3.11.15

95 anos da Revolução Russa: outros outubros virão...



No mês de outubro* de 2012 comemoram-se 95 anos da Revolução Russa de 1917, a primeira revolução em que a classe trabalhadora conseguiu tomar o poder e mantê-lo em um país inteiro, com o objetivo de iniciar uma transição ao socialismo. Os problemas que se seguiram nessa tentativa de transição, e que acabariam resultando na derrota dos objetivos da revolução, constituem um objeto de estudo da maior importância neste início do século XXI, quando as crises do capitalismo recolocam na agenda o debate sobre a inviabilidade da permanência desse sistema e a necessidade da construção de uma alternativa societária para além do capital. O texto que apresentamos a seguir, longe de pretender esgotar o estudo sobre a Revolução Russa, constitui um simples e breve convite à reflexão e ao debate sobre esse tema crucial, levantando alguns elementos históricos e teóricos, pela impossibilidade de abordar todos os aspectos de um processo tão rico.

A Rússia antes da revolução
A Rússia era no início do século XX um dos mais poderosos países da Europa e ao mesmo tempo um dos mais atrasados. Poderoso pela extensão do seu império, o maior do mundo, com mais de 20 milhões de km quadrados, fazendo fronteira com a Alemanha num extremo e o Japão no outro, cerca de 130 milhões de habitantes, e vastas riquezas naturais, como minérios, florestas, terras férteis, etc. Atrasado pela sua configuração econômica, social e política, com 90% de sua população sendo camponesa e analfabeta e vivendo em situação semifeudal, um regime político ainda absolutista centralizado na figura do imperador (chamado czar), sem constituição, nem parlamento ou liberdade de reunião e de expressão, nem sequer separação entre Estado e igreja (ortodoxa), que controlava a educação, e baseado na opressão sobre dezenas de pequenas nacionalidades e etnias que compunham praticamente metade da população do império.
No centro dessas contradições estava uma pequena mas concentrada classe operária, em cidades como a capital São Petersburgo e Moscou, que se industrializavam aceleradamente. Esse proletariado era extremamente explorado, com jornadas que chegavam a 14 hs diárias, salários de fome, moradias precárias e falta de liberdade política e de organização. Ao mesmo tempo, a pequena burguesia e a burguesia russas alcançavam o nível cultural dos países europeus mais avançados, produzindo gênios como os escritores Puchkin, Tolstoi, Dostoiévski, o compositor Tchaikóvski, cientistas como Mendelev.
A oposição política tinha que ser clandestina e sua tradição vinha desde o movimento “narodnik”, (“populistas”, em russo), de meados do século XIX, que pretendia fazer uma revolução com base na maioria camponesa. O método dos narodniks era o de atentados terroristas, que chegaram a assassinar o czar em 1881, mas nunca conseguiram levantar os camponeses. Ao contrário, conseguiram apenas endurecer a repressão, que era a mais feroz da Europa. Em fins do século XIX começam a se organizar na Rússia grupos anarquistas e marxistas. Surge também o partido Socialista Revolucionário (SR), que apesar do nome, não era marxista, e tinha base camponesa.
A repressão não diferenciava os anarquistas e SRs, que seguiam os métodos terroristas dos narodniks, com relação aos marxistas, com seu paciente trabalho de organização entre os operários: todos os grupos eram igualmente caçados pela polícia. A entrada na militância trazia o risco permanente de ser condenado à morte e a certeza absoluta de passar inevitavelmente algum tempo na prisão, deportação para a Sibéria ou exílio. Mesmo com essa caçada implacável às lideranças, o movimento operário russo era muito combativo e organizava fortes greves e manifestações, que impunham vitórias parciais nas fábricas.

