de luta.

Daniel M. Delfino

Agosto 2015

O mundo fantástico das seitas autoproclamatórias



A luta de classes apresenta inúmeros tipos de dificuldades. Uma das principais é o fato de que “a ideologia predominante numa sociedade é sempre a ideologia da classe dominante” (Marx e Engels). Isso significa que os trabalhadores vêem o mundo não como ele é, mas da forma como a classe dominante o define. Os trabalhadores acham que o mundo sempre foi e sempre vai ser tal como é hoje, com a divisão entre ricos e pobres, a presença do Estado, do trabalho assalariado, da propriedade privada dos meios de produção, da família patriarcal, etc. E mais, acreditam que o homem é individualista por natureza, que se trabalhar duro é possível “chegar lá” e “virar patrão”, etc. E para completar, acreditam que a História é feita por “heróis”, “grandes homens” e líderes, não pela ação coletiva e organizada das classes sociais em luta.
Esse conjunto de ideias constitui um obstáculo gigantesco para a luta contra o capitalismo e a construção de uma sociedade emancipada. Tais ideias somente podem ser superadas por meio da experiência prática, por meio de processos de luta que demonstrem a necessidade, a possibilidade e a viabilidade das ações coletivas. A experiência prática proporciona os conhecimentos necessários para a luta política, a partir daquelas experiências iniciais que acontecem em uma greve ou manifestação, até que se possa gradativamente chegar à luta pelo poder social e pela revoluções.
Na falta ou insuficiência de tais experiências práticas, o obstáculo da ideologia dominante se torna tão grande que muitas organizações preferem não enfrentá-lo. Ao invés de encarar a luta de classes tal como ela é, com todas as suas dificuldades, tais organizações preferem criar um mundo fictício, onde se sentem à vontade, e conseguem desempenhar para si mesmas o papel teatral de “revolucionários”. Essas organizações se convertem em seitas, cujos integrantes passam a ter a obsessão fanática de proclamar aos quatro ventos a “verdade absoluta” da qual são portadores.

Identificando uma seita
No mundo fictício das seitas, a luta a ser travada não é contra a ideologia dominante, a burguesia, o Estado, seus aparelhos ideológicos, a burocracia sindical, igrejas, meios de comunicação, etc. A luta é desviada contra as outras organizações, que passam a ser tratadas como inimigos. E contra os inimigos vale tudo: a calúnia, a difamação, a intriga, a falsificação, todos os tipos de golpes e manobras, para que a seita possa aparecer como a única portadora da verdade e da salvação.
O raciocínio das seitas é mais ou menos o seguinte: “a minha organização é a única organização revolucionária, logo, a minha organização tem que estar na direção de todas as lutas dos trabalhadores, logo, todas as outras organizações que participam das lutas são inimigos, logo, não só é aceitável como é necessário fazer qualquer coisa para derrotar, desmoralizar e destruir essas organizações”. O objetivo não é fazer um debate construtivo em que todas as organizações possam apresentar suas posições, e o movimento decida qual a mais correta. O objetivo é destruir qualquer concorrente que possa representar uma ameaça para as posições da seita. Não importa se uma determinada proposta é a mais correta para o movimento, importa apenas se ela provém ou não da seita. A disputa pelo controle, pela maioria, pela direção, substitui o debate de alternativas para o movimento. A rivalidade, a intriga, a mesquinharia substitui a política.
Seguindo esse critério, onde quer que exista uma outra organização atuando, ela será tratada como inimigo. Qualquer que seja o tipo de organização, um outro partido da esquerda, um coletivo estudantil, uma chapa sindical, um agrupamento independente, um movimento cultural, um grupo de estudo, etc., em qualquer caso essa organização será tratada como inimiga. Qualquer outro grupo organizado, simplesmente pelo fato de ser de alguma forma minimamente organizado, inevitavelmente representa um projeto de direção política. E isso é algo que a seita não pode aceitar, e precisa neutralizar de alguma maneira, seja cooptando uma parte dos seus militantes, seja de uma forma ou de outra buscando o fim da outra organização tal como ela era.
Toda organização tem seus limites, ou é burocrática, ou reformista, ou centrista, ou “sindicaleira”, ou sectária, ou propagandista, ou movimentista, ou mesmo pode ser revolucionária, mas com políticas equivocadas, e no entanto ser capaz de trabalhar em unidade, etc. Diante dessa diversidade de situações, que tem a ver com o estágio histórico da luta de classes, e que exigem em cada caso respostas diferenciadas, a atitude da seita é sempre uma só: qualquer outra organização é um inimigo por definição, e seu objetivo é sempre destruí-lo. Também não importa se a desaparição, o esvaziamento, o racha de um determinado partido da esquerda, coletivo estudantil, chapa sindical, agrupamento independente, movimento cultural, grupo de estudo, etc., vai enfraquecer a luta real dos trabalhadores. Não importa se militantes vão romper com a luta e voltar para casa, se relações e amizades vão ser destruídas, se um processo de organização independente vai ser abortado, pois vale tudo para que os ditos “revolucionários” assumam o controle. A seita não se preocupa com o desenvolvimento geral da luta, seu único objetivo, repetimos, é “dirigir” os processos em que participa.
Todo militante, ativista ou trabalhador certamente se lembra de quando participou de uma assembleia, plenária, chapa, movimento, etc., pela primeira vez, e se deparou com o espetáculo bizarro de “organizações revolucionárias” se digladiando umas contra as outras, uma fala depois da outra, interminavelmente, até esgotar a paciência das pessoas “normais”, que evidentemente se retiram de algo que aparentemente não tem nada a ver com a sua vida. Esse cenário é o sintoma dos vícios sectários que grassam entre as organizações.

O equívoco fundamental das concepções sectárias
O delírio das seitas autoproclamatórias, como qualquer outro fenômeno social, têm uma explicação histórica e política. Essas seitas partem da caracterização de que “a crise da humanidade é a crise da sua direção revolucionária”, frase escrita por Trotsky há quase 80 anos. Incapazes de pensar como o próprio Trotsky e ignorando que o mundo mudou muito desde que o “Programa de Transição” foi escrito em 1938, essas seitas imaginam estar sendo fiéis ao legado do grande revolucionário russo, adotando seu texto ao pé da letra, como se fosse algum tipo de dogma religioso, numa atitude exatamente oposta ao marxismo.
Se a crise da humanidade é a crise da sua direção revolucionária, a solução é muito simples: a seita proclama a si mesma como a nova direção revolucionária da humanidade. E se a seita é a direção revolucionária, todas as outras organizações que não seguem a cartilha dessa seita estão na verdade atrapalhando o processo. E temos então o cenário descrito acima. O problema é que a crise da humanidade não é mais apenas de “direção revolucionária”, mas algo muito mais profundo e de outra natureza. Quando Trotsky formulou essa caracterização, ela ainda fazia um certo sentido, daí o seu esforço para construir uma IV Internacional revolucionária, pouco antes de ser assassinado.
O problema hoje, no século XXI, não é apenas de “direção revolucionária”, mas de falta de alternativas. Há uma crise de alternativas socialistas, uma ausência de projetos de sociedade, de modo que os trabalhadores não acreditam que seja possível mudar o mundo e construir outra sociedade. Sem isso, não há como sequer se falar em um movimento revolucionário. E para que haja uma direção revolucionária, é preciso que haja um movimento revolucionário para dirigir. O movimento revolucionário, por sua vez, somente se constrói mediante o esforço combinado de incontáveis lutas dos trabalhadores, incontáveis experiências práticas (que produzam um avanço ideológico e de consciência, como dissemos no início), contribuições de incontáveis organizações e militantes. Não se constrói por um ato de vontade (ou pior, por autoproclamação de alguma seita) de qualquer organização, nem da noite para o dia.
Para que o movimento dos trabalhadores se torne revolucionário, o que certamente requer a intervenção de organizações revolucionárias (no sentido de debate das melhores propostas para o movimento, e não disputa desleal e rebaixada entre seitas pela “direção”), é preciso antes que exista um movimento, classista, independente, combativo, unitário. É preciso que os organismos de luta dos trabalhadores se fortaleçam e se libertem do controle de burocracias sindicais, partidos pró-capitalistas, oportunistas, etc. É preciso também que haja uma metodologia de funcionamento que assegure a participação e o aprendizado dos trabalhadores. E sobretudo, é preciso que as organizações revolucionárias intervenham nas lutas, concretamente, a partir de cada local de trabalho, estudo, moradia, a partir de cada greve, manifestação, debate, etc., sendo reconhecidas pelos trabalhadores, estando ombro a ombro, pondo a mão na massa.
Não há como separar a construção da direção revolucionária da construção do movimento revolucionário que essa direção irá um dia dirigir. A direção somente terá legitimidade enquanto direção se contribuir decisivamente para a construção do movimento que irá dirigir. E contribuir para a construção do movimento não significa nem se engalfinhar com as outras organizações de maneira sectária em debates estéreis, nem abrir mão de lutar pelas propostas mais corretas. Significa ter como critério precisamente a construção do conjunto do movimento, e não o predomínio das “minhas” propostas. Com esse critério, a luta dos trabalhadores deixaria de ser aquele espetáculo bizarro que presenciamos nas assembleias, plenárias, chapas, movimentos, etc., passando a ser algo que o trabalhador reconheceria como seu.
Somente assim é possível libertar os trabalhadores da influência da ideologia burguesa, do Estado, da burocracia sindical, da igreja, etc., os nossos verdadeiros adversários. Infelizmente, até que as concepções que buscam o avanço geral da luta prevaleçam, para seguir desenvolvendo a luta no dia a dia, precisaremos contar ainda com uma boa dose adicional de paciência, sangue frio e sabedoria para lidar com os ataques, as conspirações e os delírios da seitas.

