20.2.16

O economicismo no tratamento das assim chamadas "opressões"



O economicismo é um vício tão arraigado na esquerda* que as organizações são incapazes de abordar qualquer questão social de uma outra forma que não seja uma pauta de reivindicações sindicais. A esquerda parte do pressuposto de que o “trabalhador” é o sujeito revolucionário, mas é incapaz de definir o que é o trabalhador hoje, e transformou essa categoria numa fórmula metafísica, na qual tenta encaixar à força a realidade em todos os seus infinitos e multifacetados aspectos.
Há mais de 100 anos, no “Que Fazer?”, Lênin já fulminava os economicistas que achavam que o único assunto que interessava aos trabalhadores eram salários e horas de trabalho. A política revolucionária consistia exatamente em elevar a consciência dos trabalhadores para além do ambiente da fábrica e levá-los a entender e lutar por mudanças na sociedade em geral. Mas fazer uma política revolucionária de verdade como a que foi defendida por Lênin, abrangente e totalizante, é muito difícil. Então, a esquerda tende a regredir para o piloto automático economicista e achar que a única discussão “classista” possível é a que se refere a salários e jornadas de trabalho. Porque “classe trabalhadora” é sinônimo de operário na fábrica com baixos salários e jornadas extenuantes, e não pode ser mais nada além disso. Nessa visão, todas as dimensões da vida do trabalhador fora do seu local de trabalho ficam fora do alcance da esquerda, sob o controle estrito das instituições e da ideologia burguesa, e a esquerda se exime de fazer qualquer coisa a respeito delas.
O trabalhador como uma totalidade humana de relações, que se baseiam no trabalho e na alienação do trabalho sob a forma capitalista, mas que vão muito além disso, desaparece e em seu lugar temos uma vulgar caricatura de “homo economicus”. Ao “trabalhador” pelo qual a esquerda se interessa, supostamente não interessa nenhum outro tipo de questões, como a degradação ambiental, serviços públicos, crime, violência, drogas, polícia e direitos humanos, mobilidade urbana, direitos do consumidor, artes e espetáculos, ciência e tecnologia, esporte e lazer, psicologia e psicanálise, religião e filosofia, sexualidade, saúde, comportamento, padrão de beleza, moda, etc. Supostamente, nada disso passa pela cabeça do trabalhador em nenhum momento. Logo, para a esquerda, nada disso interessa nem mobiliza.
A esquerda reduz o “trabalhador” a um ser cuja vida se reduz a apenas salários, jornada e condições de trabalho. Nessa perspectiva reducionista e rebaixada, não é preciso debater nenhum dos demais aspectos da vida, porque são questões “sem importância” ou “pequeno burguesas”, ou não são “de trabalhador”, não são “classistas”. A esquerda, do alto da sua arrogância, sectarismo, incultura, e auto complacência, considera que essas questões não são dignas da atenção dos “revolucionários”. Não “se rebaixam” a tratar delas. Prefere correr atrás do próprio rabo, dialogar consigo mesma, panfletar a si mesma e pregar para os já convertidos. Enquanto isso, todos os acontecimentos, questões e lutas que não se referem a salários e condições de trabalho podem ser deixadas na alçada de movimentos parciais, específicos, pequeno-burgueses, culturalistas, pós-moernos, etc.