O movimento socialista antes da revolução
Já no início do movimento marxista russo destaca-se a liderança de Lênin, que a partir da revista “Iskra”, em que publicou seu célebre livro “Que fazer?”, defende a formação de um partido marxista revolucionário clandestino e centralizado para driblar a repressão e ao mesmo tempo enraizar-se entre os operários. A ala liderada por Lênin passou a ser conhecida como “bolchevique”, que em russo quer dizer “maioria”, refletindo a votação dos estatutos do partido socialista russo em seu congresso de fundação (na época chamava-se partido social-democrata, como seus congêneres na Europa), como contraposição aos “mencheviques” (minoria), que defendia um partido composto por militantes e simpatizantes sem distinção e sem tarefas definidas. Anos depois, os mencheviques se tornariam maioria, mas o nome se manteve, e as duas alas acabaram formando partidos separados.
Também se destacou a figura de Trotski, que presidiu o “soviet” de São Petersburgo na revolução de 1905 (e não pertencia a nenhuma das duas alas). A palavra soviet quer dizer “conselho” e denomina os organismos formados por delegados operários com mandatos revogáveis, eleitos por fábrica ou por bairro para organizar uma greve geral, que se transformou em insurreição. A revolução de 1905 foi o “ensaio geral” para a revolução de 1917, tendo sido deflagrada pela insatisfação da população com as penúrias provocadas pela guerra contra o Japão (1904-1905, com derrota da Rússia). A revolução de 1905 foi derrotada, mas resultou em algumas conquistas democráticas, como a eleição da Duma (parlamento), ainda sem liberdade para os partidos operários. De qualquer forma, nos anos seguintes a situação dos operários e camponeses não melhorou em nada.
Em 1917, a Rússia estava novamente em guerra, participando da I Guerra Mundial (de 1914 a 1918) ao lado da França e Inglaterra contra a Alemanha, a Austro-Hungria e a Turquia otomana. A guerra foi uma grande derrota para o movimento socialista internacional. Os partidos socialistas na Alemanha, França e Inglaterra, ao contrário da Rússia, eram legalizados, organizavam milhões de operários e assalariados (que já eram a maioria da população nesses países) e conseguiam eleger para o parlamento burguês bancadas minoritárias mas ainda assim numerosas. Esses partidos socialistas estavam porém adaptados a uma política reformista (acreditavam que se poderia chegar ao socialismo por reformas graduais do capitalismo, sem a necessidade de uma revolução), apesar da oposição de minorias revolucionárias no seu interior.
O reformismo provou sua inviabilidade quando os deputados socialistas votaram a favor de suas respectivas burguesias nacionais no parlamento de cada país para autorizar seus governos a travar a guerra interimperialista. A votação dos créditos de guerra determinou a falência da II Internacional (ou Internacional Socialista, depois da I Internacional que foi dirigida por Marx em meados do século XIX), que reunia os partidos socialistas e se provou inútil no teste decisivo que era a guerra. A política defendida pelos marxistas revolucionários era de que, em caso de guerra entre as potências imperialistas, cada partido socialista deveria lutar para derrubar o governo de seu país, iniciar uma revolução socialista e parar a guerra que matava milhões de trabalhadores dos dois lados. Mesmo com a dissolução da II Internacional, aquela minoria revolucionária permaneceu ativa durante a guerra e seguiu aplicando a política marxista. Os bolcheviques eram parte dessa minoria.

