15.12.15

Não temos que escolher entre Dilma, Cunha ou Aécio e sim construir uma agenda dos trabalhadores


Depois de vários meses de idas e vindas, ameaças e chantagens, o Presidente da Câmara, Eduardo Cunha-PMDB, finalmente aceitou colocar em tramitação um dos muitos pedidos de impeachment contra a presidente Dilma Roussef-PT. Num gesto de declaração de guerra escancaradamente revanchista, mesquinho e casuístico, a abertura do processo de impeachment foi anunciada imediatamente depois do PT divulgar que vai votar a favor da cassação de Cunha na Comissão de Ética da Câmara. A crise política que vinha se arrastando desde o início do ano (na verdade, desde as eleições de 2014), finalmente entrou na sua reta final. As cartas estão na mesa.
Não vem ao caso discutir os argumentos jurídicos a favor ou contra a cassação de Dilma ou de Cunha. No final das contas a questão não é jurídica ou técnica, em termos de determinar quem é culpado ou inocente de algum crime. Pois sabemos que tanto PT como PMDB cometeram todos os crimes possíveis para os quais foi escrita alguma lei, assim como também é criminoso até os ossos o PSDB, que está assistindo essa disputa de camarote (com a exceção pontual de Alckmin, que recebeu uma lição dos secundaristas em São Paulo). A questão que realmente importa é quem terá os votos necessários para conseguir a cassação do outro. O impeachment precisa de 2/3 dos votos na Câmara (para depois ir à votação no Senado), enquanto que a cassação do mandato de um deputado precisa de maioria simples (50% mais um). Nos próximos meses (o processo de impeachment tem 180 dias de prazo para tramitação) teremos essa corrida entre Dilma e Cunha pelos votos nos bastidores.
Supostamente, o PT conta com maioria no Senado, e a decisão de votar contra Cunha só deve ter sido tomada depois do partido assegurar alguma margem de confiança de que o impeachment não passará na Câmara. Os pedidos de impeachment já vinham se acumulando há vários meses, e Cunha usava sua prerrogativa de Presidente da Câmara para bloqueá-los, na esperança de que o PT sustentasse seu mandato, quando chegasse a hora. Toma lá dá cá, até que a hora chegou, com o processo de cassação de Cunha finalmente aterrissando na Comissão de Ética. Se o PT resolveu rifar Cunha (e com isso aceitou a inevitabilidade da abertura do processo de impeachment), é porque não teme mais a votação na Câmara. É preciso ser muito ingênuo para acreditar que o PT teria se posicionado contra Cunha a partir de um arroubo de respeito pela “ética”, como se estivesse respondendo à “pressão da sua militância de base”, ou “resgatando sua história de luta” (que na verdade ficou muito para trás, no passado distante da década de 1980), etc. Quem acreditou nessa hipótese receberá a visita do Papai Noel este ano.

A aposta no isolamento de Cunha
Na verdade, o que o PT deseja é exatamente fazer acreditar que está se colocando contra Cunha pela esquerda. O PT quer que todos os movimentos sociais, organizações, militantes, ativistas e simpatizantes das causas da esquerda cerrem fileiras em defesa do governo durante os meses de turbulência que teremos pela frente, contra a ameaça da “direita” e do “golpe”. Para isso, Cunha acabou se tornando um bode expiatório bastante conveniente. Não faltará indignação diante de todas as manobras e baixarias que Cunha, Temer e o PMDB farão ao longo do processo de impeachment. Isso supostamente mostrará o quanto o impeachment é um golpe de políticos maquiavélicos, oportunistas, ressentidos, mesquinhos, sórdidos prejudicando a nação.
Que se trata de políticos maquiavélicos, oportunistas, ressentidos, mesquinhos e sórdidos, não resta a menor dúvida. O que faltará é lembrar, porém, que a opção de governar com esses políticos do PMDB foi feita pelo próprio PT, que agora vai ter que passar por uma árdua provação se quiser recompor o arranjo de sustentação do governo. Dilma teve que suportar meses de desgaste (dos quais ainda não se recuperou e talvez não se recupere inteiramente jamais), para criar as condições necessárias para se livrar do “aliado” incômodo. Foi preciso dar algum tempo para que Eduardo Cunha ficasse à solta e em evidência num cargo de grande projeção nacional para que viesse à tona o quão abominável é esse personagem.
