7.11.15

O mundo fantástico das seitas autoproclamatórias



A luta de classes apresenta inúmeros tipos de dificuldades. Uma das principais é o fato de que “a ideologia predominante numa sociedade é sempre a ideologia da classe dominante” (Marx e Engels). Isso significa que os trabalhadores vêem o mundo não como ele é, mas da forma como a classe dominante o define. Os trabalhadores acham que o mundo sempre foi e sempre vai ser tal como é hoje, com a divisão entre ricos e pobres, a presença do Estado, do trabalho assalariado, da propriedade privada dos meios de produção, da família patriarcal, etc. E mais, acreditam que o homem é individualista por natureza, que se trabalhar duro é possível “chegar lá” e “virar patrão”, etc. E para completar, acreditam que a História é feita por “heróis”, “grandes homens” e líderes, não pela ação coletiva e organizada das classes sociais em luta.
Esse conjunto de ideias constitui um obstáculo gigantesco para a luta contra o capitalismo e a construção de uma sociedade emancipada. Tais ideias somente podem ser superadas por meio da experiência prática, por meio de processos de luta que demonstrem a necessidade, a possibilidade e a viabilidade das ações coletivas. A experiência prática proporciona os conhecimentos necessários para a luta política, a partir daquelas experiências iniciais que acontecem em uma greve ou manifestação, até que se possa gradativamente chegar à luta pelo poder social e pela revoluções.
Na falta ou insuficiência de tais experiências práticas, o obstáculo da ideologia dominante se torna tão grande que muitas organizações preferem não enfrentá-lo. Ao invés de encarar a luta de classes tal como ela é, com todas as suas dificuldades, tais organizações preferem criar um mundo fictício, onde se sentem à vontade, e conseguem desempenhar para si mesmas o papel teatral de “revolucionários”. Essas organizações se convertem em seitas, cujos integrantes passam a ter a obsessão fanática de proclamar aos quatro ventos a “verdade absoluta” da qual são portadores.

Identificando uma seita
No mundo fictício das seitas, a luta a ser travada não é contra a ideologia dominante, a burguesia, o Estado, seus aparelhos ideológicos, a burocracia sindical, igrejas, meios de comunicação, etc. A luta é desviada contra as outras organizações, que passam a ser tratadas como inimigos. E contra os inimigos vale tudo: a calúnia, a difamação, a intriga, a falsificação, todos os tipos de golpes e manobras, para que a seita possa aparecer como a única portadora da verdade e da salvação.
O raciocínio das seitas é mais ou menos o seguinte: “a minha organização é a única organização revolucionária, logo, a minha organização tem que estar na direção de todas as lutas dos trabalhadores, logo, todas as outras organizações que participam das lutas são inimigos, logo, não só é aceitável como é necessário fazer qualquer coisa para derrotar, desmoralizar e destruir essas organizações”. O objetivo não é fazer um debate construtivo em que todas as organizações possam apresentar suas posições, e o movimento decida qual a mais correta. O objetivo é destruir qualquer concorrente que possa representar uma ameaça para as posições da seita. Não importa se uma determinada proposta é a mais correta para o movimento, importa apenas se ela provém ou não da seita. A disputa pelo controle, pela maioria, pela direção, substitui o debate de alternativas para o movimento. A rivalidade, a intriga, a mesquinharia substitui a política.
Seguindo esse critério, onde quer que exista uma outra organização atuando, ela será tratada como inimigo. Qualquer que seja o tipo de organização, um outro partido da esquerda, um coletivo estudantil, uma chapa sindical, um agrupamento independente, um movimento cultural, um grupo de estudo, etc., em qualquer caso essa organização será tratada como inimiga. Qualquer outro grupo organizado, simplesmente pelo fato de ser de alguma forma minimamente organizado, inevitavelmente representa um projeto de direção política. E isso é algo que a seita não pode aceitar, e precisa neutralizar de alguma maneira, seja cooptando uma parte dos seus militantes, seja de uma forma ou de outra buscando o fim da outra organização tal como ela era.
Toda organização tem seus limites, ou é burocrática, ou reformista, ou centrista, ou “sindicaleira”, ou sectária, ou propagandista, ou movimentista, ou mesmo pode ser revolucionária, mas com políticas equivocadas, e no entanto ser capaz de trabalhar em unidade, etc. Diante dessa diversidade de situações, que tem a ver com o estágio histórico da luta de classes, e que exigem em cada caso respostas diferenciadas, a atitude da seita é sempre uma só: qualquer outra organização é um inimigo por definição, e seu objetivo é sempre destruí-lo. Também não importa se a desaparição, o esvaziamento, o racha de um determinado partido da esquerda, coletivo estudantil, chapa sindical, agrupamento independente, movimento cultural, grupo de estudo, etc., vai enfraquecer a luta real dos trabalhadores. Não importa se militantes vão romper com a luta e voltar para casa, se relações e amizades vão ser destruídas, se um processo de organização independente vai ser abortado, pois vale tudo para que os ditos “revolucionários” assumam o controle. A seita não se preocupa com o desenvolvimento geral da luta, seu único objetivo, repetimos, é “dirigir” os processos em que participa.
Todo militante, ativista ou trabalhador certamente se lembra de quando participou de uma assembleia, plenária, chapa, movimento, etc., pela primeira vez, e se deparou com o espetáculo bizarro de “organizações revolucionárias” se digladiando umas contra as outras, uma fala depois da outra, interminavelmente, até esgotar a paciência das pessoas “normais”, que evidentemente se retiram de algo que aparentemente não tem nada a ver com a sua vida. Esse cenário é o sintoma dos vícios sectários que grassam entre as organizações.

