5.11.15

A questão do Estado laico e a luta por igualdade - Contribuição para o Encontro LGBT APEOESP Sto. André 2014



Nos últimos tempos temos visto um aumento da influência de políticos que querem impor à sociedade suas visões religiosas. A bancada evangélica vetou a distribuição do kit anti-homofobia para as escolas, e quis autorizar psicólogos da sua religião a oferecer a "cura gay". Essa mesma bancada (contando também com religiosos de outras seitas) também impede qualquer avanço no reconhecimento dos direitos de casais do mesmo sexo, no direito das mulheres de decidir sobre o próprio corpo e praticar aborto em condições seguras, na descriminalização do uso de drogas, etc. Esses fatos colocaram em primeiro plano a discussão sobre a questão do "Estado laico".
O Estado não pode ter religião, ou seja, não pode impor aos seus cidadãos determinados comportamentos, obrigações, proibições, baseado no que uma determinada religião considera moral ou imoral. Essa é a definiçao de Estado laico, mas não é o que temos visto, de acordo com os exemplos acima. Vejamos porque isso acontece. Vamos começar definindo o que é Estado, qual o seu papel nas diversas sociedades e porque é tão difícil termos um Estado laico.

A sociedade de classes, o Estado e a religião
O Estado é a expressão da divisão da sociedade em classes. Desde que a humanidade saiu da idade da pedra e começou a produzir mais do que era necessário para a sobrevivência dos grupos humanos, surgiu a possibilidade de que os grupos se dividissem em duas partes: uma que produz para o sustento de todos, outra que vive do que é produzido pelos primeiros. É o que chamamos de “divisão social do trabalho”, ou “divisão da sociedade em classes”. As primeiras classes sociais foram a dos escravos e dos proprietários. Depois, tivemos vários sistemas em que os proprietários eram donos não de pessoas (escravos), e sim das terras, mas os trabalhadores (servos) eram obrigados a trabalhar nas terras do proprietário.
Os trabalhadores (escravos e servos) muitas vezes se revoltavam contra a imposição de trabalhar para sustentar os outros. Mas para evitar que essas revoltas inviabilizassem a vida das sociedades divididas em classes, as classes dominantes usaram vários instrumentos ao longo da história. Um dos principais é o Estado, em suas diversas formas, desde a época dos reis e imperadores, até a dos governos ditos "democráticos" de hoje. O Estado tem a função de criar a ilusão de que a divisão de classes não existe, como se todos fossem parte da mesma sociedade, da nação, do reino, etc. Quando essa ilusão falha, o Estado possui o controle das forças armadas, exércitos, policias, presídios, etc., não só para fazer a guerra contra outros Estados, mas principalmente, para manter as classes trabalhadoras sob controle.
Outro instrumento das classes dominantes para reforçar sua dominação são as ideologias, entre elas a religião. A religião faz com que os trabalhadores suportem a exploração e as injustiças nesta vida, com a promessa de que serão recompensados na vida após a morte. Algumas religiões, especialmente no mundo cristão, caso da Igreja Católica, tinham tanto poder que mandavam mais que os reis e governantes. A Igreja possuía o monopólio da educação e da escrita. Ninguém aprendia a ler se não fosse clérigo. A Igreja controlava a vida das pessoas com rituais de batizado, casamento, extrema unção, etc. Os bispos, cardeais e papas possuíam terras, cobravam impostos, viviam no luxo, juntamente com a classe dos proprietários.

A dominação dos trabalhadores no capitalismo
O Estado laico surge quando essa forma de dominação, baseada na pura força bruta dos exércitos e na pura embromação da religião, não é mais suficiente. Surge no capitalismo, quando se torna necessário criar um tipo de embromação muito mais sofisticado. No capitalismo, a dominação não é direta, como no caso da escravidão e da servidão. O trabalhador não é obrigado a trabalhar pelo chicote da classe dominante, ele recebe em troca do que produz um salário. Mas o salário é sempre um valor menor do que a riqueza que o trabalhador produz para os seus patrões. Por mais que os salários sejam altos em alguns casos, o lucro dos patrões é sempre muito maior.
Esse sistema tem a vantagem de que o trabalhador pensa que não é escravo. No sistema capitalista, o trabalhador pensa que todos tem oportunidades iguais. Ele acredita piamente que, se trabalhar duro, pode ficar rico igual aos patrões. Ou seja, o trabalhador acredita que os ricos são ricos porque trabalharam muito, e os pobres são pobres porque não trabalham.
O trabalhador não conhece sua própria história, não sabe que a origem da riqueza dos ricos está na violência. Não sabe que povos inteiros, como os nativos americanos, foram quase exterminados para que fosse roubado o ouro, a prata, etc. das suas terras. Não sabe que continentes inteiros, como a África foram invadidos e seus povos escravizados durante séculos. Os trabalhadores imaginam que, se houve alguma violência, ela ficou lá no passado, como se não fosse uma violência cotidiana o roubo diário que é o trabalho assalariado, que rouba o dia quase inteiro, a vida quase inteira do trabalhador. O trabalhador acredita, enfim, no mito da meritocracia, de que se se esforçar muito pode "chegar lá", e de que seu inimigo é o outro trabalhador, e não os patroes.