A revolução de outubro
A população russa sofria enormemente com a guerra: calcula-se que 5 milhões de soldados morreram, desapareceram ou foram aprisionados, de um total de 15 milhões que foram mobilizados. Os operários e camponeses eram sobrecarregados com a necessidade de trabalhar mais para sustentar o esforço de guerra. O frio e as doenças campeavam, faltava pão nas cidades e no início de 1917 começam a se alastrar protestos contra a guerra e motins entre as tropas. Multiplicam-se as greves e ressurgem os soviets. A novidade é que se formam soviets de soldados e marinheiros, que destituem seus comandantes e deliberam voltar para casa, abandonando o front. Formam-se também soviets de camponeses, que confiscam as terras da nobreza e a redistribuem entre os que a trabalham. Nesse clima, o regime czarista não consegue se sustentar e renuncia em fevereiro. Forma-se um governo provisório da burguesia, com a participação minoritária de SRs e mencheviques (é a chamada “revolução de fevereiro”).
Em abril de 1917, Lênin, que estava exilado, retorna à Rússia e escreve as famosas “Teses de abril”, em que expressava a posição de que o governo provisório era ainda um governo burguês servil ao imperialismo anglo-francês e que jamais concederia as reivindicações populares: pão, paz e terra. Por isso, os bolcheviques, que davam apoio crítico ao governo provisório, deveriam retirar esse apoio, passar à oposição, organizar os trabalhadores e preparar a tomada do poder. Lênin convence o partido bolchevique a adotar sua política. Sucedem-se algumas idas e vindas, que incluíram uma fracassada tentativa dos operários de tomar o poder em julho e uma bem sucedida defesa contra o golpe de estado reacionário do general Kornilov. Nesse meio tempo os militantes bolcheviques se tornam maioria nos soviets.
Instala-se uma situação de “duplo poder”, em que o governo provisório formalmente ainda existe, mas os soviets exercem uma autoridade cada vez maior. A tomada do poder acaba acontecendo em outubro: em nome de todos os soviets de operários, soldados e camponeses (que estavam reunidos em congresso na capital), uma milícia vermelha ocupa o Palácio de Inverno, em que se reunia o governo provisório, e instala o governo dos comissários do povo, sob a chefia de Lênin e Trotsky (cuja organização havia se integrado ao partido bolchevique). É a revolução de outubro.
Nesse primeiro momento da revolução praticamente não houve violência, pois a burguesia e os representantes do antigo regime não apresentaram quase nenhuma resistência. Inclusive, aqueles que pegaram em armas foram liberados com a promessa de não lutarem contra o governo soviético. Esse excesso de condescendência custaria caro: esses mesmos militares reacionários se tornariam mais tarde os organizadores do exército branco, reunindo restos do antigo exército czarista para lutar contra a revolução. A guerra civil entre os brancos e vermelhos, que se arrastaria até 1921, seria tão ou mais penosa para o povo russo do que a I Guerra Mundial.

A revolução no cenário mundial
A revolução de outubro abriu um breve período de experimentação social e política que foi o mais avançado que a humanidade já conheceu. O partido bolchevique passa de alguns milhares de militantes clandestinos a mais de um milhão de membros. O Estado e as instituições herdadas do czarismo são dissolvidas e formam-se as instituições de um Estado operário de transição ao socialismo. Milhões de operários e camponeses em todo o país participavam ativamente da vida política, nas assembleias, nos soviets, nos sindicatos, nas administrações locais, nos batalhões do exército vermelho, nos diversos conselhos e instituições operárias criados para gerir a saúde, a educação, os transportes, as fábricas, etc., e administrar coletivamente cada aspecto da vida social. Avança-se enormemente na emancipação feminina com uma legislação que autoriza o divórcio e a liberdade de orientação sexual e a criação de refeitórios e lavanderias públicos. Até mesmo a cultura floresceu, com destaques para as artes gráficas, o cinema de Eisenstein, a poesia de Maiakovski, a pedagogia de Vigotsky, o direito com Pachukanis, etc.
Entretanto, esse período de experimentação foi asfixiado pelas dificuldades extremas da guerra civil e pelo peso do atraso russo. A burguesia russa e remanescentes do antigo regime não aceitaram a tomada do poder e montaram os exércitos brancos. Da mesma forma as potências imperialistas, com o fim da guerra em 1918, rapidamente deslocam suas tropas para esmagar o regime soviético. Pretendia-se afogar a revolução em sangue, como foi feito com a Comuna de Paris em 1871. Mesmo porque, o exemplo russo estava se espalhando: motins das tropas e greves gerais aconteciam em diversos países da Europa, ocupações de fábricas se espalham na Itália, revoluções são desencadeadas na Alemanha, Hungria, Turquia.
Isso explica a obsessão das burguesias em esmagar a revolução russa. Ao mesmo tempo, explica o prestígio que a revolução russa adquiriu no mundo inteiro. Em dezenas de países criam-se partidos comunistas filiados à III Internacional (fundada pelos bolcheviques em 1919), resultado do entusiasmo de milhares de ativistas e militantes de diversas correntes e de milhões de trabalhadores pelo exemplo russo (além disso, os crimes cometidos mais tarde pelo stalinismo em nome do socialismo só seriam conhecidos mundialmente na década de 1950).
Na verdade, os revolucionários russos compreendiam a sua atividade como parte da luta pela revolução internacional. Desde Marx sabia-se que a transição ao socialismo dependeria das forças produtivas dos países mais desenvolvidos. Por isso, a revolução socialista, mesmo que começasse nos países atrasados, deveria abranger o mundo inteiro, para viabilizar a socialização das forças produtivas dos países mais desenvovidos, ou seja, socializar a riqueza e não a miséria. A tarefa dos revolucionários que atuavam nos “elos frágeis” da cadeia do capital (como Lênin definia a Rússia) era tomar o poder para constituir um ponto de apoio para a revolução nos países avançados. Durante os anos mais brutais da guerra civil, os bolcheviques entendiam que deveriam se manter no poder, à espera da ajuda que viria da revolução na Europa, especificamente na Alemanha, em que se concentrava o proletariado mais numeroso e politizado do mundo. Tragicamente, a revolução nesses países não aconteceu e os levantes que se estenderam até o início da década de 1920 foram derrotados.