Quantidade e qualidade
Se isso é muito grave no que diz respeito à situação do “trabalhador” em geral e às formas de organizá-lo para lutar contra o capitalismo, é muito mais grave no que se refere aos chamados setores “oprimidos” da sociedade. Pois assim como não interessam para a esquerda as diversas dimensões da vida do trabalhador fora da fábrica, também não interessam, consequentemente, a relação entre os sexos, o patriarcado, o machismo, racismo, LGBTfobia. Essas questões somente são debatidas ou incorporadas de alguma forma devido à teimosia, persistência e heroísmo de alguns militantes mulheres, negros e LGBTs. Quando esses militantes, num esforço hercúleo, conseguem convencer a maioria das organizações em que participam a incluir alguma de suas pautas na discussão, isso acontece de maneira deformada, rebaixada, restrita, como uma concessão que a maioria “ortodoxa” faz, como se fosse mais um item da pauta economicista. Essa é a única língua que a esquerda consegue falar.
A esquerda trata as “opressões” sofridas por mulheres, negros e LGBTs como se fossem uma mera dimensão quantitativa adicional que em determinados casos se acrescenta à exploração do “trabalhador” (aquele ser que existe quando adentra a porta da fábrica, e não fora dela) em geral. De acordo com esse raciocíno, o “trabalhador em geral” é explorado, e os oprimidos são aqueles trabalhadores que são “um pouco mais explorados”. E esse “um pouco mais” de exploração é a única coisa que a esquerda consegue entender como uma possível definição de “opressão”. Os “oprimidos” são setores que são “explorados em dobro”, por isso merecem alguma consideração, algum espaço a mais nas pautas. “Opressão”, segundo essa lógica, não é nada mais do que isso.
A única forma da esquerda entender mulheres, negros e LGBTs é como seres que são oprimidos porque são mais explorados, recebem os menores salários e trabalham nos piores empregos. Logo, eles merecem um capítulo a mais na pauta de reivindicações do sindicato. A esquerda reivindica um tanto para o trabahador, e “um pouquinho mais” para os “oprimidos”. E com isso a consciência dos esquerdistas fica tranquila por haver tratado da questão das “opressões”. Uma atitude unilateral, condescendente e paternalista, que está muito longe de ser suficiente para atacar a especificidade e a profundidade das opressões.
É verdade que mulheres, negros e LGBTs recebem os piores salários e trabalham nos piores empregos, mas a “opressão” está muito longe de se resumir a apenas isso. O grau adicional de exploração dos “oprimidos” não é apenas causa da opressão, mas também, dialeticamente, conseqüência. As “opressões”, ou seja, o machismo, o racismo e a LGBTfobia surgem e se multiplicam para além do local de trabalho e dizem respeito a questões que vão muito para além de salários e jornadas de trabalho. São relações que atravessam todas as dimensões da vida dos oprimidos, dentro e fora do local de trabalho, no cotidiano, na família, no casamento, na cama, na educação, no transporte público, na vivência cultural, etc.
“...unidade do diverso” - (Marx)
A opressão não é (apenas) um “quantum” adicional de exploração que se acrescenta à cota de exploração “normal” que determinados setores da população sofrem enquanto trabalhadores. É muito mais do que isso: um conjunto de violências, agressões, discriminações, subestimações, sofrimentos que agravam determinados setores da população (em função de diferenças de gênero, etnia, orientação sexual, nacionalidade, religião, língua, etc.) em diversos aspectos da sua vida, nos seus locais de trabalho e para além deles, nos espaços públicos e privados. Sendo assim, precisam de respostas específicas.
A esquerda precisa entender o quanto as “opressões” não são uma mera dimensão quantitativa adicional da exploração, mas uma dimensão qualitativa que afeta a totalidade da vida dos oprimidos, se quiser mobilizar também esses setores. Na visão simplista da esquerda, os “trabalhadores” estão por definição e a priori unidos aos “oprimidos”, as mulheres, negros e LGBTs, na luta contra a burguesia, o capitalismo e o Estado. Na realidade, o machismo, o racismo e a LGBTfobia estão arraigados no interior da própria classe trabalhadora, e na verdade atravessam todas as classes sociais.
É a própria classe trabalhadora que também reproduz cotidianamente o machismo, o racismo e a LGBTfobia como parte das suas alienações. São os próprios trabalhadores que tem que ser reeducados para superar a opressão. A começar pelos próprios militantes de esquerda, que acham que essas questões não são importantes (já que na maior parte dos casos não conseguem sequer encaixá-las na pauta dos sindicatos). No caso do machismo, por exemplo, ele tem que ser combatido fazendo os homens aprender a cozinhar, lavar roupa e cuidar dos filhos, na mesma proporção em que as mulheres, e fazendo as mulheres ler filosofia, desenvolver a oratória e dirigir reuniões políticas, da mesma forma que os homens o fazem. É preciso dissolver as hierarquias baseadas em papéis sociais de gênero. E da mesma forma em relação às demais opressões, que precisam de medidas específicas, e ao mesmo tempo transversais e totalizantes.