Daniel M. Delfino
Julho 2015


Era uma vez o futebol brasileiro - Reflexões sobre o futebol na era da sua mercantilização - parte 2


Há pouco mais de 13 anos, quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 2002, escrevemos um rápido texto explicando essa vitória, em termos sociais, econômicos e políticos, com o título justamente de “Por que o Brasil ganhou a Copa do Mundo?” (ver http://politicapqp.blogspot.com.br/2007/04/porque-o-brasil-ganhou-copa-copa-de_17.html) Agora, transcorrido 1 ano da derrota histórica da seleção brasileira na Copa de 2014 (e tendo a seleção brasileira já se tornado também adicionalmente “freguesa” do Paraguai, com uma segunda eliminação consecutiva na Copa América perdendo para o selecionado guarani), cabe resgatar aquele texto de anos atrás e partir do que ele expõe, para em seguida explicar porque os motivos que levaram o Brasil a ganhar sua última Copa já não se aplicam mais. O texto de 2002 é muito curto e vale à pena transcrevê-lo na íntegra:
“A copa de 2002 foi um produto típico da globalização. A globalização significou de certo modo uma brasilianização do mundo. Não é apenas o Brasil que se globaliza, mas o mundo que se brasilianiza. Todo processo histórico-social é uma via de mão dupla, ou contradição dialética, como diziam os antigos.
O Brasil é o país da desigualdade, da corrupção e do jeitinho. A desigualdade, a corrupção e a malandragem (ou desfaçatez) se tornaram as marcas do mundo globalizado. O planeta como um todo tornou-se uma versão ampliada do Brasil: ilhas de riqueza cercadas por bolsões de miséria. Os dirigentes e as instituições internacionais agora são vistos como corruptos irrecuperáveis e especuladores insaciáveis, atuando com o beneplácito da mídia global deslumbrada.
Dentre estas instituições, a que mais se brasilianizou foi a FIFA, resultado de uma gestão de 24 anos nas mãos do brasileiro João Havelange. Como qualquer político brasileiro, coronelista e corrupto, Havelange distribuiu benesses e favores aos aliados para ser reeleito continuamente, comprando os votos das federações, prática disseminada alhures...
O resultado disso foi uma Copa do Mundo inflada, com 32 participantes, e dividida em dois países. Uma Copa do Mundo realizada na Ásia inevitavelmente se defrontaria com o problema das monções, a estação das chuvas, que coincide com os meses tradicionalmente reservados para a disputa do Mundial. Como é impossível adiar as monções, a alternativa é mudar a data da Copa. Pois é preciso globalizar o futebol a qualquer custo, levando a disputa para a Ásia e agradando os caciques locais.
A Copa do Mundo foi antecipada em quinze dias. Com isso, ficou muito próxima do fim da temporada européia. O intervalo entre o fim das principais ligas nacionais européias e da Copa dos Campeões e o início da Copa do Mundo ficou muito pequeno, insuficiente para que os jogadores pudessem se recuperar fisicamente do desgaste. Jogadores como Figo e Zidane chegaram à Copa “bichados”. Em cada seleção do Mundial havia pelo menos um jogador “estourado”, que foi para a disputa cercado de dúvidas sobre suas reais condições físicas. Inclusive no Brasil, como era o caso de Ronaldo e Rivaldo.
Nestas condições, entretanto, o Brasil jogou em casa. Nossos jogadores tem o know-how da improvisação, aprendido na pátria-mãe. Aqui os times são montados às pressas, os jogadores se entrosam no decorrer do campeonato, os esquemas são improvisados, a preparação é “meia-boca”, os técnicos são chamados no meio da competição como salvadores da pátria (caso de Felipão na Seleção). O “empurrar com a barriga” faz parte do caráter do povo brasileiro, não só no futebol. É a receita da sobrevivência num país de soluções provisórias e carências perpétuas. Nosso futebol espelha a precariedade de nossa civilização. O que é o drible senão a habilidade de quem muito apanha de escapar da pancada?
Ora, uma Copa tão desorganizada quanto os campeonatos brasileiros (vide o problema da venda de ingressos) só poderia ser ganha pela seleção brasileira. O estilo brasileiro passou a predominar também fora de campo, o que é extremamente negativo. Ao invés de nos melhorarmos, pioramos os outros! Mas como os jogadores e técnicos brasileiros estão acostumados com esse estilo de seus dirigentes, saíram com vantagem na disputa! Times que fizeram tudo certo em sua preparação, como Argentina e França, fracassaram miseravelmente; o Brasil, que fez tudo errado, ganhou!”
Se em 2002 o “know-how da improvisação” e o método de “empurrar com a barriga” foram suficientes para vencer times que “fizeram tudo certo em sua preparação”, em 2014 isso não mais aconteceu. O procedimento de “empurrar com a barriga” e de convocar um “salvador da pátria” de última hora (caracteristicamente, apelou-se para o mesmo Felipão de 2002) resultou em um desastre completo. Uma das hipóteses para esse fracasso poderia ser uma mudança nas determinações sociais, econômicas e políticas mencionadas no texto de 2002. Façamos então uma rápida passagem pelo que aconteceu no cenário da dita “globalização” desde aquele momento.
No ano daquela Copa, o mundo acabava de começar a sair da crise econômica que teve como estopim a queda das ações das empresas de tecnologia da NASDAQ, as famosas empresas “ponto com”, sintoma de uma crise estrutural mais profunda do capitalismo, que momentaneamente se contornava mais uma vez. Estava começando um novo ciclo de crescimento alavancado por um conjunto de países do segundo escalão da divisão mundial do trabalho, como Brasil, Rússia, Índia e especialmente China, que está lutando para passar ao primeiro escalão. Esse ciclo foi impulsionado pela intensificação do comércio internacional, com América Latina, Oriente Médio (e Rússia) fornecendo matérias primas, minérios, grãos e petróleo, a China fazendo a montagem e exportando mercadorias, e Estados Unidos, Europa e Japão consumindo tais mercadorias e exportando capital e tecnologia de volta para a China.
No auge desse ciclo, o Brasil viveu a ilusão de prosperidade da era Lula, quando milhões de pessoas aparentemente saíram da miséria através de bolsas e outros milhões adquiriram a “cidadania do crédito”, o consumo através de endividamento, sem aumento real da renda. Esse ciclo de crescimento, no entanto, se esgotou na crise mundial de 2008. Num primeiro momento, aquela nova crise pareceu atingir apenas os países centrais e deixar quase ilesos os gigantes periféricos. Entretanto, nos anos seguintes os países centrais viveram uma quase recuperação, e no momento atual, em 2015, os gigantes periféricos é que ameaçam precipitar o próximo episódio cíclico da crise. A queda das ações na China pode ser um primeiro sintoma disso.
Voltando aos países centrais, a pseudo recuperação aconteceu em especial nos Estados Unidos, às custas da destruição das condições de vida da sua classe trabalhadora (os recentes casos de violência policial contra os negros, o setor mais pobre da classe, são um exemplo extremo desse processo) e na Alemanha, às custas do arrocho sobre a periferia europeia, como estamos presenciando na Grécia. Conforme a crise estrutural se aprofunda e as crises cíclicas se repetem, vai se produzindo um realinhamento das relações entre os países, com o reforço do poder dos países mais fortes e um enfraquecimento ainda maior dos mais fracos. Para contornar suas crises, o sistema capitalista privilegia a sobrevivência dos setores mais poderosos e concentrados do capital, e sacrifica os mais fracos. Estados Unidos e Alemanha estão no bloco dos mais fortes. O Brasil, no dos mais fracos.