A burocratização e o stalinismo
A revolução russa venceu a guerra e a intervenção estrangeira, cujas últimas tropas foram expulsas em 1922, mas permaneceu isolada, sozinha contra o mundo. Calcula-se que os combates da guerra mundial e da guerra civil revolucionária subseqüente tenham custado a vida de 14 milhões de pessoas. Outros 17 milhões morreram de fome, frio e doenças. Houve até casos de canibalismo. A população de São Petersburgo, Moscou (para onde se transferiu a capital) e das grandes cidades caiu pela metade. Os operários foram reduzidos a menos de 200 mil. A produção industrial caiu a cerca de 15% do que era em 1913, último ano antes da guerra. O PIB do país perdeu 60% do seu valor.
A economia foi virtualmente paralisada, os camponeses se recusavam a vender alimentos para as cidades, que por sua vez não tinha produtos para trocar com o campo. O governo soviético foi forçado a formar batalhões para confiscar o trigo dos camponeses. Os trens que levavam mantimentos para as cidades eram assaltados. Bandos armados roubavam e matavam sem qualquer controle em todas as regiões do país, ora em nome dos brancos, ora em nome dos vermelhos. Demorou anos para que se restabelecesse uma estabilidade mínima.
Nessas condições extremas, as experiências socialistas iniciais se transformaram em socialização da miséria. A reconstrução do país foi extremamente difícil, com a produção assim paralisada, e a ausência de comércio exterior (demoraria anos para que outros países aceitassem fazer comércio com a Rússia, agora chamada de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS). Não havia técnicos, engenheiros, médicos, advogados, administradores, professores, cientistas, ou restaram pouquíssimos, pois as camadas médias intelectualizadas, a pequena burguesia e a burguesia, se dividiu entre os que fugiram do país, os que se engajaram na guerra civil ao lado dos brancos (e foram mortos) e os que se opunham e sabotavam o regime. Aquela vanguarda de operários e camponeses que participavam dos soviets no início da revolução ou foi morta na guerra civil ou foi deslocada para administrar as fábricas, os serviços públicos, as prefeituras locais, o exército vermelho. Com isso, as experiências democráticas iniciais cessaram, já que não havia mais base social.
Quando o país começa a reconstruir sua indústria, uma nova classe operária é formada, composta por trabalhadores recém-chegados do campo, sem a experiência da geração que vinha de 1905 e tinha feito a revolução em 1917. Ao mesmo tempo, uma camada de funcionários do antigo regime, aventureiros e oportunistas de toda a espécie, sem qualquer identificação com o marxismo e a militância revolucionária, começa a ingressar no partido. O partido bolchevique assume todas as funções do Estado, e aceita o ingresso de qualquer pessoa minimamente letrada, pois num país de maioria analfabeta, era preciso fazer com que as coisas funcionassem minimamente. Esses novos administradores “bolcheviques”, por sua vez, exigem privilégios em relação aos operários, diferenciando-se socialmente da classe trabalhadora.
Essa camada de administradores privilegiados, que misturava restos operários exauridos pela revolução e a guerra, restos da pequena burguesia e da burguesia, restos do aparato do Estado czarista, torna-se o embrião de uma casta que viria a ser chamada de “burocracia”. Aos poucos a burocracia se torna maioria no próprio partido bolchevique. Com a morte de Lênin em 1924 (já estava afastado por doença desde 1922), o representante da burocracia, Stalin, vence a disputa contra Trotsky, que representava o setor operário e revolucionário que havia se tornado minoritário. Stalin se torna o dirigente máximo do partido e do Estado soviético, que de Estado operário havia se convertido em Estado burocrático com restos proletários. A ditadura do proletariado se transforma em ditadura sobre o proletariado.