Por trás do rótulo de “opressões”
É verdade que o machismo, o racismo e a LGBTfobia só podem ser superados com a superação do próprio capitalimo, e isso só pode ser feito pela ação consciente, coletiva e organizada da classe trabalhadora, em uma revolução socialista. Mas para que isso seja feito, é preciso que a classe trabalhadora (e principalmente os revolucionários que querem organizá-la) estejam conscientes de que existem o machismo, o racismo e a LGBTfobia, do que são essas formas de opressão e de como enfrentá-las. É preciso estar consciente da dimensão qualitativa das “opressões”, e não reduzí-las a um aspecto quantitativo adicional da exploração.
Inclusive, usamos até aqui “opressões” entre aspas, desde o título do texto, porque esse é o nome que se dá para o capítulo adicional que se dedica nas pautas sindicais às mulheres, negros e LGBTs, como uma espécie de anexo ou nota de rodapé do conjunto de resoluções. Ao dar esse nome e juntar todos num pacote, a esquerda contribui justamente para mistificar e não entender o que são as opressões. A especificidade da condição da mulher, do negro e dos LGBT desaparece quando todos são incluídos num mesmo pacote com o nome de “opressões”. Por baixo do rótulo de “opressões” dado ao pacote, fica mais fácil fazer com que desapareça o que há de específico na condição de cada um e com que a opressão seja entendida de maneira indevida como mera dimensão quantitativa adicional da exploração. Para evitar esse processo de mistificação, ao invés de usar “opressões” como um pacote de agravamentos quantitativos indistintos que se acrescentam à exploração de determinados setores, é preciso falar separadamente e de maneira específica o que é a opressão sofrida por cada um deles, o machismo, o racismo e a LGBTfobia. É preciso criar um capitulo para cada um.
Para além da dupla jornada da mulher, o machismo é um sistema de opressão que condena a mulher a não ser e reduz o homem a uma determinada forma de ser. Sob o patriarcado, a mulher é o ser que não é (Saffioti). A mulher não pode ser protagonista, sujeito, racional, dona de si e capaz de decidir. O homem, por outro lado, tem que ser competitivo, duro, senhor das decisões e emocionalmente mutilado. O machismo mutila homens e mulheres de diferentes formas, eles como agressores e elas como vítimas. Só com o fim do machismo teremos relações equilibradas e igualitárias entre homens e mulheres. E estarão abertas formas de sensibilidade e realização para ambos os sexos, independentemente dos papéis de gênero hoje existentes.
A luta contra o racismo, por sua vez, enfrenta uma imensa dificuldade para ser “encaixada” numa aboragem classista. A esquerda não consegue unificar raça e classe, porque não percebe que já estão unificados na figura dos trabalhadores negros. Não é possível separar, num trabalhador negro, a parte em que ele é trabalhador e a parte em que é negro. O trabalhador negro é sempre e a todo momento um trabalhador e um negro. A classe trabalhadora é negra e a demanda de igualdade racial é uma demanda dos trabalhadores. A esquerda tem um pavor da luta por reparações para o povo negro, por cotas, ações afirmativas, etc., porque são pautas supostamente “reformistas”, que não atacam o capital e a divisão de classes. Como se a luta por melhores salários e condições de trabalho (ou seja, a continuidade do trabalho assalariado) fosse muito revolucionária! A esquerda não tolera uma gota de “reformismo” no movimento negro, ao mesmo tempo em que se atola no reformismo sindical. Exige que os negros passem direto da favela para os soviets, sem mediações, enquanto que os sindicatos (reformistas na sua natureza e estatizados) são cultuados pelos séculos afora como se fossem o espaço por excelência da emancipação do trabalhador.
A população LGBT, por sua vez, enfrenta a impossibilidade de se realizar sexualmente e ser socialmente aceita, por conta da existência de um modelo de família e de relação sexual estruturado em torno do patriarcado e do machismo. Os LGBTs não se encaixam nos papéis sociais e sexuais designados nem para os homens, nem para as mulheres, e por isso são um “problema” para os conservadores, que querem de qualquer forma neutralizá-los ou normatizá-los, violentando sua orientação sexual e sua forma de ser. Em tempos de polarização social, são a vítima preferencial do fundamentalismo religioso e do fascismo.
Em cada caso específico, as “opressões” dizem respeito a estruturas de poder e formas de dominação que são funcionais ao capitalismo, mas que não se confundem necessariamente e diretamente com a relação de trabalho assalariado. Por isso, precisam ser enfrentados na sua especificidade e no seu aspecto qualitativo, profundo e totalizante, para além de uma pauta meramente econômica e quantitativa. Para lutar contra essas formas de dominação é preciso desenvolver esforços dirigidos, específicos, que se aprofundem na realidade das mulheres, negros e LGBTs, tais como eles são (tal como a esquerda deveria fazer com o “trabalhador” em geral), a partir da base, das demandas concretas, e elevar gradualmente essas lutas a um enfrentamento contra o capital.

*esquerda = setor que defende a transformação da sociedade (ao contrário de “direita”, que defende a sua transformação). Sendo a atual sociedade de tipo capitalista, é de esquerda quem defende o fim do capitalismo e a construção do socialismo. Considerando esse critério, deve ficar óbvio que nem PT, nem PcdoB são de esquerda, já que são administradores do capitalismo (para ser rigoroso, não é esquerda nem mesmo a maior parte do PSOL). Portanto, quando falamos de esquerda, estamos falando de quem defende uma revolução socialista.