O atual Presidente da Câmara mostrou ser bastante adequado ao cargo, já que sintetiza em sua pessoa todas as vilezas do Congresso mais reacionário da história. Além dos seus próprios crimes pessoais, além de ser corrupto, autoritário, machista, hipócrita, etc., Cunha deu livre curso para as pautas nefastas do agronegócio, do aparato de segurança e das igrejas evangélicas (a chamada “bancada BBB” – boi, bala e bíblia). A lei da terceirização, redução da maioridade penal, demarcação das terras indígenas e quilombolas pelo Congresso, escola sem partido, estatuto da família, PL do estupro, lei antiterrorismo, financiamento privado de campanha, MP da “bengala”, etc., estão todos identificados com o mandato de Cunha na Presidência da Câmara.
O Congresso abriu a caixa de Pandora, desengavetando todas as maldades que a burguesia guardava para os trabalhadores há muito tempo e não tinha oportunidade de por em pauta. Não foi preciso transcorrer muito tempo para que a rejeição ao Presidente da Câmara se acumulasse. Em particular, o movimento de mulheres, com muita razão, se colocou na vanguarda dessa rejeição e corretamente foi às ruas em várias cidades para pedir o “Fora Cunha!” O passo seguinte foi esperar o andamento normal dos processos de cassação na Comissão de Ética, para que o PT pudesse se posicionar abertamente contra Cunha. Calçado no repúdio popular a uma figura tão odiosa, o PT obteve assim o antagonista ideal contra o qual esgrimir a batalha pela sua sobrevivência política.
Um antagonista que fará o próprio PSDB pensar duas vezes antes de se associar a ele para conseguir o impeachment. Se o afastamento for apenas de Dilma, quem assume é o vice Michel Temer, também do PMDB, o que não resolve o problema para o PSDB, que teria que se conformar em ser mero parceiro em um governo de coalizão de Temer. Para o PMDB, uma confederação de caciques sem nenhuma unidade ou centralismo a não ser o fisiologismo visceral (para não dizer sem qualquer ideologia própria ou projeto), é melhor manter Temer, seja como presidente ou ainda como vice, do que embarcar na aventura de uma eleição com o PSDB. Manter Temer pode inclusive significar manter Dilma, já que uma das teses que fundamenta o impeachment de uma (as tais “pedaladas fiscais”) pode implicar necessariamente o do outro (Temer também assinou decretos autorizando movimentações de verbas de forma supostamente irregular). Em comparação com isso, não seria uma tragédia para o PMDB a cassação de Cunha, a não ser para o próprio Cunha.
Foi com base nesse raciocínio que o PT provavelmente calculou a viabilidade da jogada de votar contra Cunha. Isso não quer dizer que Dilma não corre risco e que o impeachment é impossível, mas que não é o mais provável. O mais provável é que passemos vários meses nessa disputa estéril (mas estrondosa, que vai ocupar todas as manchetes e noticiários por um bom tempo, com a cobertura exaustiva e bombástica de todos os lances) entre os setores que são contra e a favor do impeachment.

As manifestações de 13 e 16 de dezembro.
Logo nos dias imediatamente seguintes à abertura do processo, Dilma tentou se cercar do apoio de diversas entidades, como os governadores de estados, OAB, CNBB, juristas, etc. Temer, por sua vez, vazou uma carta patética para a imprensa, numa tentativa desastrada de mostrar que cobrará do PT um preço muito alto pela lealdade de sua facção no partido. Ou seja, os votos do PMDB para salvar Dilma custarão muito mais verbas e cargos. Era isso que a carta de Temer queria dizer nas entrelinhas, mas que ficou soterrado pelo tom de vaidade ferida e ressentimento mesquinho, que fizeram o feitiço virar contra o feiticeiro. Poucas vezes na história o humor interferiu tanto na política, pois a carta se prestou a tamanho volume de chacota que pode ser capaz de reduzir o poder de barganha do doravante cognominado Mimimichel Temer.