O fim da democracia soviética
As conquistas democráticas da revolução vão se fechando uma a uma. Primeiro, durante a guerra civil, os demais partidos, como os SRs, mencheviques e anarquistas, cuja maioria apoiava os exércitos brancos da burguesia, foram proibidos de funcionar, mesmo a sua fração minoritária que aceitava o regime. Depois, no interior do próprio partido bolchevique, foram proibidos as tendências e frações, como a Oposição Operária. Com isso, o partido substituiu a classe trabalhadora na tomada de decisões. Ao mesmo tempo, os dirigentes substituiram o partido e sua militância, tomando todas as decisões na cúpula do comitê central, sem qualquer tipo de controle democrático. Essas medidas foram tomadas ainda com Lênin e Trotsky no comando, e eram entendidas como provisórias, em função do estado de emergência da guerra civil e da luta contra a intervenção estrangeira, que exigia decisões rápidas. A intenção dos revolucionnários era de que as medidas democráticas fossem restabelecidas assim que possível, o que acabou não acontecendo. Mesmo porque, não havia base social para os organismos de autodeterminação operária, como os soviets, já que os operários tinham se engajado na guerra e na reconstrução do estado soviético.
As medidas provisórias se tornaram permanentes e foram bastante convenientes para a burocracia depois que esta assume o controle do partido. Por mais que a Oposição de Esquerda liderada por Trotsky lutasse para manter a política revolucionária, não havia mais base social, pois a nova classe operária era iletrada, inexperiente, despolitizada, incapaz de lutar pela volta da democracia operária. O fenômeno do stalinismo, corrente política que representa os interesses da burocracia, não se explica portanto apenas pela traição de um grupo de dirigentes burocratizados, mas por um processo social de exaustão da classe operária russa. A única esperança de regeneração da revolução russa seria a revolução nos países avançados, que não aconteceu.
Pelo contrário, o stalinismo assumiu o controle da III Internacional e dos partidos comunistas do mundo inteiro. A URSS se tornou “modelo” de socialismo, o que era bastante natural, dado o prestígio do partido bolchevique sobre os revolucionários do mundo inteiro. Mas ao invés de produzir novas revoluções, a política stalinista produz derrotas trágicas, como na Alemanha em 1923 e na China em 1927, e outras nas décadas seguintes. Basta dizer que a miopia política da III Internacional, que considerava o antigo partido socialista alemão tão inimigo quanto o nazismo, abriu caminho para a subida ao poder de Hitler. Abandonando o marxismo revolucionário, o stalinismo defende a possibilidade do “socialismo em um só país”, a URSS, ignorando o atraso das forças produtivas. Depois de uma experiência de economia de mercado com controle estatal de 1921 a 1928, passa-se à supressão do mercado, à coletivização forçada do campo e à industrialização acelerada sob planificação centralizada e autoritária da burocracia.
Essa política levou a uma desorganização total da economia, com milhões de mortos pela fome, outros milhões mortos pela repressão estatal e milhões submetidos a trabalhos forçados em campos de concentração. Mas para o mundo exterior, a URSS parecia um modelo de sucesso na década de 1930, já que se industrializava rapidamente, enquanto o mundo capitalista passava pela pior crise da sua história, a Grande Depressão detonada pela queda da bolsa estadunidense em 1929 e que se arrastaria pela década de 1930.
Além de impor uma exploração brutal sobre a classe operária, o regime da burocracia perseguia qualquer tipo de oposição política por meio do terror de Estado. A Oposição de Esquerda foi banida, seus dirigentes executados, presos, exilados ou forçados a se retratar e colaborar com a burocracia. Trotsky foi forçado a exilar-se em 1928 e a partir do exterior desenvolveu uma vastíssima obra de crítica da burocratização e a serviço da organização de frações militantes de oposição ao stalinismo no movimento comunista internacional, concretizando-se na fundação da IV Internacional em 1938.
Mesmo tendo conseguido silenciar totalmente a oposição interna, o stalinismo não descansou enquanto não extinguiu todos os símbolos vivos da revolução. Montam-se os infames “processos de Moscou”, em que os remanescentes da antiga direção bolchevique, mesmo aqueles que já colaboravam com Stalin, foram acusados de serem agentes do imperialismo e executados. Trotsky, que tinha se refugiado no México, foi assassinado por um agente da polícia secreta stalinista em 1940.