7.2.16

"O despertar da força": voltar ao passado para alcançar o futuro



Dizer que “O Despertar da Força”, sétimo episódio da série “Star Wars”, é mais uma produção da indústria cultural estadunidense, destinada a quebrar recordes de bilheteria e arrecadar mais alguns bilhões de dólares em vendas de infinitos tipos de produtos derivados, esmagando a produção cultural de todas as regiões do mundo, colonizando milhares de salas de cinema e contando com o auxílio de imensa parafernália publicitária em todos os tipos de mídia; é o mesmo que não dizer nada. Tudo isso é muito óbvio.
Na sociedade capitalista em que vivemos, todo filme de grande alcance é produzido dessa maneira (e a discussão sobre a relação deletéria entre a forma mercadoria e as obras de arte e cultura em geral e sobre a necessidade de outras formas de produção cultural, bem como de outras formas de sociedade, esgota em muito o objetivo deste artigo). Indo além do óbvio, para dizer alguma coisa relevante sobre o filme, é preciso avaliar até que ponto o próprio filme tem algo de relevante a dizer sobre a nossa sociedade, não se limitando aos aspectos meramente quantitativos e comerciais envolvidos na sua produção e distribuição. Ou seja, de que forma a estrutura e as soluções da narrativa (independentemente das intenções do autores) revelam aspectos ideológicos da sociedade.
No caso deste autor, é preciso fazer também uma ressalva em relação a sua ligação afetiva com “Star Wars”. Afinal, minha formação estética se deu na década de 1980, consumindo música Heavy Metal, HQs de super-heróis e filmes de ficção científica (naquele momento nem sequer se sonhava que os próprios super-heróis também poderiam aparecer em filmes). Cada produção desses gêneros era cultuada como uma rara preciosidade, já que na época (e lugar) não existia internet, nem DVDs, nem TV paga, nem o cinema era acessível, e era preciso esperar com grande ansiedade até que cada novidade aparecesse nas bancas ou estreasse na TV aberta.
Para que se tenha uma ideia, só pude assistir o episódio VI da série, “O Retorno de Jedi”, o terceiro filme da trilogia clássica, lançado no cinema em 1983, quando estreou no Brasil na TV aberta em 1988, portanto 5 anos depois. Era assim que as coisas funcionavam. Nada era fácil como é hoje, em que os filmes estreiam simultaneamente no cinema e na internet, nos sites piratas. Isso faz muita diferença na forma como esses filmes e seus personagens eram apreciados e na relação que os fãs criavam com eles. Não há como escrever sobre essa série sem fazer tal confissão ao leitor.
O criador e a criatura
Feitas as ressalvas, começamos pelo ponto de partida para entender a série “Star Wars”, o fato de que na verdade não se trata de ficção científica, mas de uma fábula. A ficção científica tem como tema o futuro da humanidade e o impacto da ciência e tecnologia na vida social e individual. “Star Wars”, ao contrário, tem um tema completamente diferente, e se passa há muito tempo atrás, numa galáxia muito, muito distante. A série reconta a eterna disputa entre o bem e o mal e seus personagens típicos, heróis e vilões, ao longo de gerações. O seu apelo e universalidade advém dessa temática, e não da tentativa de retratar alguma hipotética sociedade futura.
O segundo ponto para se entender a série e o novo filme é a relação com seu criador. George Lucas pertence a uma geração de diretores que revolucionou o cinema estadunidense a partir dos anos 1970, começando por Francis Ford Copolla, passando por Spielberg, Scorcese, Brian de Palma, Oliver Stone, Ridley Scott (que é inglês), e chegando a James Cameron e Tim Burton. Dentro dessa brilhante geração, George Lucas talvez seja o menos talentoso, mas é provavelmente o mais bem sucedido comercialmente.
Para viabilizar o lançamento do primeiro filme em 1977 (apresentado com o nome de “Guerra nas Estrelas”, mas como corresponde ao episódio IV na cronologia da série, gradualmente assumiu o subtítulo “Uma nova esperança”), ele fez um acordo com o estúdio em que abria mão da sua remuneração de diretor em troca da exclusividade na comercialização de produtos derivados. O resultado de “Guerra nas Estrelas - Uma nova esperança” surpreendeu a todos na época: foi um recordista de bilheteria e gerou uma infinidade de subprodutos que vão desde bonecos dos personagens até jogos de videogame, que rendem fortunas até hoje.
O estrondoso sucesso comercial deu a George Lucas carta branca para fazer o que quisesse com a série. Um segundo filme, “O Império contra-ataca” (episódio V) foi lançado em 1980, com novos e espetaculares cenários e personagens, um visual mais exuberante e uma temática mais adulta (é o preferido deste fã). O terceiro filme, “O Retorno de Jedi” (episódio VI), lançado em 1983, não manteve o mesmo nível e dividiu os fãs por conta de uma significativa infantilização.
Mesmo assim, a série já tinha conquistado seu lugar na história do cinema e se tornado um fenômeno cultural. Esse fenômeno foi avaliado de diferentes maneiras. Na linha mais apocalíptica, Pauline Kael, considerada a maior crítica de cinema dos Estados Unidos, interpretou “Star Wars” como a morte do cinema baseado em roteiro, diálogos e interpretação, e como advento de uma era de filmes voltados para o público infanto-juvenil e baseados em efeitos visuais. Considerando o que vemos hoje nas telas, ela parece ter acertado na profecia. Retomaremos esse ponto novamente logo adiante.
Depois do encerramento da trilogia clássica, “Star Wars” inspirou uma infinidade de produções em outros tipos de mídia, como videogames, histórias em quadrinhos, romances, desenhos animados (sempre sob a supervisão direta de Lucas), além de imitações e paródias. Com o passar do tempo, a série se tornou um dos pilares da cultura “pop” e objeto de culto “nerd”. O interesse do público por esse universo (e a correspondente lucratividade) nunca esteve em baixa em nenhum momento.

