5.11.15

América Latina: das ditaduras militares à democracia autoritária



Na segunda metade do século 20 a América Latina foi assolada por uma onda de ditaduras militares: Brasil (1964-1985), Argentina (1976-1983), Chile (1973-1990), Paraguai (1954-1989), Uruguai (1973-1985), Bolívia (1964-1982), Peru (1968-1980), Equador (1972-1979), Guatemala (1970-1985), Honduras (1963-1974), Nicarágua (1967-1979), Panamá (1968-1989).
As ditaduras resultaram da ação de forças internas a cada país, os setores reacionários da classe dominante, e externas, em especial o imperialismo estadunidense. As forças internas eram a grande burguesia, o latifúndio, os bancos, os setores ligados às transnacionais, mas também as classes médias, influenciadas pela cúpula da Igreja católica e pela maioria dos meios de comunicação. Não se tratava portanto apenas de ditaduras militares, mas civis-militares, ou empresariais-militares, já que contavam com a participação e o apoio direto da burguesia e favoreciam abertamente as classes patronais contra os trabalhadores.
Foram décadas de terror de Estado, assassinatos, desaparecimentos, prisões, torturas, demissões, perseguição, exílio, vitimando em especial aqueles que lutavam pela classe trabalhadora, lideranças operárias, camponesas, estudantis, intelectuais, artistas, etc. Sindicatos, organizações estudantis e populares foram fechados ou colocados sob controle do Estado. Greves e manifestações eram proibidas ou duramente reprimidas. A imprensa e a produção cultural era censurada. Esmagando e amordaçando a oposição popular, os governos militares deram livre curso à corrupção desenfreada, à ação predatória das empresas transnacionais, à entrega das riquezas naturais, à exploração dos trabalhadores.

O papel dos imperialismo estadunidense
No plano externo, vivia-se o contexto da Guerra Fria, período de confronto geopolítico entre a União Soviética e os Estados Unidos, que buscaram assegurar o controle sobre o seu “pátio traseiro”, implantando regimes ditatoriais no continente para impedir a disseminação de movimentos e governos simpatizantes ou tutelados pelos soviéticos. Havia um acirramento da luta de classes em vários países, com diversos movimentos de contestação, armados ou não, alguns defendendo a revolução socialista como solução para a miséria e a submissão de seus países. O exemplo da revolução cubana de 1959 (que em 1961 adotaria definitivamente o “modelo” soviético) serviu como um sinal de alerta para o imperialismo. Os Estados Unidos intensificaram sua atuação na aplicação de golpes militares, que derrubaram os governos legalmente eleitos para estabelecer as ditaduras.
Tropas estadunidenses foram deslocadas para apoiar os golpistas (caso da operação “brother Sam”, em que uma frota estadunidense posicionou-se no litoral do Brasil em 1964, para o caso de haver resistência ao golpe), assim como agentes secretos e assessores. Diplomatas estadunidenses deram respaldo e reconhecimento internacional aos regimes assassinos. Tudo isso resultou, é claro, em rendosos negócios para as empresas estadunidenses no continente. Um dos principais instrumentos dos Estados Unidos em favor das ditaduras militares foi o estabelecimento da “Escola das Américas” no Panamá em 1946 (funcionando nesse local até 1984), um centro de treinamento para os oficiais das forças armadas dos países latino americanos, em que mais de 60 mil militares foram instruídos em técnicas de contra insurgência, guerra de guerrilhas, esquadrões da morte, execuções sumárias, desaparecimento de pessoas, interrogatório, tortura, etc.
Os militares treinados na infame Escola das Américas foram os autores dos golpes militares e executores da repressão que desmantelou a resistência às ditaduras, matando e torturando milhares de opositores em cada país. No início da década de 1970, os militares egressos da Escola das Américas, já empossados como ditadores em vários países, organizaram a “Operação Condor”, uma rede de colaboração entre os aparatos repressivos de diversos países sulamericanos, visando caçar dissidentes, em especial os grupos que praticavam a luta armada, impedindo que pudessem se deslocar de um país para o outro, perseguindo os exilados, entregando-os aos seus países de origem, prendendo, assassinando, etc.
Após as ditaduras, as sequelas
As lutas para derrubar as ditaduras consumiram enormes esforços, que envolveram múltiplas estratégias: em alguns casos a luta armada, o lento e paciente trabalho de organização nos bairros e movimentos populares (em especial por obra de um setor de base da Igreja católica orientado pela Teologia da Libertação), a reconstrução e retomada dos sindicatos por setores combativos, a reorganização do movimento estudantil, campanhas pela retomada das liberdades civis, anistia para os exilados, eleições, manifestações culturais, etc (contaram também com fatores externos, como crises econômicas, mudança da política do imperialismo, etc.). As ditaduras militares deixaram feridas abertas na vida desses países, devido a milhares de mortes, desaparecimentos, torturas, perseguições, debilitando organizações operárias e populares, destroçando famílias, interrompendo e traumatizando vidas.
Depois da retomada dos governos civis, houve em alguns países o esforço para levar à justiça os ditadores e comandantes militares, vários dos quais foram julgados e condenados, em especial na Argentina e no Chile. No Brasil, ao contrário, houve uma aberrante “Lei da Anistia”, que anistiou os crimes cometidos “dos dois lados”, como se o lado dos opositores do regime fosse também criminoso, quando na verdade estava combatendo um regime ilegal. Além da lei da impunidade para os criminosos da ditadura, o Brasil manteve a Lei de Segurança Nacional do regime militar, e manteve a cultura repressiva, assassina, violenta, corrupta e violadora dos direitos humanos em suas forças policiais, em especial a PM.