A origem do Estado laico
Esse mito das oportunidades iguais é a ideologia mais poderosa que existe hoje, substituindo a importância que tinha a religião do passado. Mas para implantar esse mito, a classe dos empresários capitalistas, que nós chamamos de burguesia, teve que lutar muito. Durante a implantação do capitalismo, a burguesia teve que lutar contra as antigas classes dominantes, os nobres e o clero. As classes dominantes do passado baseavam sua dominação na crença de que eram naturalmente superiores, escolhidos por deus, etc. Para implantar seu sistema, a burguesia, que era também uma minoria da sociedade, teve que contar com o apoio da maioria, os trabalhadores. Para conquistar o apoio dos trabalhadores, a burguesia desenvolveu a ideia de que todos os homens são iguais.
Essa ideia era muito revolucionária, e levou os trabalhadores a lutar para derrubar as antigas classes dominantes. São as chamadas “revoluções burguesas”, das quais o maior exemplo foi a Revoluçao Francesa de 1789. Os trabalhadores, ao lado da burguesia, derrubaram o antigo Estado baseado no poder dos nobres pelo nascimento e no poder da Igreja por meio da religião, e criaram um novo tipo de Estado, o Estado moderno propriamente dito, o Estado tal como o conhecemos, que nós chamamos de “Estado burgues”. Esse Estado, na sua certidão de nascimento, que é a Constituição, tem a declaração de que todos são iguais perante a lei. É preciso registrar que essa igualdade perante a lei é um avanço gigantesco na história da humanidade.
Depois de milênios em que os homens acreditaram que alguns eram superiores e inferiores por nascimento, ou por vontade dos deuses, ou por vontade do deus único, essa crença foi substituída pela ideia de igualdade. Essa igualdade perante a lei é também uma igualdade independente da religião. Ou seja, esse Estado burguês é também o que nós chamamos de Estado laico, e nós repetimos, isso é um avanço gigantesco na história da humanidade. Essas revoluções burguesas, que implantaram o Estado laico, tiveram que usar a violência contra a antiga classe dominante. Muitos nobres e clérigos foram decapitados na guilhotina para que se implantasse a ideia de que todos são iguais perante a lei. Então é preciso reconhecer que a burguesia foi muito revolucionária numa certa epoca.

A burguesia se torna conservadora
Mas então, depois que se implanta o Estado burguês, laico, baseado na igualdade perante a lei, e se implanta o sistema capitalista em sua forma completa, acontece uma coisa muito curiosa: a burguesia se torna conservadora. Desde o século XIX, a burguesia não quer mais ouvir falar em revolução, em igualdade, em direitos humanos. Isso acontece porque a classe trabalhadora, que foi à luta pela ideia de igualdade, percebe que não conquistou a igualdade. Percebe que, por mais que não existam mais reis e nobres (ou até existem, como a rainha da Inglaterra), eles nao mandam mais em nada. Mas mesmo assim, a grande maioria dos trabalhadores continua pobre.
É preciso continuar lutando pela igualdade. E não mais a igualdade formal, a igualdade apenas no papel, a igualdade perante a lei. É preciso uma igualdade real, uma igualdade econômica. E não apenas uma igualdade na distribuição da renda, e sim no controle da produção, sem proprietários dos bens de produçao, sem patrões e empregados, sem exploradores e explorados, sem trabalho assalariado, mas com trabalho repartido igualmente para todos, e tempo livre também para que todos desfrutem das conquistas da humanidade. É preciso, enfim, uma igualdade socialista. É nessa luta que nós estamos hoje.
E um dos obstáculos dessa luta é justamente o Estado. Como dissemos no início, o Estado existe para que a população não perceba que existe uma divisão da sociedade em classes, entre dominadores e dominados, exploradores e explorados, empresários capitalistas e assalariados. A população pensa que o Estado é de todos, que o governo representa a todos, que administra para o conjunto da sociedade. É nisso que todos acreditam, mas ao contrário, o Estado, em todas as suas formas, é sempre o Estado das classes dominantes. Era o Estado dos proprietários de escravos no passado, o Estado dos proprietários de terras e do clero depois, e o Estado dos capitalistas hoje.