A cópia da cópia
Depois de um longo hiato, George Lucas resolveu finalmente levar às telas a história que antecede a trilogia clássica, os episódios I, II e III da sua cronologia, que contam a origem do vilão Darth Vader e do Império. Recheados de efeitos visuais gerados em computador, os três filmes da nova trilogia foram lançados em 1999, 2002 e 2005. Apesar do entusiasmo do diretor com os novos efeitos de computador, da exuberância visual e da boa vontade dos fãs (ver por exemplo a minha própria crítica, muito condescendente, do episódio III: http://politicapqp.blogspot.com.br/2007/05/vingana-dos-sith-fbula-e-histria_29.html), o resultado dos três novos filmes ficou muito abaixo da trilogia clássica. Nessa nova série, o mitológico Darth Vader foi retratado como um adolescente mimado que não consegue superar a perda da mãe.
Essa nova trilogia é parte de uma tendência geral de revisitar, recriar, recontar ou estender as histórias de personagens clássicos do cinema, mas sem o mesmo sucesso das versões originais. O Exterminador do Futuro, Planeta dos Macacos, Indiana Jones, Aliens, Hannibal Lecter, Batman, Jurassic Park, Mad Max (talvez o único que se salve nessa tendência, conforme comentário em: http://politicapqp.blogspot.com.br/2015/11/a-polemica-do-feminismo-em-mad-max.html), entre outros, participaram dessa tendência, em lançamentos que têm muito menos impacto e importância do que na época do seu surgimento. A revolução criativa do cinema estadunidense, protagonizada pela geração de diretores dos anos 1970, se esgotou há tempos e foi substituída pela mesmice.
Já se disse que na indústria cultural, nada se cria, tudo se copia. O cinema de hoje é a cópia da cópia. Não é à toa que um dos cineastas mais celebrados da atualidade, Quentin Tarantino, se destaca justamente por não criar absolutamente nada e apenas reciclar e imitar o estilo, a atmosfera e a música dos anos 1960 e 70, mas sem ter nada relevante a dizer sobre coisa nenhuma. O próprio George Lucas também não conseguiu superar o tom de infantilismo com o qual encerrou a trilogia clássica, e fez da trilogia nova nada mais do que o exemplo mais estrondoso dessa tendência decadente de cópias e imitações medíocres.
Essa tendência decadente é o mais recente estágio do processo apocalíptico em que o cinema foi dominado por filmes em que o visual se sobrepõe à inteligência. Mas convém não exagerar nem as virtudes do cinema anterior a “Star Wars” (como se fosse tudo muito inteligente, quando na verdade não era, basta lembrar que em 1976 “Rocky” ganhou o Oscar de melhor filme concorrendo contra “Taxi Driver”) de um lado, e nem menosprezar a presença de uma persistente corrente de filmes baseados em bons roteiros, de outro. O que é preciso reconhecer é a existência de uma segmentação entre cinema e vídeo, ou seja, filmes “para ver no cinema” e “para ver em casa”.
O cinema precisa de efeitos visuais espetaculares para motivar os espectadores a sair de casa e pagar ingressos, do contrário estes vão preferir assistir televisão, vídeo, DVD e “streaming” da internet. A diferença entre os filmes “para ver no cinema” e “para ver em casa” se aprofundou, mas bons e maus filmes continuaram a ser feitos, com e sem efeitos visuais. O segredo do sucesso da trilogia clássica de “Star Wars”, mais do que nos efeitos visuais (avançados para a época, mas tosquíssimos para os padrões de hoje), estava na narrativa simples e na temática de apelo universal, na capacidade de apelar diretamente para os arquétipos do heroísmo, iniciação, transcendência, individuação. O fracasso quase total da trilogia nova (com efeitos muito mais espetaculares) se deveu a um roteiro medíocre, com personagens fracos e mal resolvidos.

O show tem que continuar
O fato de George Lucas estar superado como diretor não seria obstáculo para que a indústria de Hollywood deixasse de explorar o lucrativo filão do universo “Star Wars”. Depois de uma negociação que deve ter sido bastante complicada e dispendiosa, a Disney convenceu Lucas a abrir mão do controle criativo sobre “Star Wars”, liberando o caminho para que uma nova série de filmes seja produzida, contando um novo arco de histórias ambientadas no mesmo cenário. Para desespero dos fãs radicais, a criação de novas histórias implicou em invalidar a série de livros do chamado “universo estendido”, com histórias que nunca mais serão filmadas.
Para conduzir o episódio 7, a Disney recrutou um dos diretores mais “nerds” da nova geração, J.J Abrams, também roteirista e produtor de cinema e TV, responsável pela criação do aclamado seriado “Lost”, por filmes das séries “Missão Impossível” e “Star Trek” (outro ícone nerd) e por algumas pérolas como “Cloverfield” e especialmente “Super 8”.
A encomenda da Disney deve ter sido de um filme que resgatasse a atmosfera da trilogia clássica, o que não seria tarefa fácil. Provavelmente por medo de errar, os produtores optaram por reproduzir o maior número possível de elementos com os quais os fãs pudessem se identificar (essa era a intenção da Disney, mas independentemente disso, o resultado de uma determinada criação cultural muitas vezes extrapola o sentido que lhe foi destinado pelos criadores, conforme veremos no final). Esse esforço para criar algo que agradasse aos fãs acabou sendo exagerado. A estrutura do roteiro é praticamente idêntica à do “Guerra nas Estrelas – Uma Nova Esperança”, de 1977, com pinceladas dos demais filmes da trilogia clássica (os mais interessados em polêmicas “nerd” podem esmiuçar esses detalhes na nota de rodapé*, onde concentramos todos os “spoilers”).
Também há uma dependência excessiva do personagem de Harrison Ford, que rouba a cena do elenco jovem com as melhores falas e situações cômicas (talvez para justificar um salário dezenas de vezes maior). Outra importante fragilidade do filme é o pusilânime vilão Kylo Ren, que aderiu ao lado negro da Força por causa de alguma mágoa na relação com os pais. Ele se assemelha muito mais ao patético adolescente mimado Annakin Skywalker da trilogia nova do que ao ameaçador Darth Vader da trilogia clássica. Somente a forma como se dá o desenlace da sua relação com Han Solo de certa forma o “redime” como vilão, mas apenas para que ele fracasse logo depois no confronto com os protagonistas. A diferença entre as gerações, não só entre os vilões, mas também entre os protagonistas, separadas no filme e na vida real por um intervalo de 30 anos, é o último elemento crucial para entender o verdadeiro sentido deste episódio VII, conforme discutiremos logo adiante.