A democracia burguesa como ditadura de classe
A manutenção dos aparatos repressivos está ligado ao fato central de que o fim das ditaduras e a volta da democracia não mudou as relações de classe. A possibilidade de eleger governantes ou legisladores não muda o fato de que o Estado existe para preservar os elementos essenciais do funcionamento do capitalismo: a propriedade privada dos meios de produção, o trabalho assalariado, a extração de mais valia, a exploração. Os trabalhadores produzem toda a riqueza da sociedade, mas são roubados diariamente ao receber na forma de salário apenas uma fração daquilo que produziram. A transformação do trabalho em mercadoria dá origem a uma série de relações alienadas que controlam todos os aspectos da vida humana, inclusive a relação entre os sexos, a família, a educação, etc.
Esse roubo diário contra os trabalhadores é protegido por lei, já que o contrato de trabalho é realizado entre “iguais”. O trabalhador e o empresário são iguais, já que ambos podem votar e eleger os governantes. Esse “truque” da democracia transforma em iguais classes sociais que são fundamentalmente diferentes por sua relação com a reprodução social. Por isso, essa democracia falsificada deve ser chamada pelo seu nome, o nome da classe social à qual favorece, o nome de democracia burguesa. A democracia burguesa segue sendo a ditadura de uma classe social, a classe dos proprietários. O capitalismo tem essa capacidade de funcionar com diversos tipos de superestrutura política: democracia burguesa, ditadura fascista, monarquia absoluta, etc. Muda-se o pessoal político, mas o sistema econômico permanece o mesmo.
A luta pelo fim das ditaduras na América Latina conseguiu uma vitória parcial, a volta das liberdades civis e o direito de voto. Mas esses mesmos direitos, paradoxalmente, se transformaram em armas nas mãos da classe dominante para impedir que haja novas lutas. Por meio das instituições democráticas, a classe dominante pode iludir os trabalhadores com a promessa de que a eleição de um novo governante pode mudar tudo, quando na verdade, só a luta muda a vida. Por meio do legislativo e do judiciário, a burguesia pode aprovar e aplicar leis contrárias aos trabalhadores, sem precisar dar um golpe de Estado. É o caso das leis contra o direito de greve e de manifestação, etc. Ainda por cima, a burguesia controla as eleições ao financiar as campanhas dos candidatos que lhe interessam e usar a mídia para difamar outras candidaturas e movimentos.

A era das democracias autoritárias
Os trabalhadores acreditam nas instituições democráticas, por isso se limitam a lutas pontuais e não se mobilizam para substituir esse regime por um poder sob seu controle. Com isso, a democracia burguesa se torna um instrumento tão eficiente para controlar a classe dominada quanto as ditaduras mais repressoras. A burguesia tem a capacidade de escolher o tipo de regime que seja mais adequado para manter sua dominação. Na segunda metade do século XX, usou as ditaduras militares. No início do século XXI, usa as democracias burguesas.
No atual momento, porém, ainda que a democracia burguesa continue sendo o instrumento preferencial da classe dominante, trata-se de uma democracia cada vez menos “democrática” e cada vez mais autoritária e ditatorial. Essa democracia permite fazer greve, desde que não haja prejuízo para os patrões, desde que não se faça piquete. Permite fazer manifestações, desde que não enfrentem de fato os símbolos do poder. Permite lançar candidatos, desde que não questionem os pilares do capitalismo, a propriedade privada e a exploração. A democracia burguesa permite que se escolha entre o vermelho do PT e os tucanos do PSDB, que aplicam o mesmo programa nos governos federal e estadual, mas não permite uma alternativa de fato, uma alternativa revolucionária.
Num contexto de crise do capitalismo e aumento das lutas, a burguesia precisa evitar que os trabalhadores se mobilizem, mas sem ainda apelar para golpes de estado e ditaduras. A burguesia apela para a repressão, para o uso da polícia e do judiciário contra as greves e manifestações, o uso da mídia para colocar o grosso da população contra as lutas. Com a cobertura da mídia e do judiciário, a repressão pode ser exercida sobre os setores de vanguarda que se colocam em luta. É uma questão de vida ou morte para a burguesia isolar esses setores de vanguarda que estão em luta e impedir que estabeleçam a conexão com o restante dos trabalhadores.
Para nós trabalhadores que estão em luta, por outro lado, é uma questão de vida ou morte organizar movimentos que envolvam o conjunto da classe e se coloquem contra essa falsa democracia e suas instituições, contra os partidos governantes e seus representantes nos movimentos sociais, contra a exploração e o capitalismo.

Daniel M. Delfino
Outubro 2014



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