Voltemos então ao campo do futebol para identificar como esta esfera foi afetada pelos fenômenos acima. De acordo com o que analisamos mais detidamente na parte 1 dessas reflexões, na comparação com o cenário do futebol de 2002, prossegue o mesmo fenômeno de agigantamento das competições de clubes europeus em detrimento das seleções nacionais, que só fez se aprofundar. Também apontamos a ocorrência de um desenraizamento do futebol, a perda de sua relação direta com a classe operária, a elitização do público dos estádios, o êxodo dos melhores jogadores, a colonização dos torcedores por clubes europeus, etc. Todas essas tendências já tinham sido embrionariamente detectadas em 2002, mas só pudemos tratar delas agora, na parte 1 destas reflexões, de forma mais desdobrada.
Essas tendências de transformação no futebol afetam de maneira diferenciada os vários países, de acordo com a sua posição relativa na divisão internacional do trabalho capitalista. Os Estados Unidos não são uma potência no futebol. A Alemanha é. A Alemanha foi também o país vencido pelo Brasil na final da Copa de 2002. Os alemães tiraram lições daquela derrota e buscaram agir a respeito. Desde a derrota para o Brasil (uma derrota perfeitamente normal, diga-se de passagem, sem nenhum grau de humilhação e tragédia), houve um esforço para repensar o futebol alemão. Com a tradicional eficiência germânica, a federação alemã lançou um programa de multiplicação de escolinhas de futebol, com uma nova orientação em relação ao modo de jogar. O resultado foi colhido agora, com uma geração de jovens jogadores talentosos, como Mario Götze, Marco Reus, Thomas Muller, e outros. Todos jogadores com talento, habilidade, capacidade de driblar e improvisar, jogo de cintura. Características novas e diferentes do antigo estilo alemão, baseado na força física e disciplina tática, de estilo mecânico, burocrático, “quadrado”.
Enquanto isso, no Brasil, o que aconteceu com o futebol local? Praticamente nada de novo em relação à organização. A fórmula de disputa do campeonato brasileiro mudou em 2003 para o modelo de pontos corridos, mas o calendário permaneceu desconectado do calendário europeu, os campeonatos estaduais continuaram inflados e deficitários, etc. Enquanto outras federações davam atenção à renovação do seu futebol, a CBF permaneceu “deitada eternamente em berço esplêndido”, fazendo comércio com os jogos da seleção, enquanto o futebol nacional seguiu definhando nas mãos de emissoras de TV, de dirigentes medíocres e sem visão nos clubes, e de empresários de jogadores. Algumas vitórias da seleção em Copa América e Copa das Confederações maquiavam o desempenho medíocre nas Copas do Mundo de 2006 e 2010. A ilusão de prosperidade dos governos do PT permitiu inclusive que alguns clubes brasileiros tivessem acesso ao mercado secundário de contratações, concorrendo com clubes e ligas europeias de 2º escalão e repatriando jogadores, como fez o Corinthians com Ronaldo em fins de 2008.
Mas o essencial da discussão é que o “modelo” histórico do futebol brasileiro, em que o talento e o “know how” da improvisação buscavam compensar as falhas de organização, estava ficando defasado em relação ao futebol altamente organizado e profissionalizado da Europa. A Copa de 2002 foi uma espécie de canto do cisne, o último alento desse “modelo” de futebol que vai aos trancos e barrancos, no improviso, empurrando com a barriga. Seria necessário uma revolução no futebol brasileiro para que tivesse condições de se manter competitivo internacionalmente. Essa revolução não ocorreu nos anos que se seguiram à vitória de 2002. Como era de se esperar, aquela vitória reforçou ainda mais a negligência em relação às tarefas necessárias para uma reorganização de grande porte e a complacência com os defeitos, tornando praticamente impossível a reformulação necessária.
Nem mesmo o vexame da Copa de 2014 provocou ainda uma tal revolução. Depois de 2014, seguimos com o mesmo modelo de gestão, que é o do amadorismo, do improviso, das mudanças que não mudam nada, que resultaram na campanha medíocre na Copa América de 2015. Prova de que os problemas vão muito além do fato de Felipão estar ultrapassado e Neymar não ter jogado contra a Alemanha na tarde trágica do Mineirão. Os problemas são mais profundos e requerem uma análise social.
Antes de empreender essa análise, cabe mencionar o único fato positivo em relação à Copa de 2014, que é o de ter acontecido num momento de politização e questionamento na sociedade brasileira, como em décadas não se via. As jornadas de junho de 2013 (pano de fundo da Copa das Confederações) trouxeram à tona um amplo descontentamento, em praticamente todas as classes sociais, com a falsa prosperidade da era do PT (e evidentemente, nos interessa organizar o descontentamento da classe trabalhadora). No antigo país do futebol, houve protestos contra a Copa do Mundo, abafados por meio de pesada repressão policial e de uma grosseira armação judicial e midiática para por a culpa da morte de um cinegrafista nos manifestantes.
Mesmo que os protestos não tenham sido suficientes para impedir a Copa, e mesmo que no período da Copa tenha havido um interesse razoável pelos jogos, uma parcela imensa da população simplesmente não estava preocupada com o futebol, nem com a seleção. O desinteresse pelo futebol (e até mesmo a hostilidade e ele) alcançou proporções inéditas no país pentacampeão do mundo. Tanto assim que o impacto da monumental derrota futebolística (a maior derrota da história da seleção, maior derrota da história de uma seleção campeã do mundo numa Copa*, maior goleada em uma semifinal de Copa**, maior derrota de um país anfitrião, etc.) não teve nem de longe o impacto que tiveram as derrotas de 1950, nem mesmo a de 1982, por exemplo.