A religião socorrendo o capitalismo em crise
Mas nós não dissemos que esse Estado burguês, que reconhece a igualdade de todos perante a lei, inclusive independente de religiao (ou seja, o Estado laico) era um grande avanço para a humanidade? Sim, essa forma de Estado é um avanço. Mas depois de conquistar o Estado, dissemos também que a burguesia se tornou conservadora. A burguesia não quer mais ouvir falar em revolução, em igualdade, e muito menos em socialismo. Então, para impedir que as ideias socialistas convençam os trabalhadores a lutar por uma outra sociedade, a burguesia precisa desenvolver outras ideias. Precisa criar novas ideologias, ou reciclar as antigas. O mito da igualdade de oportunidade, de que todo podem chegar lá, etc., às vezes não basta. A força da repressão do Estado também pode não ser suficiente. É preciso usar outras ideias reacionárias para reforçar a dominação, entre elas a religião.
Isso explica o fato de que, nas épocas em que o capitalismo enfrenta crises graves e os trabalhadores, especialmente os mais jovens, estão indo à luta em maior número (é o que está acontecendo hoje em escala mundial), as religiões conservadoras avançam. Essas religiões conservadoras são úteis para a burguesia porque ajudam a dividir ainda mais os trabalhadores. A classe trabalhadora já se encontra dividida na competição por vagas e na luta pelo "sucesso", mas, como não há vagas para ficar rico, e muitos trabalhadores podem perceber isso, a burguesia precisa criar outras formas de divisão. E para isso usa os mitos de que as mulheres são inferiores aos homens, os negros são inferiores aos brancos, a população LGBT é imoral, etc. Esses mitos são difundidos pelas religiões. Pastores evangélicos e também certos ramos da Igreja Católica usam uma interpretação literal da Bíblia para impor uma moral vinda de milênios atras.
Usam a Biblia para defender sexo somente dentro do casamento, somente com fins reprodutivos, somente entre pessoas do mesmo sexo, proibiçao do aborto, etc. A sexualidade, de acordo com a religião e convenientemente para as classes dominantes, deve existir para reproduzir a familia patriarcal e a propriedade privada. As religiões cristãs e monoteístas em geral sempre foram hostis à sexualidade e ao prazer, porque tiram o olhar do homem do além e o trazem para a terra, para o seu próximo. O sexo deve ser reprimido e controlado. Por isso, querem proibir que a populaçao LGBT exerça a sua sexualidade, que não serve para a familia patriarcal, não serve para reproduzir a força de trabalho, não serve para manter a dominação ideológica sobre os trabalhadores, não serve para perpetuar a propriedade privada.
Esses setores religiosos crescem em influência especialmente entre a população mais pobre e mais carente de alternativa. Crescem em poder econômico, ideológico e politico. Multiplicam templos e suas franquias em todos os bairros, como se fossem padarias. Controlam televisões, rádios e jornais. Elegem politicos em número cada vez maior. Discriminam quem não é da sua religião e querem controlar a vida de todos. Atribuem a culpa de todos os males, todos os poblemas, desemprego, violência, drogas, doenças, catástrofes naturais, etc., à influência sobrenatural e demoníaca. E para expulsar o mal do mundo, querem expulsar os seguidores do demônio, especialmente aqueles que não seguem a sua moral.

Lutar por igualdade real! Lutar pelo socialismo!
Para combater a influência da religião na política e lutar por uma sociedade onde todos sejam iguais, independentemente da sua religião e independentemente da sua sexualidade, devemos:
- lutar pelo caráter laico do Estado, em todas as suas instituições, contra os símbolos de determinadas religiões nos espaços publicos;
- contra os privilégios para as igrejas, que todas paguem impostos como qualquer empresa;
- contra a difusão de ideias religiosas e em defesa da ciência na educação pública;
- contra o ensino religioso e do criacionismo, em defesa da teoria da evolução e da biologia científica;
- contra a perseguição e demonização de qualquer religiao, em especial as de matriz africana, contra a perseguição aos terreiros de umbanda e candomblé;
- pelos direitos civis para casais do mesmo sexo: casamento, adoção, herança, pensões, etc., pelo uso do nome social por pessoas transgêneros e transexuais, etc., nenhuma restrição de direitos em função da sexualidade;
Essa luta deve ser levada a todos os espaços de organização dos trabalhadores, sindicatos, associações, movimento estudantil, etc. Somente na perspectiva da unidade da classe trabalhadora, contra o sistema capitalista e seus representantes políticos e ideológicos, é que podemos ir além da igualdade formal do Estado laico (que é só no papel) e lutar por igualdade real.

Daniel M. Delfino
Agosto 2014



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