Desafiando alguns tabus
Os protagonistas são o principal destaque do filme, pelo fato de serem uma mulher e um negro. Esse tem sido o aspecto que provoca maior discussão, e é importante nos atermos a ele. Os homens brancos não detém mais o monopólio do heroísmo na indústria cultural. A inclusão de protagonistas mulheres e negros em “O despertar da Força” é um marco da luta por representatividade, que é um dos aspectos das lutas das mulheres e dos negros. É importante, mas é apenas um aspecto da luta. Não é pelo fato de termos protagonistas mulheres e negros num filme de Hollywood que estes deixam de sofrer a opressão que sofrem no mundo real. Mas de qualquer forma, o fato de crianças e adolescentes negros e do sexo feminino poderem ver a si mesmos como protagonistas faz alguma diferença na sua construção subjetiva e ajuda a fortalecê-los para lutas futuras e reais.
Ao colocar em cena personagens “politicamente corretos”, “O Despertar da Força” tenta se sintonizar com as tendências mais progressistas da sensibilidade coletiva contemporânea, tarefa que mede o sucesso ou fracasso de toda obra de arte. Mas essa tentativa não está isenta de problemas. Primeiro, o protagonista negro não deixa de estar representado de forma um tanto desvantajosa, já que pode ser visto como um subalterno, traidor, e mentiroso, por mais que tenha tentado consertar a situação. E segundo, a relação entre o negro Finn e a jovem Rey não mereceu a “dignidade” de uma relação romântica. Ficou “rebaixado” ao nível de uma amizade entre parceiros de luta.
Um negro e uma mulher são aceitáveis como protagonistas, mas um beijo interracial já seria afronta demais aos tabus e preconceitos vigentes. As façanhas de Rey por si só já suscitaram celeuma entre os fãs (como pode ela ter feito tudo o que fez, sem ser uma Jedi treinada?), numa reação tipicamente machista (ninguém estranhou quando o igualmente novato Luke Skywalker, na sua época, destruiu nada menos do que uma Estrela da Morte...). Para não enfrentar polêmicas demais, o estúdio não foi até esse ponto, o que acabou sendo uma fraqueza do episódio VII. Não é que estejamos defendendo o modelo de relação romântica hollywoodiana, com beijo ao pôr do sol e final feliz, etc., como única forma possível de relacionamento. Mas se todos os casais podem e todos os filmes podem, porque não Rey e Finn? Sem esse passo adiante em ousadia, algo ficou faltando na dinâmica dos dois protagonistas, que deslizou num certo vazio, em suspenso, a ponto de prejudicar a fluência do filme.

O mundo pós-Guerra Fria
A inclusão das “minorias”, a tolerância para com a diversidade e o multiculturalismo são uma espécie de fronteira contemporânea do bom-mocismo. São o limite atual do que a indústria cultural enxerga como o pólo do “bem” na luta contra o “mal” em sua narrativa organizadora da realidade. Essa narrativa se deslocou do terreno da disputa entre ideais político-sociais para o do comportamento individual.
Isso é um reflexo de uma situação histórica em que a ideologia dominante não enxerga adversário no que se refere a alguma alternativa societal totalizante. Como não há um outro projeto de sociedade em disputa com o capitalismo, as alternativas se dão no interior desse ideal político-social, e não mais em torno da luta entre mantê-lo ou superá-lo. Não há mais disputa pelo poder político como faculdade supostamente capaz de transformar o sistema em sua totalidade, há uma disputa por um pouco mais de igualdade dentro do sistema existente. O adversário atual é a intolerância e a não aceitação da diversidade, e os protagonistas são setores oprimidos da sociedade. Esse é o limite alcançado pela ideologia liberal progressista que alicerça o filme, e que acaba sendo também responsável pelas suas lacunas.
Não se trata apenas de uma mudança de gerações separadas pelo tempo, mas de uma transformação no contexto histórico social, em relação ao momento em que foi concebida a trilogia clássica. Naquela época, no contexto da Guerra Fria (1977, 1980, 1983), os primeiros três filmes da série retratavam o Império como uma caricatura da União Soviética (autoritária, burocrática, racional, padronizado) e a Aliança Rebelde como representação dos Estados Unidos (democrática, sentimental, mística, multifacetada). A ironia é que, no mundo real, os Estados Unidos são o Império, mas precisam retratar a si mesmos, para consumo da sua juventude e exportação mundo afora, como se fossem os rebeldes. São um Golias que precisa retratar a si mesmo como Davi, analogia recorrente no cinema estadunidense. O único inconveniente dessa mistificação, do ponto de vista do Império, é que ela precisa prestar homenagem aos valores da rebeldia (direito à rebelião, luta por liberdade, democracia, diversidade), criando uma brecha para os rebeldes, mesmo que no mundo real os Estados Unidos os esmaguem diariamente.