O humor involuntário também correu solto nas manifestações (ou “mini-festações”) pró-impeachment de 13/12, que em comparação com os protestos realizados em diversos momentos ao longo do ano, reduziram-se numericamente e qualitativamente à sua expressão mais essencial e caricata. Esses novos atos contra Dilma reduziram-se a uma camada social mais reduzida, uma burguesia mais envenenada de ódio de classe (e que é imbecil o suficiente para supor que o PT representa a classe trabalhadora e as causas históricas da esquerda), além de aderentes de “prestígio” como Alexandre Frota, e atos “radicais” como a caminhada em shopping centers. Isso não significa que o repúdio a Dilma tenha diminuído em qualquer uma das classes sociais ou setores de classe, mas que a rejeição a Cunha, Temer, Aécio, etc., figuras nefastas que todos enxergam muito nitidamente que estão por trás do impeachment, também é muito grande e não motiva a mobilização.
De outro lado, o PT, por sua vez, também está convocando manifestações para o dia 16/12. Mas de maneira muito habilidosa, o governo inseriu palavras de ordem de esquerda nas convocações, como o repúdio ao “golpe” e defesa da “democracia” (aproveitando-se de que as manifestações da oposição burguesa coincidiram com o aniversário do AI-5, que foi decretado em 13/12/1968 e abriu o período mais duro da ditadura), o “Fora Cunha!” e “abaixo o ajuste fiscal” (como se o ajuste fiscal não fosse peça central da gestão Dilma Roussef!). Também vazaram informes de que o PT está cobrando de Dilma um “giro à esquerda” em seu governo, caso sobreviva ao impeachment. Toda essa maquiagem de esquerda e o uso de aparatos dos movimentos sociais controlados pelo PT, como CUT e UNE-PcdoB (aos quais lamentavelmente se somaram o MST, MTST e setores do PSOL), deve fazer com que as manifestações governistas do dia 16/12 sejam maiores do que as da oposição burguesa. Nesse terreno da ruas, pelo menos, o PT segue em vantagem.

A verdadeira votação
Entrando no período de fim de ano, a disputa não deverá se desdobrar em novos atos de rua e provavelmente voltará para os corredores palacianos. Enquanto o balcão de negócios de compra e venda de votos e cargos come solto, fica em segundo plano o principal: no mesmo dia em que foi anunciada a abertura do processo de impeachment, em 02/12, o Congresso aprovou a autorização para o aumento do déficit do governo, viabilizando o orçamento de 2016 e o “ajuste fiscal”. Já em fins de novembro, a bancada governista tinha conseguido destravar a chamada “pauta bomba” no Congresso, mantendo o veto da Presidência a vários itens que iriam aumentar gastos do governo e prejudicar o “ajuste fiscal”. O mais bizarro nisso tudo é que a aprovação do “ajuste fiscal” foi comemorada por alguns setores como uma demonstração de que o governo do PT recompôs a sua base de apoio no Congresso e de que portanto será capaz de impedir o impeachment.
Desde quando o “ajuste fiscal” deve ser comemorado??????????????? “Ajuste fiscal” é o nome que se dá para o corte de gastos na saúde, educação, transporte, moradia, etc., e o desvio desses gastos para o pagamento da dívida pública, uma dívida fraudulenta, que consome quase metade do orçamento federal, e não pára de aumentar. Por isso usamos “ajuste” entre aspas, porque se trata de um imenso desajuste das contas públicas em prol do capital financeiro e contra os trabalhadores.
As bolsas de valores subiram e o dólar caiu no dia do anúncio do “ajuste fiscal”, que foi também o mesmo dia do anúncio do impeachment. Cada um entenda como quiser: o mercado se mostrou contente por conta da possibilidade da saída de Dilma, da aprovação do “ajuste fiscal” ou ambas as anteriores? Tudo é possível, pois para a burguesia, tanto faz se ficam Dilma, Cunha ou Aécio no poder, o que interessa é que o Estado consiga arrancar cada vez mais dinheiro dos trabalhadores para desviar para os bancos, empreiteiras, latifúndios, etc. O programa da “austeridade” (entre aspas, porque na verdade se trata de imensa prodigalidade em favor dos banqueiros e grandes empresas) é o único programa de governo aceitável para o capitalismo em crise, e será imposto em qualquer país e por qualquer partido que ocupe o governo.