Mencionamos a Copa de 1982 porque se trata de uma referência inescapável ao se falar de uma derrota futebolística muito sentida. A seleção brasileira de 1982 derrotada pela Itália é uma das melhores seleções da história que não ganharam a Copa, juntamente com a Hungria de 1954 e a Holanda de 1974 (ambas vencidas na final pela Alemanha). Tratava-se de uma das maiores gerações da história do futebol brasileiro, com jogadores que eram ídolos nos seus clubes (Zico, Leandro e Júnior do Flamengo, Sócrates do Corinthians, Falcão do Internacional, Cerezo e Eder do Atlético) e com um técnico que era um dos últimos defensores do bom futebol, o excepcional Telê Santana.
A derrota daquela seleção foi muito mais sofrida pelo torcedor brasileiro (e naquela época, quando se viviam os anos finais da ditadura e de renovação das esperanças no futuro do país, isso incluía praticamente todo o povo brasileiro) do que a tragédia do Mineirão em 2014. Essa afirmação está sendo sustentada por uma testemunha ocular dos fatos, em que pese ser um autor que tinha 6 anos de idade na época daquela Copa, a primeira que pôde acompanhar pela TV e em condições de entender o que estava acontecendo, e de se encantar com o futebol “de outra galáxia” (na definição de Enzo Bearzot, técnico da Itália campeã) daquela seleção. Deve se dar o devido desconto por se tratar de alguém para quem as lembranças daquela Copa estão indissociavelmente ligadas às lembranças das primeiras férias escolares, da vizinhança pela primeira vez pintada inteira de verde e amarelo, da primeira vez em que se ouvia um colossal foguetório a cada gol do Brasil, da primeira festa junina na cidade grande, quando ainda se fazia a festa na rua de casa e se soltavam balões em abundância (terríveis, mas naquele contexto sublimes aos olhos de uma criança).
Mesmo com esse desconto devido à memória afetiva do autor, mantemos a afirmação, mas a qualificamos. A derrota de 1982 foi mais sentida que a de 2014 não só porque a seleção de 1982 era muito melhor, mas porque em 1982 o futebol importava muito mais. Era muito mais presente e significativo na vida das pessoas, muito mais uma expressão do estado de espírito coletivo, das esperanças e sonhos daquela dada época. E o que precisamos explicar aqui é porque o futebol brasileiro, antes tão belo e vitorioso, se tornou medíocre. Pois o que levou o futebol a perder a importância que tinha antes foi justamente o fato de ter perdido a qualidade mágica de antes e ter se tornado medíocre.
A mudança fundamental por trás de todos esses processos é a que aconteceu no modo de vida das crianças e adolescentes no Brasil nas últimas três décadas. Em 1982 as crianças (em maior número os meninos) não faziam outra coisa além de “jogar bola”, no intervalo das aulas, no pátio da escola, no corredor da escola, na sala de aula, entre as cadeiras, chutando e driblando com qualquer coisa que aparecesse pela frente, desde tampinha de garrafa e bolinha de papel até bolas de verdade, e depois na rua, na calçada, no quintal das casas, nos terrenos baldios, nas praças, nas quadras, campinhos de várzea, etc., jogando um contra um, ou em duplas, em trios, em qualquer formação imaginável, uma partida após a outra, um time depois do outro, em jogos intermináveis, até 3 gols, até 10, etc. (e aqui não se trata de mais uma memória afetiva de um inveterado craque das peladas infantis, mas de alguém que não jogava bola, porque era gordo e vivia enfurnado nos livros).
Em 2015 as crianças e adolescentes estão trancados nas suas casas e apartamentos, não saem na rua, não socializam, não criam relações, não brincam nem brigam, apenas jogam videogame, navegam no “facebook”, conversam no “whatsapp”. Não há mais terrenos baldios, não há mais campinhos de várzea, não há mais a interminável “febre de bola”, as intermináveis peladas de rua (assim como não há mais carrinhos de rolimã, bolinhas de gude, esconde-esconde, etc.). Os jogadores de futebol de hoje são formados em escolinhas, onde aprendem tudo, esquema tático, posicionamento, etc., menos “jogar bola” de verdade, como sempre foi o estilo brasileiro.
Sempre tratamos a formação de jogadores de futebol como algo aleatório, como se fosse um fenômeno da natureza. O surgimento de novos craques, novos Rivaldos, Romários, fenômenos, gaúchos e Neymares era tratado como algo que iria acontecer naturalmente. “O Brasil sempre revela novos jogadores”. A falsa imagem que se tinha é do mesmo tipo da que se tem da Amazônia, uma imensidão sem fim de florestas e rios, que não vai acabar jamais, por mais que se derrubem as árvores. Da mesma forma, sempre se imaginou que iriam continuar surgindo gerações e gerações de novos jogadores, como no passado tivemos a geração de 1958, depois a de 1970, depois a de 1982. E com elas o Brasil sempre poderia continuar formando novas seleções, que estariam recheadas de novos craques, que manteriam o país como mais vitorioso.
Mas assim como a Amazônia, o fenômeno do surgimento de novos grandes jogadores está acabando. Não são recursos infinitos, indefinidamente renováveis. 2014 é a prova de que o futebol brasileiro perdeu essa capacidade inesgotável de formar jogadores em condições de competir com os melhores do mundo. Se até 2002 ainda era possível contar com o improviso e mesmo assim vencer, agora já não mais. Agora seria preciso um trabalho organizado, sistemático, planejado, científico, para aproveitar os talentos que ainda surgem. Não houve e não há tal trabalho, nem da parte dos clubes, nem da parte da CBF. O Brasil se rebaixou ao mesmo nível de qualquer outro país em que se gosta de futebol, com o agravante da desorganização, corrupção, autoritarismo e incompetência dos dirigentes brasileiros, que são características da burguesia brasileira em geral. Isso explica os 7 x 1.