Em busca de referências
Hoje, na ausência de um espantalho para exorcizar (o Império do mal soviético se desfez), o inimigo é supostamente a intolerância e a rejeição da diversidade. Tanto assim que o discurso da Primeira Ordem em “O Despertar da Força” é o mesmo da extrema direita xenófoba e policialesca, dos partidos neonazistas e de Bolsonaro, um discurso em defesa da “ordem”, contra a frouxidão da República. A analogia histórica mais próxima da situação retratada no filme é a República de Weimar na Alemanha dos anos 1920. Um cenário em que os nazistas (Primeira Ordem) tentavam tomar o poder pela força, sendo combatidos pelos socialistas e comunistas (a Resistência, herdeira da Aliança Rebelde).
Não temos mais uma disputa direta pelo poder entre o Império e Rebeldes temos uma situação confusa em que há uma República, uma Primeira Ordem, uma Resistência, etc. Nesse cenário confuso, temos alguns avanços em termos de representatividade das minorias. Da mesma forma, hoje não é mais tão fácil discernir os heróis e vilões no cenário mundial. Os Estados Unidos querem se apresentar como as forças da democracia, mas são eles que invadem e destroem países, financiam e armam o Estado Islâmico. Rússia, China, Irã, contrapesos geopolíticos pontuais aos Estados Unidos, não representam nenhum sistema social alternativo. São também potências igualmente capitalistas, em muitos sentidos tão autoritárias quanto os próprios Estados Unidos.
Hoje não é mais tão nítido quem está no lado luminoso e no lado obscuro da Força. Daí a necessidade de uma volta ao passado. O fundamento do que se defende como bom-mocismo, a luta contra as opressões, precisa avançar como uma luta contra os próprios fundamentos do sistema. Qualquer luta contra qualquer tipo de opressão, seja de mulheres, de negros, de LGBTs, de índios, lutas ambientais, etc., está condenada a girar em falso se não se voltar também contra o próprio capitalismo. O que não significa que sejam lutas “subordinadas” ou “secundárias”. Muito pelo contrário. Qualquer luta contra o capitalismo e por um mundo emancipado que não contemplar essas dimensões também está condenada a fracassar.
Enquanto não chega a essa conclusão, a nova geração derrapa no vazio. O Império no mundo real (os Estados Unidos) não conseguem encontrar um Império contra o qual combater no mundo virtual, e ao mesmo tempo precisam continuar rendendo homenagem a alguns valores progressistas de diversidade e tolerância. Precisam continuar homenageando os “rebeldes”, pois essa é a estrutura da fábula de “Star Wars”. É essa a explicação de fundo para os méritos e também para a fragilidade de “O Despertar da Força” e a sua necessidade inconsciente e implícita de voltar ao passado para buscar referências e pontos de apoio. Não se trata apenas de falta de criatividade e oportunismo dos executivos da Disney, que querem imitar os filmes clássicos. É a própria roda da História, no nosso mundo real, que está girando em falso.
A excessiva reverência de “O despertar da Força” à trilogia clássica se concretiza na cena final, que sintetiza o paradoxo do mundo atual. Ao invés da antiga geração passar o bastão para a nova, acontece o contrário. A nova geração busca nos heróis do passado um caminho para seguir. Sinal de que as causas contemporâneas do que se enxerga como o “bem” (a defesa da diversidade contra a intolerância, inclusive) precisam se conectar com suas raízes. É preciso retomar a luta contra os poderes do mal e seu o Império. É preciso retomar a luta de classes. Que a Força esteja conosco!

* Discutimos a seguir alguns problemas no roteiro de “O Despertar da Força”, em aspectos que interessam mais estritamente aos fãs. Essa parte só faz sentido para quem já assistiu o filme, e entra em vários detalhes cruciais, inclusive se referindo ao que acontece no final, portanto, se ainda não viu o filme, melhor parar a leitura por aqui.

1. Sobre as semelhanças no roteiro com os filmes da trilogia clássica:

a) A trajetória de Rey em “O despertar da Força” é idêntica à de Luke Sakywalker em “Guerra nas Estrelas – Uma Nova Esperaçna”: jovem morador de planeta desértico encontra andróide com mensagem secreta, parte na Millenium Falcon para salvar a galáxia, e precisa aprender a usar a Força;
b) A situação de confronto entre a base da Resistência e a base Starkiller é a mesma da Estrela da Morte contra a base dos rebeldes.
c) A situação de Rei capturada no planeta da Primeira Ordem, com Finn vindo para salvá-la, é a mesma de Leia sendo resgatada por Luke e Han Solo. Tem até mesmo dois stormtroopers conversando: “você viu o novo...”
d) Assim como a princesa Leia, o piloto Poe Dameron também foi interrogado por conta da localização do andróide e da mensagem secreta.
e) A morte de Han Solo cumpre mais ou menos o mesmo papel dramático da morte de Obi Wan Kenobi no episódio IV.
f) A personagem Maz Kanata tem mais ou menos a mesma função do mestre Yoda, que aparece no episódio V.
g) Assim como no episódio VI, a Resistência também tem que enviar uma pequena equipe para desarmar o escudo da Starkiller Base.