No final das contas, o que vai decidir quem fica ou sai do cargo é a avaliação da burguesia a respeito da capacidade de Dilma-PT de aplicar o “ajuste fiscal”. Essa é a única votação que interessa. Os congressistas que vão decidir sobre o impeachment não vão atender ao apelo das suas consciências, nem ao programa dos seus partidos, nem muito menos aos interesses dos eleitores, mas à votação que será feita nos próximos dias na FEBRABAN, CNI, CNA e outras entidades patronais. Em condições normais de temperatura e pressão, ou seja, excetuando-se um agravamento da crise econômica (que não está nem um pouco descartada), a burguesia deve permanecer com o governo do PT, em lugar de apostar na aventura duvidosa do impeachment. Mais importante do que tudo isso, o que nos interessa é qual deve ser a posição dos trabalhadores.

Os argumentos do PT
Como dissemos, o PT aposta na mobilização das entidades dos movimentos sociais sob seu controle para defender o mandato de Dilma, com o discurso de que o “impeachment é golpe”, é preciso “defender a democracia”, a “direita” é pior, etc. Passemos em revista alguns desses argumentos. Em primeiro lugar, impeachment não é golpe. Um golpe acontece quando a classe dominante usa a força, a violência física do aparato repressivo do Estado, para esmagar algum projeto ou ascenso popular e operário que ameace seus interesses. Não é o caso do Brasil hoje. Não há projeto popular ou operário em andamento no país. O que há é uma disputa pela gestão do Estado e das negociatas a ele associadas por parte de grupos políticos que representam os mesmos interesses de classe, os da burguesia. O impeachment nesse contexto seria a mera remoção administrativa de um gestor tornado inconveniente ou inoperante. E de resto, é um mecanismo perfeitamente legal no interior da democracia burguesa.
Se há divergências no interior da burguesia em relação a qual partido melhor gerencia seus interesses, é porque a crise capitalista em andamento no país (que se antecipou à nova recorrência da crise mundial que se avizinha) estreitou as margens que antes permitiam uma acomodação mais tranquila para todos os diversos setores. Essa disputa surda no interior da classe dominante provoca uma disputa aberta entre seus representantes políticos, os partidos do sistema, como PT, PSDB e PMDB, para seguir no leme do navio. Uma disputa superestrutural, que não afeta a rota já traçada e que será seguida por qualquer um dos prepostos colocados na condução do Estado pela burguesia: a rota da “austeridade”.
Repetimos, portanto, não há golpe nenhum em andamento. Se se pode falar de golpe, ele já foi dado pelo próprio PT, quando usurpou as esperanças e o ideário da esquerda e os fez naufragar. Se há um crescimento das ideias da direita, o maior responsável por ele é o próprio PT, que durante os anos de “vacas gordas” da era Lula criou o mito da “nova classe média”, estimulou a “cidadania do crédito”, surfou na onda do consumismo, do individualismo, da meritocracia. Agora, na época de “vacas magras”, o PT colhe o ressentimento das camadas sociais que se viram traídas em seus sonhos de ascensão material. É nesse ambiente que vicejam as ideias da direita e germes deletérios como Bolsonaro e outros dessa laia.
Em artigos anteriores publicados ao longo do ano analisamos exaustivamente a transformação do PT em partido da burguesia e o estrago em termos ideológicos que isso causou na consciência da classe trabalhadora brasileira, portanto, não nos deteremos aqui sobre esse tópico (ver: O PT colhe o que plantou, as ervas daninhas do conservadorismo, e deve ser extirpado junto com elas - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/o-pt-colhe-o-que-plantou-as-ervas.html, Nem dia 13, nem dia 15: todos os dias, na luta contra o capitalismo, o Estado e a opressão! - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/nem-dia-13-nem-dia-15-todos-os-dias-na.html, A trajetória do PT, da negação do socialismo ao naufrágio do 5º Congresso - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/a-trajetoria-do-pt-da-negacao-do.html, A questão não é apenas ser contra o PT e contra a oposição (PSDB, PMDB, Veja, etc.), mas ser a favor do que? - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/a-questao-nao-e-apenas-ser-contra-o-pt.html).