Problemas do “modelo” soviético
A necessidade de silenciar a oposição não era produto apenas da paranóia de Stalin e seu medo da liderança de Trotsky. Era resultado do fato de que na base social da própria URSS o descontentamento era muito grande. Os trabalhadores russos haviam feito a revolução para trabalhar menos e melhorar suas condições de vida. O regime exigia que trabalhassem mais e a vida era pior. Não era possível fazer greves nem se organizar coletivamente. A burocracia controlava implacavelmente todos os espaços públicos. Com isso, a única forma de protesto que restava aos trabalhadores era a “sabotagem” do trabalho, o descuido, a lentidão, o desleixo. Contra esse fenômeno, a burocracia estimulava o “stakhanovismo”, a imposição de metas individuais impossíveis de serem alcançadas por todos, mas que resultavam em premiações para os que excepcionalmente as atingiam.
A polícia secreta (GPU, depois NKVD, depois KGB) estava por toda parte e contava com mais de 2 milhões de agentes. Estimulava-se a denúncia e a delação dos suspeitos de “crimes ideológicos”, nome que se dava para qualquer manifestação de descontentamento, qualquer murmúrio nos corredores. As artes, a cultura em geral e até a ciência foram reprimidos brutalmente. Com isso, o “socialismo real” ou “socialismo realmente existente” da URSS (por contraposição ao socialismo que os marxistas revolucionários opostos ao stalinismo defendiam) se tornou sinônimo de censura, ditadura, partido único, culto da personalidade do líder, polícia secreta, terror de estado, medo e delação. A burguesia faria (e faz até hoje) uma vasta campanha de propaganda via mídia, academia, igrejas, etc., para identificar o socialismo com as desgraças que aconteceram na URSS sob regime stalinista. Configura-se uma verdadeira contra-revolução burocrática, que expropria as conquistas operárias da revolução e estabelece um novo regime de exploração. O Estado soviético perde seus últimos restos proletários e se torna puramente burocrático.
O “modelo” soviético se espalhou para diversos países no pós-II Guerra, no leste europeu (Alemanha Oriental, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária) e em outros continentes, e mesmo naqueles que romperam com o controle direto do stalinismo (China, Cuba, Vietnã, Coréia do Norte, Iugoslávia, Albânia) o sistema burocrático era o mesmo.
Com todas as perdas da I Guerra Mundial, da guerra civil revolucionária, do terror e das irracionalidades da planificação stalinista, da II Guerra Mundial, ainda assim, 40 anos depois da revolução, a URSS estava na frente dos Estados Unnidos na corrida espacial, lançando o primeiro satélite em 1957 e o primeiro astronauta em 1961. Entretanto, em longo prazo, prevalece a tendência à estagnação e ao retrocesso. O sistema burocrático de planificação centralizada era inviável em longo prazo. O próprio tamanho da casta burocrática era insustentável: para controlar os trabalhadores, o aparato de supervisores, chefes de seção, gerentes, diretores, funcionários do Estado, do exército, da KGB, do partido e seus dirigentes, chegou a contar com mais de 10 milhões de pessoas.
A ineficiência da economia burocraticamente planificada era gritante. Para ficarmos em apenas um exemplo das muitas irracionalidades, a produção de tratores era medida em toneladas. Assim, as fábricas montavam tratores mais pesados, para cumprir a meta de uma certa quantidade de toneladas de tratores, mas esses tratores superpesados eram obviamente imprestáveis na lavoura... Por mais que a expropriação da burguesia e o fim da anarquia do mercado capitalista tenha resultado em conquistas notáveis, o modo burocrático como a sociedade passou a ser gerida faria com que as conquistas se esgotassem e logo se materializasse um retrocesso. Essa ineficiência produtiva ameaçava a prórpia sobrevivência da sociedade, seja por não poder fornecer os itens de consumo básicos para a maioria da população (para não falar de concorrer com o consumismo capitalista), seja para manter a dianteira na corrida tecnológica e armamentista (os Estados Unidos tomaram a dianteira e chegaram na Lua em 1969). A ineficiência burocrática só deixava duas opções possíveis para seus dirigentes: o retorno ao mercado (cujos primeiros ensaios datam já da década de 1960) ou o retorno da democracia operária dos primeiros anos da revolução.
A primeira opção era inevitável para a burocracia, por dois motivos: primeiro, a pressão da economia mundial, em que prevalecia o mercado e a lei do valor, se impunha sobre as economias burocraticamente planificadas, ao expor a sua ineficiência na comparação com a produtividade dos países capitalistas desenvolvidos; e segundo, o retorno da democracia operária significaria a liquidação da própria burocracia enquanto camada dirigente, que seria substituída pelos trabalhadores e seus organismos de autodeterminação. Assim, a burocracia preferiu restaurar o capitalismo, convertendo-se lentamente em burguesia, num processo que se consumaria na década de 1980.
A lição fundamental é de que, sem a democracia operária, a elevação da consciência dos trabalhadores, a democracia direta, o sistema de conselhos de delegados eleitos pela base e com mandatos revogáveis, o controle operário da produção, a democratização de todas as instâncias da vida social, o estabelecimento de novas relações sociais horizontais e não-hierárquicas, não é possível nenhuma transição ao socialismo.