A derrota de 2014 não será apagada facilmente e o prestígio construído em mais de um século pelo talento de muitas gerações de craques não será reconquistado com bravatas de Galvão Bueno. Diante da mudança no modo de vida da infância e da adolescência, o número de jovens que jogam futebol diminuiu enormemente. Aquela “febre de bola” da qual quem cresceu nos anos 1980 ainda se lembra tão vivamente arrefeceu. Não é que o número de crianças e adolescentes jogando bola baixou a zero, mas baixou brutalmente. Da quantidade nasce a qualidade, nos ensina a dialética. Sem a mesma abundância de crianças e adolescentes jogando bola, não surge mais a antiga abundância de craques.
A atitude necessária diante desse fenômeno, repetimos, deveria ser um trabalho organizado para aproveitar os bons jogadores que ainda surgem. Em havendo esse trabalho, o Brasil conseguiria ainda se manter no mesmo nível das demais potências, Alemanha, Argentina, Itália, etc., mas já sem o mesmo brilhantismo e a superioridade de antigamente. Mesmo assim, não daria vexame. Agora, estamos condenados a um rebaixamento, uma queda que não se sabe até onde pode ir. Enquanto uma atividade econômica, os dirigentes do futebol brasileiro finalmente conseguiram matar a galinha dos ovos de ouro. Aquilo que ninguém imaginava possível, transformar aquele manancial inesgotável de grandes jogadores em uma terra devastada, foi conseguido pelos nossos presidentes de clubes e da CBF. É uma proeza histórica.
Tudo começa nos clubes. Os grandes clubes brasileiros se tornaram reféns dos esquemas de empresários de jogadores. São os empresários que conseguem vagas para que os jovens, ainda adolescentes, entrem nas categorias de base, desde que os pais paguem as taxas e firmem contratos garantindo comissões a esses empresários quando da venda do jogador para o exterior. Os clubes não têm mais autonomia nas suas categorias de base para formar seus jogadores. Cada clube deveria instalar dezenas de escolinhas nas periferias, com o caráter de projeto social, vinculado à frequência escolar, etc., para garimpar novos talentos. O investimento num projeto como esse seria facilmente coberto com a venda dos novos Neymares que surgissem. Os jogadores teriam vínculo com o clube e não com empresários que intermedeiam e viciam as relações.
Mas mesmo os grandes clubes no Brasil são mal administrados, aprisionados em dívidas, incapazes de um planejamento estratégico, submetidos ao monopólio de uma grande emissora de TV que define os calendários e horários de jogos. Não têm a capacidade de desenvolver projetos como esses. Os clubes pequenos e de cidades menores estão definhando com um calendário em que os estaduais duram apenas 3 meses no início do ano, e as divisões nacionais inferiores são deficitárias. Para reverter esse cenário seria preciso uma reforma geral na estrutura e calendário do futebol brasileiro, que exigiria:
- adequação do campeonato brasileiro ao calendário europeu, com um turno de setembro a dezembro e outro de janeiro a maio. A vantagem dessa adequação é que os grandes clubes poderiam planejar a sua temporada, sabendo com qual elenco de jogadores podem contar, formando times de verdade, no sentido coletivo, entrosando jogadores (hoje temos amontoados de jogadores que se desfazem e refazem ao longo da temporada). Hoje os clubes começam o ano com um elenco, que se desfaz na metade do campeonato brasileiro devido à janela de transferências da intertemporada europeia, e terminam o ano com outro elenco. Quem é bem sucedido no início do ano, nos estaduais e na Libertadores, acaba sendo “punido” com o desmanche do time e a venda dos melhores jogadores para a Europa. Com a adequação do calendário, repetimos, teríamos times mais estáveis ao longo da temporada, melhorando a qualidade dos jogos.
- com o campeonato brasileiro sendo disputado entre setembro e maio, os jogos poderiam ser de domingo a domingo. E com isso, no meio de semana seriam jogadas outras competições, como os estaduais, Libertadores, Copa do Brasil. Como acontece também na Europa, em que as copas nacionais e europeias são jogadas em meio de semana. A vantagem desse formato é que os estaduais poderiam ser jogados ao longo do ano inteiro, mantendo em atividade os clubes pequenos ao longo de toda a temporada. Hoje os clubes pequenos nos estados menores deixam seus jogadores desempregados por seis meses, já que não há competições quando acabam os estaduais.
- os estaduais seriam classificatórios para a Copa do Brasil da temporada seguinte. Com os clubes grandes priorizando o campeonato brasileiro, a Libertadores ou a própria Copa do Brasil, eles acabariam jogando os estaduais com times mistos, aumentando as chances dos clubes pequenos vencerem os grandes (como acontece nas copas nacionais na Europa), aumentando o interesse e rentabilidade dos estaduais, mantendo a viabilidade financeira dos clubes pequenos.
- num país com a dimensão continental do Brasil, não é viável para os clubes pequenos jogar uma 3ª ou 4ª divisão nacional com viagens do Rio Grande do Sul ao Amapá ou da Paraíba ao Acre, por exemplo. Por isso, para os clubes que não estão na 1ª ou 2ª divisão do campeonato brasileiro, os estaduais e as primeiras rodadas da Copa do Brasil serviriam também como uma espécie de seletiva ou repescagem para a 2ª divisão, como uma forma suplementar de aumentar o interesse dos estaduais. E aumentaria a competitividade da 2ª divisão, já que o risco seria de rebaixamento para a repescagem/estaduais.
- a repartição das cotas de transmissão do campeonato brasileiro deveria ser mais igualitária, com um valor fixo para todos os clubes participantes da 1ª divisão e um porcentual variável a ser distribuído conforme a classificação final na tabela (e o mesmo critério para a 2ª divisão, a repescagem intermediária, Copa do Brasil, estaduais, etc.).
- para participar das competições nacionais os clubes deveriam ser obrigados a cumprir critérios de transparência financeira e gestão, com limites para endividamento (sob pena de rebaixamento) e outros, inclusive, por exemplo, a obrigatoriedade de investimento em categorias de base, etc.
- também deveria ser critério para participação nas competições nacionais mudanças estatutárias nos clubes que abrissem para os sócios torcedores (com critérios de adimplência) o direito de voto nas instâncias administrativas dos clubes, podendo escolher uma parte dos representantes que elegem o presidente, formar o conselho fiscal, etc.
Mudanças como essas dependeriam de uma intensa mobilização dos setores críticos da imprensa esportiva, das associações de torcedores, do Bom Senso FC. Somos céticos em relação à capacidade das torcidas organizadas servirem como agentes progressivos nesse processo necessário de reorganização. Afinal, a maior delas estabelece relações promíscuas com dirigentes, servindo como massa de manobra nas disputas políticas internas, favorecendo ora um dirigente ora outro, em troca de vantagens na compra de ingressos, etc. Por isso apostamos numa pressão consciente de torcedores “desorganizados”.
Essa “revolução” de base nos clubes e competições nacionais é uma pré-condição para que se possa reformular também a própria CBF e a seleção brasileira. Para acabar com os vexames e retomar a tradição daquele futebol, que como disse o grande Hobsbawm, não poderia ser comparado a nada menos que uma forma de arte.

*A mesma Alemanha já foi goleada pela Inglaterra por 12 x 0, mas num amistoso em 19XX, portanto ainda muito antes da era das Copas do Mundo. Em 1954, essa mesma Alemanha foi goleada por 8 x 3 pela Hungria, mas no momento desse jogo ainda não era uma seleção campeã, o que só conseguiria nessa mesma Copa, ao jogar de novo com a mesma Hungria na final, e vencer por 3 x 2.

**Em 1950, a Copa do Mundo disputada no Brasil teve um formato único, que não se repetiu em nenhuma outra Copa, sem semifinal nem final. Houve um quadrangular final, com as 4 seleções finalistas jogando todas entre si para definir o campeão. Nesse quadrangular, o Brasil venceu a Suécia por 7 a 1 e a Espanha 6 x 1, mas perdeu para o Uruguai por 2 x 1 no último jogo, que não era exatamente a final da Copa. Os 7 x 1 da Alemanha são portanto a maior goleada numa semifinal desde que a competição tem o atual formato.

Daniel M. Delfino
Junho 2015


Crise e corrupção na FIFA - Reflexões sobre o futebol na era da sua mercantilização - parte 1



O mundo do futebol entrou em polvorosa no mês de junho com as prisões de vários integrantes do Comitê Executivo da FIFA (entre eles o ex-presidente da CBF, José Maria Marin), às vésperas do Congresso mundial da entidade. O Congresso, reunido com toda a pompa na sede da FIFA, em Zurique, na Suíça, reelegeria o então presidente, Sepp Blatter, para mais um mandato. No entanto, uma semana depois de eleito, Blatter renunciou, e nova eleição foi apontada para escolher o presidente da entidade que comanda o futebol mundial.
As prisões foram efetuadas pela Interpol em obediência a um mandado do FBI. A polícia federal estadunidense investiga a corrupção na FIFA há algum tempo, e entre outros casos, reuniu provas de que os membros do Comitê Executivo receberam propina de determinadas empresas para lhes vender os direitos de transmissões de competições como a Copa América e competições nacionais, como a Copa do Brasil. Também há a suspeita de que receberam propinas para votar nas candidaturas da Rússia e do Qatar, escolhidas para sede das Copas do Mundo de 2018 e 2022, respectivamente (este caso está sendo investigado diretamente pela polícia suíça). Ambas as escolhas foram bastante criticadas na época em que foram anunciadas, em 2010, seja por haver outros concorrentes em muito melhores condições técnicas de sediar uma Copa, como a Inglaterra, ou seja pela quase total ausência de tradição no mundo do futebol, condição especialmente gritante no caso do Qatar.
As investigações do FBI ainda não atingiram o próprio Blatter, mas o ex-homem forte da FIFA preferiu sair de cena antes que o escândalo o alcançasse mais diretamente. Um dos nomes cotados para suceder Blatter é seu ferrenho opositor e presidente da UEFA (Confederação Europeia de Futebol), o ex-craque francês Michel Platini. No Brasil, José Maria Marin acabava de ser substituído por Marco Polo Del Nero na presidência da CBF. Por via das dúvidas, Del Nero se retirou do Congresso da FIFA ainda antes do encerramento. Em relação a Marin, os fatos que motivaram sua prisão aconteceram quando ainda era vice presidente, atrás do todo poderoso Ricardo Teixeira, que comandou a CBF por mais de 20 anos, e renunciou ao cargo às vésperas da Copa do Mundo de 2014 (mais ou menos como faria Blatter).