A confusão em torno de “direita” e “esquerda”
Para fazer frente às ideias da direita, a última coisa a se fazer seria defender o PT. A rigor, “direita” significa manutenção da ordem social, ou seja, do capitalismo, portanto o PT é parte da direita. É preciso denunciar o PT pelo crime de haver desacreditado a ideia de um partido de trabalhadores, os métodos de luta da classe, seus organismos, sindicatos e movimentos sociais, perante a própria classe que deveriam representar. Hoje os trabalhadores vêem esses organismos como meros trampolins para oportunistas que querem se eleger e roubar. É urgente romper com os governistas em todas as frentes dos movimentos sociais e construir uma nova identidade da esquerda.
“Esquerda” significa transformação da ordem social, portanto fim do capitalismo, do Estado e de todas as instituições. Chega a ser patético que o PT defenda o mandato de Dilma em nome da “democracia”, porque foi a presidente eleita nas urnas. Se for assim, temos que defender também os mandatos de Alckmin, Beto Richa, Cunha, etc., todos igualmente eleitos. A esquerda sempre defendeu a revogabilidade de mandatos, fim dos privilégios e altos salários, etc., em direção ao fim da democracia burguesa e do Estado como os conhecemos. Defendemos a democracia operária, um regime qualitativamente superior de liberdade e participação.
Se por conta do impeachment houvesse risco de uma mudança qualitativa na escala da repressão e do autoritarismo estatal, um golpe de verdade, com uso das forças armadas, invasão imperialista, etc., seria dever do movimento dos trabalhadores defender qualquer governo, mesmo que fosse um governo burguês como o do PT. Não é esse o caso, repetimos, do atual processo de impeachment, porque o governo que suceder ao PT vai usar os mesmos instrumentos que a gestão Dilma já tem usado sistematicamente contra os trabalhadores.
A atual democracia burguesa, sob comando do PT, já pratica o genocídio dos indígenas, quilombolas, seringueiros, ribeirinhos e sem terra pelo latifúndio; o genocídio da juventude negra nas periferias; a corrupção, abuso de poder, tortura e violência policial desenfreada; repressão aos movimentos sociais, greves, manifestações e ocupações; prisões, demissões e perseguições a militantes e ativistas. Quando essas tarefas da repressão não são executadas diretamente e deliberadamente pelo governo federal do PT, o são com a sua conivência e cumplicidade pelos governos estaduais e municipais, o legislativo e o judiciário.
Repressão, tortura, genocídio, essa é a verdadeira face da “democracia” que o PT aplica e defende. Essa “democracia” não corre risco nenhum com o impeachment, nem vai sofrer qualquer alteração qualitativa. Por essas e outras razões reafirmamos que o PT faz parte da direita. A esquerda já foi abandonada pelo PT há décadas, quando o partido embarcou na ideia de gerir o Estado. O partido rompeu há décadas o seu vínculo com a classe trabalhadora e passou para o outro lado da trincheira, hoje é um instrumento a serviço dos patrões. O que se faz urgente é reconstruir um outro projeto, que não tenha como método prioritário ocupar cargos no Estado e como estratégia “reformar” o capitalismo. Esse foi o projeto do PT, que já naufragou e tem que ser substituído por novas referências, insistimos nisso.
Uma nova geração de lutadores está se colocando em movimento contra as consequências da crise capitalista, em greves, manifestações, ocupações, reinventando e renovando os métodos de luta. Desde a greve dos garis do Rio até as ocupações de escolas em São Paulo, um sopro de renovação e criatividade tem percorrido os movimentos sociais, às vezes passando por cima dos burocratas sindicais, estudantis, ONGs e partidos oportunistas. Ação direta, horizontalidade, organização de base, disputa de ideias nas redes sociais, são as armas dos novos movimentos, que estão deixando as organizações da esquerda tradicional para trás. É sobre essa base que devemos construir novas referências e projetos para a esquerda.