O equívoco fundamental das concepções sectárias
O delírio das seitas autoproclamatórias, como qualquer outro fenômeno social, têm uma explicação histórica e política. Essas seitas partem da caracterização de que “a crise da humanidade é a crise da sua direção revolucionária”, frase escrita por Trotsky há quase 80 anos. Incapazes de pensar como o próprio Trotsky e ignorando que o mundo mudou muito desde que o “Programa de Transição” foi escrito em 1938, essas seitas imaginam estar sendo fiéis ao legado do grande revolucionário russo, adotando seu texto ao pé da letra, como se fosse algum tipo de dogma religioso, numa atitude exatamente oposta ao marxismo.
Se a crise da humanidade é a crise da sua direção revolucionária, a solução é muito simples: a seita proclama a si mesma como a nova direção revolucionária da humanidade. E se a seita é a direção revolucionária, todas as outras organizações que não seguem a cartilha dessa seita estão na verdade atrapalhando o processo. E temos então o cenário descrito acima. O problema é que a crise da humanidade não é mais apenas de “direção revolucionária”, mas algo muito mais profundo e de outra natureza. Quando Trotsky formulou essa caracterização, ela ainda fazia um certo sentido, daí o seu esforço para construir uma IV Internacional revolucionária, pouco antes de ser assassinado.
O problema hoje, no século XXI, não é apenas de “direção revolucionária”, mas de falta de alternativas. Há uma crise de alternativas socialistas, uma ausência de projetos de sociedade, de modo que os trabalhadores não acreditam que seja possível mudar o mundo e construir outra sociedade. Sem isso, não há como sequer se falar em um movimento revolucionário. E para que haja uma direção revolucionária, é preciso que haja um movimento revolucionário para dirigir. O movimento revolucionário, por sua vez, somente se constrói mediante o esforço combinado de incontáveis lutas dos trabalhadores, incontáveis experiências práticas (que produzam um avanço ideológico e de consciência, como dissemos no início), contribuições de incontáveis organizações e militantes. Não se constrói por um ato de vontade (ou pior, por autoproclamação de alguma seita) de qualquer organização, nem da noite para o dia.
Para que o movimento dos trabalhadores se torne revolucionário, o que certamente requer a intervenção de organizações revolucionárias (no sentido de debate das melhores propostas para o movimento, e não disputa desleal e rebaixada entre seitas pela “direção”), é preciso antes que exista um movimento, classista, independente, combativo, unitário. É preciso que os organismos de luta dos trabalhadores se fortaleçam e se libertem do controle de burocracias sindicais, partidos pró-capitalistas, oportunistas, etc. É preciso também que haja uma metodologia de funcionamento que assegure a participação e o aprendizado dos trabalhadores. E sobretudo, é preciso que as organizações revolucionárias intervenham nas lutas, concretamente, a partir de cada local de trabalho, estudo, moradia, a partir de cada greve, manifestação, debate, etc., sendo reconhecidas pelos trabalhadores, estando ombro a ombro, pondo a mão na massa.
Não há como separar a construção da direção revolucionária da construção do movimento revolucionário que essa direção irá um dia dirigir. A direção somente terá legitimidade enquanto direção se contribuir decisivamente para a construção do movimento que irá dirigir. E contribuir para a construção do movimento não significa nem se engalfinhar com as outras organizações de maneira sectária em debates estéreis, nem abrir mão de lutar pelas propostas mais corretas. Significa ter como critério precisamente a construção do conjunto do movimento, e não o predomínio das “minhas” propostas. Com esse critério, a luta dos trabalhadores deixaria de ser aquele espetáculo bizarro que presenciamos nas assembleias, plenárias, chapas, movimentos, etc., passando a ser algo que o trabalhador reconheceria como seu.
Somente assim é possível libertar os trabalhadores da influência da ideologia burguesa, do Estado, da burocracia sindical, da igreja, etc., os nossos verdadeiros adversários. Infelizmente, até que as concepções que buscam o avanço geral da luta prevaleçam, para seguir desenvolvendo a luta no dia a dia, precisaremos contar ainda com uma boa dose adicional de paciência, sangue frio e sabedoria para lidar com os ataques, as conspirações e os delírios da seitas.

Daniel M. Delfino
Julho 2015


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