Epílogo...
A queda do muro de Berlim em 1989 e da URSS em 1991 foram comemorados pela burguesia do mundo inteiro como “fim do socialismo”, ou mesmo “fim da história”, pois foi tomada como uma demonstração da vitória do capitalismo. A queda dos estados burocráticos virou a balança a favor do programa neoliberal e abriu caminho para uma ofensiva política contra a classe trabalhadora, com ataques sobre os direitos trabalhistas e sociais, privatizações, desregulamentação, abertura dos mercados, especulação financeira, etc. Essa ofensiva durou pelo menos duas décadas e no seu início foi embalada no discurso da “globalização”, apresentada como uma promessa de prosperidade para toda a humanidade através da liberdade de mercado e da democracia (burguesa). A ofensiva foi também ideológica, com filósofos escrevendo sobre a “morte do homem”, “morte do sujeito”, “morte da razão”, instalando o clima do pós-modernismo, e sociólogos falando sobre o “fim da classe trabalhadora”, “sociedade pós-industrial”, “sociedade do conhecimento”, “aldeia global” e outras bobagens.
A base material para a expansão neoliberal foi a incorporação das sociedades em que a burguesia havia sido expropriada, como as do leste europeu, a URSS, China, Vietnã, etc., em que vivia praticamente um terço da humanidade (Cuba é a última candidata a entrar nessa trágica lista pelas mãos da burocracia castrista), que retornaram ao mercado mundial como países capitalistas. A entrada de centenas de milhões de trabalhadores no circuito da exploração capitalista na condição de mão de obra barata provocou um terremoto no mercado mundial de força de trabalho, forçando a queda dos salários e direitos trabalhistas no mundo inteiro. Esse processo de rebaixamento das condições de vida dos trabalhadores foi também facilitado pela retirada dos partidos e organizações que ao menos nominalmente representavam a classe operária, os quais, sob o pretexto de que o projeto socialista estava “derrotado” e o capitalismo era o “modelo vencedor”, deixaram de defender os trabalhadores e de lutar por reformas a seu favor, passando alegremente para a administração do capitalismo. Exemplo acabado desse processo foi a trajetória do PT e de Lula no Brasil.