As insuficiências da oposição de esquerda
Infelizmente, o histórico da oposição de esquerda ao PT é desastroso no que se refere à tarefa de construir uma alternativa política e ideológica para os trabalhadores. Os partidos legalizados, PSTU, PSOL, PCB, PCO e a plêiade de organizações menores, todos juntos somados, não são hoje um ator relevante na luta de classes. Estão na 2ª divisão, ou seja, não estão na disputa de alternativas para a sociedade, em que prevalecem as os partidos burgueses, o PT as burocracias sindicais, a mídia, as igrejas evangélicas e até o crime organizado. Esses são os jogadores que estão de fato na disputa. A oposição de esquerda ao PT não soube construir um campo unitário de aglutinação das lutas dos trabalhadores e movimentos sociais, que pudesse apresentar uma alternativa política (muito além do meramente eleitoral) e ideológica (contra o avanço da meritocracia e outras ideias da direita).
Não souberam construir esse campo, porque estiveram voltados para a conquista de cargos no parlamento, ou de aparatos sindicais. Fazem dessas disputas um fim em si mesmo, e não um meio para supostamente avançar na organização dos trabalhadores, como está em seus discursos. Tratam de maneira separada a construção das suas organizações da construção do conjunto do movimento. Traduzindo isso para quem não está no dia a dia da militância: os partidos e organizações estão mais preocupados primeiro em convencer os trabalhadores, ativistas e simpatizantes das causas da esquerda de que o seu partido ou organização é o único verdadeiro e “revolucionário” (comportando-se como uma igreja que quer fazer os descrentes aceitarem Jesus), do que em convencê-los em primeiro lugar a estar na luta, colocar-se em movimento, participar das greves, das manifestações, dos debates. Ao agir dessa forma, os partidos e organizações da esquerda mais afastam os possíveis lutadores, mais fragmentam e enfraquecem a classe do que ajudam na superação da crise de alternativas.
As organizações de esquerda, ao transformar os meios em fins, a tática em estratégia, o imediato em definitivo, fazendo da necessidade virtude, perderam as referências de classe, de um projeto independente e de ruptura da ordem capitalista protagonizado pela classe trabalhadora. A oposição de esquerda ao PT está perdida nas disputas mesquinhas por cargos no parlamento e no aparato sindical, e não sabe que resposta apresentar para a situação política atual. Apresentam posições contraditórias e equivocadas.

Atirando para todos os lados
O PCO e uma parte do PSOL tomaram a posição de defender o governo do PT, acusando de “golpistas”, coniventes ou abstencionistas todos os que se recusam a se alinhar com Dilma. Essa posição vem como um alívio providencial para quem nunca teve a preocupação de construir um projeto anticapitalista próprio, enraizado na base da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, e agora pode preservar suas credenciais de “esquerda” combatendo o espantalho da “direita golpista” numa confortável posição à sombra dos aparatos governistas e pelegos da CUT, UNE e MST. Sem apontar nenhum horizonte estratégico de ruptura, essa posição equivale a pura e simplesmente defender o governo.
E Defender o governo do PT, depois de todos esses anos, é como reconhecer a impotência e a nulidade de qualquer projeto de transformação social, revolução e luta de classes. Isso não é unidade de ação contra um inimigo de classe, é capitulação total a esse mesmo inimigo de classe com maquiagem vermelha. É preferir o lobo em pele de cordeiro ao lobo sem disfarce. Ou resumindo, é o mesmo que renunciar a qualquer papel relevante ou intervenção própria na luta de classes. Para defender o governo, não é preciso se preocupar em mobilizar os trabalhadores: os mais de 30 mil burocratas petistas que vivem de cargos no governo vão dar um jeito de fazer isso desesperadamente para defender seus cabides de emprego, as verbas da corrupção e negociatas de todos os tipos das quais sobrevivem.
A esquerda que se resigna ao lamentável papel de fazer unidade com o governo deveria enfiar a viola no saco e ir pra casa, pois atestou com isso a sua completa inutilidade histórica. Lutar contra a direita (a outra direita, que existe para além do PT) é um dever sim, mas é preciso fazer isso fora do campo governista, com independência de classe e um projeto estratégico.
Enquanto uma parte do PSOL adota uma posição contra o impeachment e de defesa do governo, outra parte embarca na defesa de eleições gerais, admitindo implicitamente o impeachment. Por outro lado, o PSTU não está dividido como o PSOL (o que aliás é impossível, já que o partido é centralizado burocraticamente pela sua cúpula dirigente), mas está com posições esquizofrênicas no movimento. A CSP-Conlutas, colateral sindical do partido, através do Espaço Unidade de Ação, está chamando à composição de uma 3ª via dos trabalhadores, em contraposição ao PT e ao bloco de oposição burguesa (a rigor, o correto seria uma 2ª via, já que tanto PT quando a oposição representam o mesmo projeto e o mesmo interesse de classe), o que até seria correto se fosse feito através da base das categorias e vinculado às lutas concretas.