O “coronelismo” no futebol
A FIFA é uma entidade privada, já que não é subordinada a nenhum governo ou organismo internacional. Ao contrário, a FIFA costuma se gabar de ter mais países filiados do que a ONU (209 contra 193, na última contagem). E em muitos casos, tem poder superior ao de alguns governos, impondo as suas condições para a realização da Copa do Mundo, como fez com o Brasil. De qualquer maneira, em termos jurídicos, é uma entidade privada, sem fins lucrativos. A FIFA não possui proprietários privados, pois seus dirigentes são eleitos pelas federações nacionais e continentais. Entretanto, o futebol é um negócio muito lucrativo, e a FIFA também se beneficia dele. Como uma empresa, a FIFA vende um produto, a Copa do Mundo de seleções nacionais de futebol, que é patrocinada por grandes empresas, que pagam fortunas para aparecerem nas transmissões dos jogos, que também custam uma fortuna às emissoras. A Copa de 2014 custou US$ 4 bilhões ao Brasil, e rendeu US$ 2 bilhões para a FIFA.
Uma vez que a própria FIFA não é uma empresa, portanto seu lucro não é destinado a proprietários privados, o que acaba acontecendo é que uma parte desse lucro acaba sendo ilicitamente embolsado pelos gestores eleitos, como Blatter e Marin. A investigação do FBI diz respeito a US$ 150 milhões que teriam sido pagos em suborno a dirigentes para que escolhessem determinados parceiros de patrocínio e transmissões, em detrimento de outros. Trata-se de crimes contra a concorrência econômica. Esses gestores da FIFA, como dissemos, são eleitos por representantes das federações nacionais. Em cada federação nacional, por sua vez, encontramos figuras como Marin e Ricardo Teixeira, que ascenderam ao comando da entidade sem nenhuma história relevante como dirigentes de futebol.
Ricardo Teixeira era simplesmente genro de João Havelange, antecessor e padrinho de Blatter na presidência da FIFA. José Maria Marin era integrante do partido da ditadura militar, a ARENA, tendo sido vereador em São Paulo e governador em exercício entre 1982 e 1983, como vice de Paulo Maluf. Em 1975, ainda vereador, fez um discurso contra a TV Cultura, por conta da linha crítica ao regime que lá aparecia, e 15 dias depois o jornalista Vladimir Herzog apareceria morto no DOPS.
Para chegar ao comando das federações nacionais como a CBF, essas figuras são eleitas pelos presidentes de federações estaduais, que por sua vez são eleitos por presidentes dos clubes, que por sua vez são eleitos por grupos restritos de conselheiros ou sócios especiais. Em outras palavras, uma estrutura nebulosa e antidemocrática na sua essência. O futebol, o esporte mais popular e democrático do mundo, está sob comando das figuras mais retrógradas, corruptas, autoritárias, incompetentes, medíocres que se possa encontrar.
Os chamados “cartolas” que dirigem o futebol são uma espécie de remanescentes dos “coronéis” que mandavam na política de regiões atrasadas. Ambos vivem de uma rede de troca de favores, de compadrio, de toma lá dá cá. Elegem-se uns aos outros, trocando favores por votos, numa rede de relacionamentos obscura, que nada têm a ver com os objetivos das entidades e o próprio futebol em si. Nesse sentido, a pseudo “faxina” em andamento na FIFA corresponde a uma espécie de pseudo “revolução burguesa”, com a remoção de alguns cartolas ligados a essas redes de favores mais retrógradas e a possível instalação de um corpo de gestores mais profissional.

Limites da pseudo “revolução burguesa” na FIFA
Não acreditamos que a prisão de algumas figuras possa “moralizar” o futebol, seja em nível internacional ou nacional. Enquanto o futebol for um negócio capitalista, estará sujeito a corrupção, troca de favores, suborno, comissões “por debaixo do pano”, compra de resultados, apostas, etc. Todas essas práticas caracterizam a competição capitalista, dentro e fora do mundo do esporte. O capital não tem lei, não obedece às regras do jogo.
Tudo que puder ser feito para aumentar o lucro será feito: matar, contaminar, depredar, roubar, mentir, subornar, chantagear, extorquir, ameaçar, trapacear. Não há legislação financeira, fiscal, trabalhista, ambiental, sanitária ou de qualquer natureza que possa impedir uma empresa capitalista de chegar ao seu lucro. Policiais, fiscais, juízes, políticos, jornalistas, são comprados para acobertar os crimes. A transgressão das leis não é uma escolha acidental de um determinado empresário ou gestor capitalista, é um fato generalizado e amplamente disseminado que faz parte da natureza do sistema. Se um determinado dirigente capitalista opta por ser “ético” (a rigor a ética como tal é impossível numa sociedade dividida em classes), ele será derrotado na concorrência capitalista por aqueles que não o são.
Na verdade, os empresários privados, gestores e diversas personificações do capital não são os verdadeiros sujeitos do processo, mas meros objetos das leis férreas da competição e da acumulação capitalista. Cada fração do capital, enquanto valor econômico abstrato, luta contra as demais para se valorizar, e pune implacavelmente com a falência aquelas personificações que fracassarem em viabilizar este imperativo.
Considerando essa realidade subjacente, a pseudo “revolução burguesa” em andamento na FIFA vai tão somente tocar na superfície dos fenômenos, removendo as figuras ou grupos atualmente encastelados na gestão do futebol, substituindo-os por uma nova categoria de gestores mais “moderna”, “profissional”, transparente”, “ética”, gerando a ilusão de que algo de positivo foi feito. Na realidade, a lógica profunda da competição capitalista que está por trás dos fenômenos seguirá intocada, e com isso novos escândalos serão gerados. Uma determinada turma de empresários capitalistas conseguirá colocar os seus novos gestores de confiança na FIFA, em disputa contra outra turma. Emissoras de televisão, seus patrocinadores, dirigentes de grandes clubes e empresários de jogadores seguirão mandando no futebol, com os mesmos métodos mafiosos.