… ou recomeço?
Ao entrarmos na segunda década do século XXI, o capitalismo atravessa uma das piores crises de sua história. As promessas da “globalização” neoliberal se converteram em aumento da instabilidade, das guerras, do desemprego, da miséria, das doenças, da fome, da violência, da destruição ambiental. A crise econômica iniciada em 2008 prossegue sem solução e demonstra que, mais do que uma alternância linear de crises e períodos de prosperidade, vivemos na verdade um período de crise estrutural do capitalismo, no qual as crises econômicas são cada vez mais profundas e duradouras, e os períodos de crescimento são cada vez mais breves e localizados em alguns países e regiões.
As “soluções” utilizadas pela burguesia para administrar a crise num determinado momento (entrega do dinheiro do Estado aos bancos e instituições financeiras) trazem um alívio imediato mas tornam-se a causa de novas recaídas na crise no momento seguinte (explosão do endividamento público nos Estados Unidos e na zona do euro). Isso demonstra que não existe solução definitiva da crise do ponto de vista da burguesia, a não ser por meio de uma destruição de recursos e vidas humanas, como foi feito nas guerras mundiais do passado, que abriram caminho para a renovação do capitalismo (até que algumas décadas depois sobreviesse uma nova e estrutural crise...). Enquanto não apela para uma guerra mundial, a burguesia vai dando sobrevida ao sistema por meio do ataque às condições de vida da classe trabalhadora, impondo demissões, rebaixamento de salários, corte de direitos e benefícios, redução dos gastos sociais em saúde, educação, moradia, etc.
Entretanto, as décadas de derrota e prostração da classe trabalhadora começam a ficar para trás. Os trabalhadores e os povos do mundo inteiro não estão apenas assistindo passivamente aos ataques da burguesia, ao aumento do desemprego, da carestia, da fome e da miséria: estão reagindo por meio de greves, mobilizações, manifestações, protestos, ocupações, numa escala que não se via há muitas décadas e com amplitude mundial. A maior parte desses movimentos ainda não tem muita clareza a respeito da natureza das tarefas que estão colocadas, voltando-se contra os governantes (como os odiados e corruptos ditadores derrubados pela “Primavera Árabe”) ou contra a “ganância' dos banqueiros (caso dos “indignados”, “Ocupar Wall Street” e semelhantes), ou ainda, desencadeando greves gerais com caráter de puro protesto.
Os movimentos voltam-se para aspectos parciais do capitalismo, não contra o sistema como um todo. A única solução para as crises capitalistas, do ponto de vista da humanidade, é a destruição do capitalismo por meio de uma revolução socialista mundial. Para que isso aconteça, será indispensável a intervenção da classe trabalhadora (a classe que controla o intercâmbio do homem com a natureza, que terá condições de reorganizar a produção de forma racional em benefício da humanidade), por meio de seus organismos de luta e autodeterminação. E também por meio da ação de organizações revolucionárias que tenham a clareza programática da necessidade de tomar o poder, destruir o Estado burguês, socializar os meios de produção sob controle dos trabalhadores e estabelecer o regime da democracia operária. Essas são as lições da Revolução Russa para o século XXI. O Espaço Socialista se coloca como instrumento a serviço da construção de uma organização revolucionária dedicada a desenvolver as tarefas da revolução socialista no Brasil.

Bibliografia
As principais obras de referência sobre a Revolução Russa são “10 dias que abalaram o mundo”, do jornalista e socialista estadunidense John Reed, “O ano um da Revolução Russa”, de Victor Serge (militante anarquista que aderiu ao partido bolchevique e depois à Oposição de Esquerda) e as obras de Trotsky como a “História da Revolução Russa”, “A revolução traída”, “Lições de outubro”, entre outras. O Espaço Socialista publicou em 2007 no número zero da revista Primavera Vermelha uma série de artigos sobre a Revolução Russa, disponíveis na internet (http://www.espacosocialista.org/sites/default/files/REVISTA0.pdf).

* a Rússia seguia o calendário juliano, que tinha 13 dias de atraso em relação ao calendário gregoriano, de modo que a data da tomada do poder no dia 25 de outubro correspondia a novembro no ocidente; mesmo assim, a Revolução Russa ficou universalmente conhecida como “Revolução de Outubro”.

Daniel M. Delfino
Outubro 2012


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