Enquanto no campo sindical diz uma coisa, o próprio PSTU enquanto partido com legenda eleitoral diz outra, com a linha de “Fora Dilma, Fora todos!” (nesse aspecto, o MRS é muito mais coerente, e embarca no “Fora todos!” sem qualquer pudor ou preocupação com uma “3ªvia”, errando por ação ao invés de errar por vacilação como o PSTU). Por mais que esse setor insista em que não querem fora apenas a Dilma, mas também o Cunha, Aécio, etc., essa posição acaba apenas engrossando o caldo do fora Dilma. Não está colocado hoje um movimento que possa derrubar “Todos”, a questão é justamente construí-lo com passos concretos, no dia a dia, no chão de fábrica e nas ruas.
Saltar diretamente da insatisfação popular para o “Fora todos!”, sem mediações, organizações, estruturas coletivas, formas de ação, programa, é puro oportunismo. Abstratamente, essa palavra de ordem está correta, pois tanto Dilma como Cunha, Temer, Aécio, etc., são políticos burgueses e inimigos da nossa classe. Mas a política não é uma abstração, é um cenário composto por correlações de forças sociais muito concretas e determinadas. É preciso identificar o caráter de classe das forças que estão por trás do impeachment, que também são burguesas. E mais do que isso, é preciso buscar as mediações para uma intervenção dos trabalhadores como sujeito independente no processo. Tanto a defesa do governo (PCO e parte do PSOL) como a admissão implícita do impeachment (PSTU e parte do PSOL) se dão por fora de uma perspectiva de independência de classe.

A questão é ir além do capital
Na verdade, o erro da oposição de esquerda é enxergar todo o processo a partir de um viés superestrutural, politicista, dirigista, em que a disputa se resume ao controle do aparato do Estado, seja por meio de eleições ou de um hipotético “governo dos trabalhadores” indeterminado. Não se discutem as mediações necessárias para que se construa (ou mesmo para que se eleja) um efetivo governo dos trabalhadores. Não se discute quais são os organismos, os movimentos, as frentes de luta, os passos concretos, as ideias e projetos. A consciência dos trabalhadores é menosprezada, pois do ponto de vista dessas organizações, é tudo uma questão de “direção revolucionária”, e não de uma alternativa societal totalizante. A “direção” sabe tudo e tem o programa pronto e acabado, e o papel das massas é seguí-los. Só que não. A revolução não será feita por massas conduzidas de improviso por algum agitador caído de para-quedas. Uma revolução é uma ruptura total com a ordem existente, a partir de organizações e programas construídos num amplo processo de luta.
Tanto a defesa do governo Dilma como a posição do “Fora todos!” concentram toda a discussão na ideia de que o poder político é a chave para resolver todos os problemas. Na verdade, o poder político e o Estado são estruturas derivadas do poder econômico, o poder que o capital exerce no processo de reprodução social. A lógica da mercadoria, o fetichismo do dinheiro, a alienação, a transformação dos seres humanos em coisa e das coisas em sujeitos, tudo isso se reproduz cotidianamente em cada local de trabalho. É somente aí, na base da reprodução social, onde se gera o poder do capital, que ele pode ser rompido, e não na superestrutura do Estado. Por isso é um erro grave defender o governo ou falar em “Fora Dilma, fora todos!”, ou mesmo em “eleições gerais” ou “governo dos trabalhadores”, no âmbito da superestrutura, sem deixar claro que o poder dos trabalhadores deve ser construído prioritariamente na sua organização de base, nos microcosmos da reprodução social.
Enquanto as organizações da oposição de esquerda se digladiam em torno de slogans vazios, a classe trabalhadora corre o risco de ser cooptada por alguns dos dois bandos patronais, o PT e a oposição de direita. Isso é o resultado de décadas de acomodação prática e paralisia teórica. A desorientação da esquerda tem raízes muito profundas, que estão no fato de que algumas questões fundamentais permanecem em aberto. A derrota da luta pelo socialismo no século XX e a sua degeneração em uma outra forma de exploração como a que foi vivenciada na URSS (e China, Cuba, etc.), ainda é uma questão em aberto.