Clubes X Seleções
Como pano de fundo dessa pseudo “revolução burguesa” na FIFA, temos uma dissociação entre as duas dimensões em que é jogado o futebol, a dos clubes e a das seleções nacionais. Os clubes de futebol, especialmente na Europa, estão se transformando em corporações superpoderosas, com marcas mundialmente conhecidas, torcedores em todos os continentes, audiência e valor de mercado em ascensão. É o caso de gigantes como Real Madrid, Barcelona, Manchester United, Chelsea, Bayern de Munique, e alguns poucos outros em cada país. Os times montados por esses clubes são verdadeiras seleções mundiais, com os melhores jogadores de cada continente. Esses clubes protagonizam uma disputa, a Liga dos Campeões da Europa, onde se joga o melhor futebol do mundo, com jogos disputadíssimos, de alta intensidade, onde os melhores jogadores entregam seu melhor desempenho.
Como resultado, o futebol jogado na Ligas dos Campeões e nos campeonatos nacionais mais importantes da Europa cresce em interesse, audiência, valor de mercado, e o futebol das seleções nacionais decresce na mesma medida. Antes, as Copas do Mundo eram um evento extraordinário no futebol, no sentido de que nessa competição se jogava o melhor futebol do mundo. Os jogadores esperavam 4 anos para estar entre os melhores dos melhores do seu país, para ter a chance de jogar uma Copa, uma oportunidade que aparecia 2 ou no máximo 3 vezes na curta carreira dos futebolistas. Era nas Copas do Mundo que se faziam os heróis, que se consagravam os mitos. Agora, a Copa é um evento extraordinário em outro sentido, como uma interrupção do calendário “normal” do futebol, que é o das competições dos clubes, em especial os grandes clubes da Europa.
O calendário do futebol europeu começa entre fins de agosto e início de setembro de cada ano, para terminar em maio do ano seguinte. As competições de seleções acontecem entre junho e julho, no intervalo entre as temporadas europeias, período que acaba sendo de descanso e refazimento para os profissionais de alto nível. Os jogadores são preparados fisiologicamente por preparadores físicos, que trabalham cientificamente para isso, de maneira a que eles atinjam o máximo de desempenho físico entre os meses de março e maio, na reta final das competições europeias, quando se definem os campeões. Uma vez atingido esse auge, a tendência natural é o relaxamento e a queda de desempenho. Nem que o indivíduo queira, é fisicamente e psicologicamente impossível manter o mesmo nível de rendimento e motivação.
Depois de se dedicar com a máxima intensidade à disputa da Liga dos Campeões ou dos campeonatos nacionais mais importantes da Europa, depois de atingir o auge do desempenho físico e técnico e também de concentração mental para essas competições, não há como manter o mesmo nível para as competições de seleções no meio do ano. Depois de entregarem seu melhor desempenho jogando pelos clubes, que disputam as competições mais importantes e mais rentáveis, os melhores jogadores do mundo chegam esgotados para os jogos das seleções nacionais no meio do ano.
Devido a essa inversão, a Copa do Mundo não é mais o parâmetro para consagrar os melhores jogadores. O jogador que fez o gol que deu a Copa do Mundo de 2014 para a Alemanha, o jovem Mario Götze, não ascendeu imediatamente à condição de semideus, de imortal do futebol. Ainda não é considerado como tal, longe disso, porque ainda não se consagrou na disputa que agora realmente interessa, a da Liga dos Campeões da Europa, e ainda é reserva no seu clube, o Bayern de Munique. Não é mais o futebol das seleções que consagra os gênios, mas o dos clubes. Temos uma exceção que ilustra o funcionamento dessa tendência, o caso de Lionel Messi, da Argentina. O atual melhor do mundo já foi protagonista da Liga dos Campeões mais de uma vez jogando pelo Barcelona, mas ainda não é considerado pela torcida de seu país igual ou melhor que Maradona, porque este ganhou a Copa do Mundo pela seleção argentina. Mas para boa parte da crítica internacional, inclusive este autor, Messi já se iguala ou supera Maradona.

A colonização do mundo da bola pelos gigantes europeus
Não sabemos até onde vai essa queda de importância técnica da Copa do Mundo, afinal os povos de quase todos os países ainda torcem apaixonadamente por suas seleções nacionais. Os estados nacionais e com eles o nacionalismo futebolístico ainda devem ser uma parte do cenário por muitas décadas. Mas que existe uma tendência de agigantamento do futebol dos clubes, isso é inegável. Já se estabeleceu um cenário em que os clubes europeus drenam todo o talento futebolístico que surge em países de continentes pobres, como América do Sul, África e Ásia. As competições nacionais e continentais da América do Sul são uma espécie de 2ª divisão mundial, já que as principais competições são as da Europa. Os melhores jogadores ficam pouquíssimos anos nos seus clubes de origem no Brasil (e no restante da América do Sul) e assim que se destacam são vendidos para a Europa. Esse já é o seu “plano de carreira” desde que saem das categorias de base.
Os jogadores que ficam no Brasil são os que não são bons o suficiente para irem para a Europa, ou já não mais são bons o bastante para ficarem por lá, entraram em decadência física, estão lesionados, etc., e por isso voltam. Ao mesmo tempo, já se encontram nas ruas do Brasil torcedores com camisas de times europeus quase em igualdade com o número de torcedores de times nacionais. O futebol dos grandes clubes da Europa está “colonizando” o mundo. E nessa colonização temos uma mudança no caráter do futebol. Este se transforma cada vez mais em um espetáculo televisivo do que num espaço de convivência, como era a sua origem. Esses “torcedores” de clubes europeus que assistem jogos de outros continentes pela televisão dificilmente terão a experiência de torcer para seus clubes de adoção no estádio, que é como o futebol se construiu.
Está acontecendo uma espécie de homogeneização do futebol jogado em todos os países. As diferenças entre as escolas nacionais, com seus diferentes estilos específicos, estão se diluindo. Em cada clube grande da Europa existem mais estrangeiros do que nacionais: um ou dois brasileiros, um argentino, um uruguaio ou colombiano, um ou dois africanos, um sul-coreano, às vezes até um australiano, etc. Esses jogadores jogam um futebol padronizado, técnico, mas burocrático, com bom domínio de bola, mas sem imaginação, com velocidade, mas sem criatividade, e assim por diante.
A homogeneização do futebol, bem como os demais fenômenos descritos acima, a formação de clubes super gigantes, que monopolizam os campeonatos nacionais e criam torcedores/espectadores/consumidores em um mercado global, é um processo que tem seu marco na sentença Bosman, em 1995. Neste ano, uma corte da União Europeia – UE, decidiu que o jogador belga Jean Marc Bosman poderia jogar em qualquer país da UE sem ser considerado estrangeiro. A partir desse precedente, os grandes clubes europeus passaram a poder comprar jogadores europeus como se fossem nacionais, caindo por terra a tradicional e histórica limitação de três estrangeiros por clube que vigorava até aquele momento. O passo seguinte foi a obtenção de passaportes portugueses, italianos, espanhois, por jogadores brasileiros, argentinos, uruguaios, etc.
Com isso, eles também passariam a ser cidadãos europeus, e também poderiam jogar em clubes de qualquer país europeu sem serem contados como estrangeiros. Já é comum ver times ingleses sem nenhum jogador inglês em campo, clubes italianos sem nenhum italiano, e assim por diante. Na prática, acabou o limite para jogadores estrangeiros em cada elenco, e os times com mais dinheiro passaram a poder comprar os melhores jogadores do mundo, e formar as seleções mundiais que temos hoje no Real Madrid, Barcelona, Manchester United, etc. Isso desequilibrou os campeonatos nacionais em favor dos gigantes, e aumentou o interesse na Copa dos Campeões da Europa, transformada em Liga dos Campeões em 1994, uma verdadeira “Copa do Mundo” jogada anualmente.

A elitização e desenraizamento do futebol
Uma das conseqüências desse agigantamento dos grandes clubes é a elitização do futebol. Está se tornando impossível freqüentar os estádios, devido ao preço dos ingressos. Muitos desses clube gigantes reservam partes das suas arquibancadas para agências de turismo. O resultado é que, ao invés de torcedores, eles têm espectadores no estádio. O restante dos ingressos é vendido a torcedores de alta renda. Os trabalhadores não podem mais ir ao estádio, e têm que se contentar em ver os jogos pela televisão.
Esse processo já está tão acentuado em alguns países que até gerou uma reação contrária. O “slogan” comercial da federação inglesa para divulgar os jogos da 2ª divisão é “real football for real fans”. Ou seja, futebol de verdade para torcedores de verdade. A segunda divisão é jogada por times pequenos, de cidades pequenas, em estádios pequenos, mas sempre lotados, com uma torcida apaixonada, que canta durante o jogo inteiro, e literalmente empurra o time. Uma torcida de trabalhadores. O futebol “de verdade” da segunda divisão inglesa é o “kick and rush”, ou seja, chutão para frente e correria. Muita dedicação e pouco talento. Por mais que a qualidade dos jogos não seja nem de longe a mesma da primeira divisão, a badalada “Premier League”, que é o melhor campeonato nacional do mundo, a segunda divisão inglesa motiva seus torcedores, porque é muito mais autêntica. Diante dos jogos altamente competitivos, mas também muitas vezes burocráticos, repetitivos, o torcedor prefere o bom e velho “kick and rush” da segunda divisão.
Quando os trabalhadores perdem a possibilidade de freqüentar os estádios, o futebol se descaracteriza e se transforma num espetáculo televisivo. A classe operária é a alma do futebol. O hábito de torcer ombro a ombro, sofrer junto nas derrotas e comemorar as vitórias, a “religião” de torcer para um time, é parte da identidade de classe que unifica os trabalhadores. Posteriormente, já num momento de degeneração, surgem as gangues de “hooligans” e torcedores organizados, não mais para torcer, mas para brigar com outras gangues rivais. A elitização do público, por meio de ingressos proibitivos, é uma forma de tentar retirar as gangues do cenário, mas que retira também os trabalhadores.

