3.11.15

O imperialismo e os conflitos na América Latina


O ciclo das lutas populares

Na década de 2000 a América Latina protagonizou um forte ciclo de lutas populares que questionaram a aplicação das políticas neoliberais pelos governos da burguesia tradicional e mais escancaradamente pró-imperialista. As mobilizações foram impulsionadas por vários setores populares, como camponeses, povos originários*, moradores dos bairros mais pobres, setores de classe média, conforme a realidade de cada país, com uma participação menor do proletariado industrial e do movimento estudantil. O resultado dessas mobilizações foi a queda de governos em vários países, como Argentina (panelaço em 2001), Bolívia (guerra da água em 2000, guerra do gás em 2003 e 2005) e Equador (Parlamento dos Povos em ).
Em substituição aos governos burgueses tradicionais erigiram-se governos controlados por setores nacionalistas burocráticos (Chávez na Venezuela, Morales na Bolívia, Correa no Equador), que desenvolveram um certo grau de enfrentamento em relação ao imperialismo e à burguesia devido à necessidade de simular o atendimento ao menos parcial de algumas reivindicações das massas mobilizadas. Em outros países subiram ao poder setores da esquerda reformista, oportunista e burocrática mais tradicional, que se apresentaram como suposta ruptura com o neoliberalismo, mas que deram continuidade à essa mesma política (Lula no Brasil, o casal Kirchner na Argentina, Bachelet no Chile, Vasquez no Uruguai, Ortega na Nicarágua, Lugo no Paraguai).
Nesse primeiro momento, o imperialismo estadunidense foi forçado a ceder parcialmente o terreno no continente. A prioridade estava no Oriente Médio, onde as invasões do Afeganistão (2001) e Iraque (2003) consumiam a máxima atenção e esforço do governo Bush, com o comprometimento de elevados contingentes de tropas e pesado impacto no orçamento público. A resistência afegã e iraquiana, bem como o repúdio interno e externo às invasões representaram um enorme desgaste para o governo Bush e criaram dificuldades para a implantação de suas políticas. A onda de governos nacionalistas burocráticos e de retórica anti-neoliberal na América Latina também se tornou em alguma medida um obstáculo, impedindo por exemplo a implantação da ALCA da forma como havia sido originalmente concebida.

Continuidade da presença imperialista

Isso não significa que o imperialismo tenha tirado suas garras do nosso continente. Em 2002 houve o golpe contra Chávez na Venezuela, revertido por forte mobilização popular. Em 2004, no Haiti, os Estados Unidos depuseram o governo de Jean Bertrand Aristide e impuseram ao país um governo fantoche sustentado por tropas da ONU. Devido à prioridade dada ao Oriente Médio, o comando dessas tropas foi terceirizado para o Brasil de Lula. Em 2006 no México foi preciso fraudar a eleição presidencial para impedir que o candidato da esquerda burocrática derrotasse o representante da burguesia tradicional. Em 2007, antes da eleição de Lugo, foi assinado um acordo para a implantação de uma base militar no Paraguai perto da tríplice fronteira (com Brasil e Argentina), com fácil acesso à Itaipu e controle sobre o aqüífero Guarani. Em 2008 houve a tentativa de dividir o Estado boliviano para deixar a parte mais rica do país sob controle de uma burguesia fascista, racista e abertamente assessorada pela embaixada estadunidense.
O papel do Brasil no Haiti é mais uma prova de que os governos de discurso anti-neoliberal como os de tipo lulista não vão mesmo além da pura retórica, pois tanto no plano interno como na política externa os objetivos do imperialismo seguem sendo implantados. A ALCA foi substituída pelos TLCs (Tratados de Livre Comércio) assinados entre os Estados Unidos e vários países individualmente. A integração da infra-estrutura sulamericana (com importante participação de multinacionais brasileiras e financiamento do BNDES) está sendo tocada de modo a facilitar o escoamento das riquezas naturais, tendo como conseqüências a intensificação da depredação ambiental e do extermínio dos povos originários e suas culturas.
Os exemplos acima indicam que o imperialismo nunca abandonou completamente o continente. Mas a prova mais cabal está no caso colombiano. O governo de Alvaro Uribe desencadeou uma ofensiva para derrotar as guerrilhas das FARC e ELN, com o apoio explícito do imperialismo (inclusive provocando um incidente de fronteira que levou às beiras de uma guerra com o Equador) e a participação de milícias de extrema-direita (AUC) financiadas pelo narcotráfico. O resultado “colateral” dessa ofensiva foi o aumento das mortes de líderes dos povos originários, de camponeses, de organizações populares e de dirigentes sindicais.