O problema não é apenas o fato de que não foram encontradas respostas para essa derrota, mas que sequer são colocadas as perguntas. Essas questões fundamentais nem sequer são debatidas seriamente. Sem isso fazer esse debate, a esquerda não consegue dizer qual é o socialismo que defende e como alcançá-lo (sobre esse debate, ver os textos: Por que as revoluções não levaram à sociedade socialista? Um debate com Sérgio Lessa - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/por-que-as-revolucoes-nao-levaram.html, e Os 25 anos da queda do Muro de Berlim e o debate para reconstrução da alternativa socialista - http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/os-25-anos-da-queda-do-muro-de-berlim-e.html). A oposição de esquerda não consegue elaborar um programa e uma estratégia convincentes. E atira para todos os lados na crise atual.

Por um programa que vá além da negação
Além de denunciar o PT como um partido burguês que governa contra os trabalhadores e denunciar a oposição burguesa como mais uma armadilha oportunista; além de negar o movimento pelo impeachment e negar a defesa do governo, temos que apresentar uma alternativa pela positiva, um projeto dos trabalhadores. Tanto a esquerda que coloca contra o impeachment (PCO e parte do PSOL) como a que se coloca a favor (de maneira envergonhada, como PSTU e parte do PSOL ou escancarada, como MRS) estão na verdade tentando contornar o problema de como construir uma referência política a partir do movimento real da classe. Querem dirigir artificialmente o movimento da classe a partir da política.
Temos que partir da realidade da crise capitalista e construir os pontos de programa capazes de unificar as diversas reações e processos de enfrentamento que a classe vem desenvolvendo.
Na luta contra o desemprego, em defesa dos salários, direitos e condições de trabalho, contra a precarização: redução da jornada sem redução dos salários, até que haja emprego para todos, estatização das empresas que demitirem ou fecharem, sob controle dos trabalhadores, fim da terceirização, direitos trabalhistas para todos;
Na luta contra a inflação e a disparada do custo de vida: salário mínimo do DIEESE como piso para todas as categorias, por um gatilho que reajuste automaticamente os salários a cada aumento da inflação, abertura das planilhas de custo das empresas;
Na luta por educação, saúde, moradia, transporte e serviços públicos universais, gratuitos e de qualidade: não pagamento da dívida pública e uso desse dinheiro num programa de obras e serviços públicos sob controle dos trabalhadores, investimento maciço nos serviços públicos, com condições de trabalho e valorização dos funcionários;
Na luta contra a corrupção: cassação de mandatos, prisão e expropriação dos bens de todos os corruptos e corruptores, mandatos revogáveis para todos os cargos públicos e salário médio de um trabalhador para todos os ocupantes de cargos públicos;
Na luta por democracia: direito de greve e de manifestação, fim das perseguições, punições e demissões de militantes e ativistas, fim da polícia militar e do aparato repressivo do Estado voltado contra os trabalhadores.
Em todas essas lutas, denunciar o papel do PT como agente da burguesia, gestor dos interesses do capital, e ao mesmo tempo combater as ideologias individualistas, meritocráticas e autoritárias da direita, e defender a ruptura do capitalismo e a construção de um poder socialista dos trabalhadores baseado em suas organizações de luta. Esse programa precisa ser aperfeiçoado na prática, não como uma receita pronta ou invenção arbitrária, mas a partir do diálogo real com cada processo de luta em andamento no país. Existe farta matéria prima para a construção de um projeto e referências de luta classistas e anticapitalistas, a partir das greves, manifestações, ocupações, enfrentamentos e ações diretas que têm se multiplicado.
É hora de dar unidade e coerência a todas essas lutas. Basta romper com os vícios burocráticos, as concepções dogmáticas, a acomodação aos aparatos estatais e sindicais, os métodos aparelhistas, o oportunismo, que esterilizaram a esquerda à sombra do PT por décadas. Essa é a única forma de escapar da armadilha do “impeachment X defesa do governo” e construir uma agenda dos trabalhadores.