Ideologia da competição x competição esportiva
A transformação do futebol em um negócio bilionário é parte do processo multissecular de mercantilização de todas as esferas da vida, descrito por Marx e Engels no Manifesto Comunista, no longínquo 1848. “A burguesia despojou de sua auréola toda a ocupação até então considerada honrada e encarada com respeito. Converteu o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados”. O capitalismo transformou em um negócio de compra e venda todas as atividades, todas as profissões, incluindo hoje os jogadores de futebol. Marx e Engels foram gênios visionários por terem identificado esse processo em seu nascedouro, no século XIX (e também por prescrever a única forma de enfrentar tal processo e alcançar a emancipação humana: a revolução socialista). Agora, vivemos no momento de consumação da ascensão histórica do capital, quando tudo já está transformado em mercadoria.
Uma vez que a realidade é dialética, as suas diversas esferas se influenciam reciprocamente, e absorvem características umas das outras. Se o esporte se torna mercadoria, a mercadoria também se converte em competição. A ideologia da competição se espalha da prática esportiva para as demais atividades humanas. Desempenho, performance, metas, recordes, resultados, liderança, vitória e derrota, são categorias que passam a vigorar em esferas as mais díspares. Se fala em “performance sexual”, se mede a qualidade dos filmes pelo resultado na bilheteria (ou pela quantidade de prêmios), se corre no trânsito para chegar na frente (de quem?), se vive com pressa, tentando “render mais”, sempre mais. A psicologia dos indivíduos é contaminada por essa obsessão competitiva, produtivista, quantitativa, tomada emprestada da competição esportiva, pela pressão da competição econômica.
A ideologia da competição, transportada para a vida privada dos indivíduos, também não se pauta pelas características da própria competição esportiva em si. Quando o esporte se torna uma atividade econômica, a sua própria natureza é descaracterizada. Afinal, a competição esportiva tem uma lógica diferente da competição econômica. No esporte existem regras para o jogo, o resultado tem que ser obtido dentro das quatro linhas, é requerido um conjunto de habilidades especiais que somente se obtém com treinamento e trabalho duro. O resultado final, enfim, é “justo”, dentro daquilo que é estabelecido quando o jogo começa. A competição econômica, por outro lado, não tem quaisquer limites, como vimos acima.

A educação física para o capital
Na sua origem moderna, o esporte também teve uma função de disciplinamento e “educação” dos indivíduos para um modo de vida adequado à lógica do capital. Os esportes tais como os conhecemos hoje, tanto as modalidades olímpicas quanto o futebol, surgiram entre a metade e o fim do século XIX. Nessa época estava se impondo a industrialização e a urbanização capitalistas. Era preciso adaptar os trabalhadores e a população em geral para uma vida pautada pelos ritmos da produção capitalista.
A semana inglesa de 7 dias, a jornada de trabalho (objeto de dura disputa do nascente movimento operário contra a patronal, até ser reduzida para 8 horas no século XX), o ritmo regular e repetitivo das máquinas, a monotonia das tarefas segmentadas da produção taylorista-fordista, os sinais de trânsito, a contagem do tempo em minutos e segundos, etc., tudo isso teve que ser imposto sobre uma população acostumada a regular o ritmo de vida pelos ciclos da natureza. Durante milênios a humanidade regulou suas atividades pelas estações do ano, épocas de frio e calor, de chuva e de seca, de neve, de colheita, pela claridade do dia, etc. Os ciclos de atividade e descanso seguiam esses ritmos, sazonais, intermitentes, mais ou menos regulares, conforme as regiões e os tipos de atividade. Os ciclos artificiais da vida urbana, do trabalho industrial, do controle burocrático, etc., foram implantados à força, por meio de multas, punições, regulamentos, castigos dos capatazes, bedéis, fiscais, guardas de trânsito, etc.
Paralelamente a esse aparato repressivo, o ritmo de vida artificial adequado à produção capitalista foi imposto também com a ajuda persuasiva mais suave e lúdica das práticas esportivas. Os esportes se popularizam e educam a população, acostumando-a à contagem do tempo, apito inicial e apito final, aquecimento, intervalo, quatro linhas, pontuação, regras, arbitragem, etc., toda uma coreografia ordenada dos gestos que se espalha dos esportes para outras esferas da vida cotidiana. Até as artes marciais, patrimônio das classes aristocráticas do Extremo Oriente, também se popularizam (o judô foi criado por Jigoro Kano em 1920, a partir das técnicas da finada classe dos samurais para as lutas sem armas, especialmente para educar a população do moderno Japão imperialista).
Os próprios efeitos benéficos das práticas esportivas e da atividade física para a saúde ficam hoje em segundo plano, já que o esporte, o hábito de freqüentar academias, etc., também está submetido à ideologia geral da competição que ajudou a difundir, e que o submete de outras maneiras. Dentro das próprias academias, os freqüentadores competem para mostrar mais resultado. O objetivo não é a saúde, mas a exibição de um “corpo perfeito”, conforme um padrão de beleza artificialmente imposto. Até mesmo as artes marciais, as mais nobres e requintadas formas de cultivo do corpo e da mente, se transformaram em UFC.

Um chute que saiu pela culatra
Em resumo, a imposição de um modo de vida adequado à reprodução do capital contou com a colaboração imprevista da popularização das práticas esportivas. Mas essa popularização teve um outro efeito, que não foi previsto. Na época, em fins do século XIX, esse efeito educativo das práticas esportivas sobre o conjunto da população não era a intenção original dos criadores do esporte moderno. As Olimpíadas modernas e o próprio futebol foram criados com uma concepção aristocrática, um ideal cavalheiresco burguês, inspirado em uma idealização da antiga prática greco-romana de cultivo do corpo.
O futebol moderno surgiu nas escolas públicas inglesas na metade do século XIX, como parte desse projeto burguês e elitista. Em fins do século, entretanto, o jogo já tinha sido adotado pela classe operária, que começou a fundar clubes de futebol por toda parte. Marinheiros ingleses difundiram o jogo pelos quatro cantos do mundo. O futebol se popularizou mais do que qualquer outro esporte, devido a uma série de características: a “jogabilidade”, a plasticidade do jogo, a liberdade de criação que oferece, a possibilidade de ser jogado em qualquer terreno, em qualquer espaço, sem requerer equipamentos especiais, nem, principalmente, qualidades físicas excepcionais, podendo ao contrário ser praticado por qualquer biotipo, bem como a simplicidade das regras, e a imprevisibilidade dos resultados.
Ao contrário dos demais esportes coletivos, no futebol o melhor time pode perder. Um gol vale mais do que uma dúzia de chances perdidas. Um time pode jogar um jogo inteiro por uma bola apenas, e vencer. Uma quantidade enorme de fatores interfere nos resultados, em combinações variáveis: individualidade, qualidade do campo, pressão da torcida, erro de arbitragem, preparo físico, entrosamento, esquema tático, ou puro e simples azar. Essas características mantém viva a disputa durante os 90 minutos. Até o apito final, qualquer coisa pode acontecer. Com isso, a motivação de quem joga permanece viva até o final, e também a de quem assiste.
Com essa imprevisibilidade e variedade, o futebol seduziu torcidas pelo mundo inteiro, criou verdadeiras religiões. Mas sempre com uma base social operária. Hoje, em tempos de mercantilização e mundialização, e também de corrupção e tramóias, cada vez mais torcer por bom futebol se tornará um ato de nostalgia e resistência.

Daniel M. Delfino
Junho 2015