A ofensiva de Obama

A mudança de guarda na Casa Branca, com a saída dos “neocons” de Bush e a entrada de uma equipe mais eclética liderada por Obama criou a ilusão de que haveria uma mudança nas relações do imperialismo com o continente. A intensa operação de marketing em torno de Obama na verdade serviu apenas para mascarar um expressivo aumento da presença e das iniciativas militares estadunidenses. Há uma verdadeira “invasão branca” em curso, cujos exemplos se multiplicam.
Em primeiro lugar, os passos dados ainda na era Bush não foram revertidos. O acordo com o Paraguai para a implantação da base militar não foi revogado. A IV frota, que havia sido criada na II Guerra para patrulhar o Atlântico sul, foi reativada tão logo se anunciou a descoberta de significativas reservas de petróleo na camada geológica de pré-sal dentro do limite das águas territoriais brasileiras.
Em segundo lugar, o imperialismo continua apoiando as forças mais reacionárias da burguesia em cada país. No México, sob o pretexto da “guerra às drogas”, os agentes da DEA, FBI, CIA e outras agências do aparato de segurança e inteligência estadunidense tem atuado “em parceria” com órgãos de segurança do Estado mexicano num grande operativo de militarização da zona fronteiriça entre os dois países. Isso se combina com a repressão aos trabalhadores imigrantes mexicanos e de outros países latino-amercianos no interior dos Estados Unidos. A militarização da guerra às drogas é na verdade uma operação de blindagem política do governo de Calderon, concedendo-lhe preventivamente poderes e instrumentos repressivos para enfrentar a crescente insatisfação popular com o NAFTA e agora agravada com a crise econômica. Essa insatisfação já teve sua expressão mais radical na Comuna de Oaxaca, em 2007, quando os trabalhadores chegaram a erguer uma experiência embrionária de duplo poder contra o governador local corrupto e reacionário.
Em julho de 2009, diante de uma aproximação do presidente de Honduras Manuel Zelaya do bloco da ALBA e da Petrocaribe liderado por Chávez, a direita hondurenha reagiu com um golpe de Estado. Apesar da “condenação” meramente formal emitida pela “comunidade internacional”, os golpistas continuam no poder e os Estados Unidos tem manobrado para que Zelaya aceite uma “saída negociada” para a disputa. Essa saída na prática significaria uma renúncia à política de reforma constitucional que visava garantir o controle do Estado hondurenho sobre suas reservas petrolíferas. Quem está pagando o preço é a classe trabalhadora hondurenha, privada dos direitos democráticos elementares pelos golpistas.
Em terceiro e último lugar, a saída dos Estados Unidos da base de Manta no Equador prevista para o final deste ano está sendo mais do que compensada pela instalação de nada menos do que 7 novas bases na Colômbia. Isso praticamente consuma a transformação da Colômbia em um protetorado militar estadunidense, no mesmo formato do que é a Arábia Saudita no Oriente Médio. A partir dessas bases, os Estados Unidos poderão aplastar definitivamente a guerrilha das FARC, aniquilando também de quebra a resistência popular colombiana. Poderão também usar o país como uma cabeça-de-ponte para intervir na América Central, ou ainda no Peru, onde o movimento dos povos originários amazônicos começa a dar sinais de vida (ainda que sem a mesma tradição de luta e com um perfil diferenciado em relação aos povos andinos). E poderão também lançar uma guerra aberta contra a Venezuela de Chávez.
A impotência das burocracias e a autonomia política dos trabalhadores

Por enquanto, a reação dos governos latino-americanos, tanto os da ala chavista tida como “radical” como os da ala lulista “moderada” (abertamente pró-imperialista), contra esse aumento da presença militar estadunidense, tem sido muito tímida. Não vai além de protestos diplomáticos protocolares e de bravatas anódinas. Nenhum desses governos tem a disposição para entrar em um enfrentamento de fato com o imperialismo. Estão todos internamente comprometidos com setores burgueses cujos negócios dependem de boas relações com o capital internacional. Em nome dessas boas relações, é fundamental para tais governos impedir a resistência autônoma da classe trabalhadora, especialmente em tempos de crise.
A burguesia precisa dar continuidade à depredação do meio ambiente, conforme as exigências das transnacionais dos ramos de petróleo, minérios, extrativismo, madeireiras, agronegócios, etc., passando por cima das vidas dos povos originários, camponeses e trabalhadores sem terra. Em todos esses aspectos de facilitação da intervenção e defesa dos interesses imperialistas o Brasil ocupa papel de liderança.
É por isso que a defesa da soberania nacional, das riquezas naturais, do meio ambiente, da sobrevivência dos povos originários, da cultura e das condições de vida é uma tarefa que cabe apenas à classe trabalhadora latino-americana. Os governos nacionalistas burocráticos, ainda que sejam produtos de lutas populares e para fins de marketing se identifiquem nominalmente com tais interesses, no momento decisivo capitulam à burguesia e ao imperialismo, optando por “saídas negociadas” que inevitavelmente preservam a vigência da ordem capitalista e a exploração dos trabalhadores. Chávez, que perdoou os golpistas de 2002, vai ao ponto de perseguir sindicalistas (que estão sendo mortos impunemente pela burguesia) e Correa reprime os povos amazônicos que protestam contra a atividade das mineradoras. Nos momentos de enfrentamento mais agudo, nos quais é preciso até mesmo defender tais governos contra golpes burgueses e invasões imperialistas, o proletariado só pode contar com suas próprias forças.
Por isso, é fundamental armar política e ideologicamente os organismos de luta da classe com um programa independente em relação ao chavismo, ao lulismo e seus derivados, e com uma perspectiva clara de ruptura da ordem capitalista e construção do socialismo. Com o aprofundamento da crise em nível mundial e da necessidade do imperialismo de avançar ainda mais na depredação do planeta e no ataque às condições de vida, a nossa própria sobrevivência dependerá cada vez mais de termos clareza em relação à necessidade de fortalecer a organização autônoma da classe e a construção de um projeto socialista. Esse programa deve começar impulsionando algumas tarefas imediatas:
- Abaixo o golpe em Honduras!
- Fora as tropas brasileiras do Haiti!
- Fora as bases militares na Colômbia!
- Pela desativação da IV Frota!
- Contra a instalação da base no Paraguai!
- Fim da guerra às drogas no México!
- Contra a militarização dos conflitos sociais!
- Contra a repressão aos trabalhadores, imigrantes e povos originários!
- Contra o saque das nossas riquezas e a destruição do meio ambiente!
- Pela soberania e autodeterminação dos povos!
- Por uma Federação Socialista dos Povos da América Latina!

*Nome dos povos nativos do continente americano, em substituição a “índios” ou “indígenas”, nome dado pelo invasor europeu, que ao “descobrir” o continente supunha haver chegado nas Índias.

Daniel M. Delfino
Setembro 2009




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