2. Para além das semelhanças gritantes no roteiro, há alguns outros problemas:

a) O Império foi destruído em “O Retorno de Jedi”, e 30 anos depois existe uma República, mas ela não tem exército para se defender, apenas uma Resistência maltrapilha, armada com os mesmos equipamentos da velha Aliança Rebelde.
b) Os planetas que servem de sede para a República são destruídos, mas Luke Skywalker não sente nada em seu exílio (como Obi Wan Kenobi sentiu quando Alderan foi destruído), pois se mostrou completamente surpreso quando Rey o encontrou.
c) Finn era um simples stormtrooper, mas é capaz de usar um sabre de luz e enfrentar um cavaleiro do lado negro praticamente de igual para igual.
d) O líder Snoke surgiu do nada e lidera a Primeira Ordem, mas não se sabe se ele existia antes do Império ou contemporaneamente, pois nunca foi citado nas trilogias anteriores.
e) Han Solo e Chewbacca são parceiros há décadas, mas um não conhecia o poder da arma do outro.
f) R2D2 só despertou no final do filme, sem nenhum motivo aparente.



A falácia do "almoço grátis" e o passe livre



O aumento do preço das passagens dos ônibus e metrôs em várias capitais e regiões metropolitanas em 2016 motivou uma nova onda de protestos de rua, impulsionados pelo MPL (Movimento Passe Livre) e apoiados por outros movimentos e organizações, reprimidos com a costumeira e criminosa brutalidade policial, e universalmente difamados pelos sórdidos mercenários da mídia.
Somando-se ao massacre, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad – PT, contestou os protestos dizendo que os ativistas do MPL estão querendo algo como “almoço grátis, jantar grátis, viagem para a Disney grátis”, algo impossível, e que seria preciso “eleger um mágico” para conseguir. Imediatamente, o prefeito foi aplaudido por todos os setores conservadores e reacionários por lembrar aos esquerdistas que “não existe almoço grátis”. Esse velho chavão é um dito típico do mundo anglo-saxônico (https://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%A3o_existe_almo%C3%A7o_gr%C3%A1tis), mas tem se tornado popular entre os direitistas brasileiros, carentes de imaginação própria, bem como de qualquer originalidade teórica de modo geral.
O pensamento conservador costuma responder a todos os movimentos reivindicatórios, que pedem qualquer tipo de reforma ou melhoria social, dizendo que “não existe almoço grátis”. Pelo raciocínio conservador, quem está pedindo algo como o Passe Livre, ou seja, transporte público de graça, está pedindo para tirar de onde não tem. O almoço sempre tem que ser pago por alguém, por isso não pode ser de graça. O transporte público tem um custo, que precisa ser coberto por alguém. Se alguém está querendo transporte público de graça, segundo a lógica conservadora, esse alguém está na verdade querendo que outros paguem as suas passagens. Está querendo andar de ônibus ou de metrô às custas dos outros. É um vagabundo que não quer trabalhar.
Essa conclusão de que “não existe almoço grátis” é uma consequência da visão de mundo conservadora, que pretende explicar todas as questões sociais como problemas de aptidão individual. O conservador vive em um mundo de ficção, onde supostamente quem trabalha duro consegue pagar pelo que precisa, seja transporte, saúde, educação, moradia, lazer, etc. E inversamente, quem não tem o que precisa, na verdade deixa de ter porque não se esforça o suficiente para merecer. Logo, o Estado não tem que prover serviços públicos de transporte, saúde, educação, moradia, lazer, etc., para ninguém, porque cada um tem que se esforçar para conseguir por conta própria.

O almoço já está pago
De fato, os conservadores têm razão, e não existe almoço “grátis”, mas porque todo almoço já foi pago. O que a esquerda reivindica não é que alguém pague para que os outros consumam sem ter “feito por merecer”, mas fazer com que todos os que produzem (portanto “merecem”) tenham o direito de consumir. Porque na sociedade atual a produção e o consumo estão separados pela barreira da propriedade privada dos meios de produção. Ou seja, alguns trabalham e produzem, mas não têm o direito de consumir, porque tiveram o seu trabalho roubado. E quando querem usufruir do direito de consumir o que foi produzido (por exemplo, o transporte público), são acusados de querer consumir de graça, sem pagar.
Mas na verdade os trabalhadores, que produzem toda a riqueza existente na sociedade, já pagaram por meio do seu trabalho um valor mais do que suficiente para lhes dar o direito de usufruir transporte, saúde, educação, moradia, lazer, etc. Já pagaram por meio do seu trabalho, mas foram roubados no próprio ato de trabalhar, na própria forma como se organiza o trabalho, na forma capitalista como se trocam as atividades necessária para a sobrevivência da sociedade: o trabalho assalariado. Foram roubados, mas não percebem. Vejamos como essa mistificação acontece.
Todos os produtos e serviços que circulam na economia foram produzidos por alguém. Esse “alguém” são os trabalhadores assalariados, ou seja, que trabalham em troca de salário*. O salário é o valor necessário para cobrir a reprodução da vida do trabalhador, ou seja, sua alimentação, vestuário, moradia, etc., de uma forma que ele possa vender sua força de trabalho no dia seguinte. Acontece que a jornada de trabalho dos assalariados é usada para gerar produtos e serviços cujo valor total é muito maior do que o valor do salário.
A soma do total que um trabalhador produz ao longo de sua jornada é maior do que o valor que ele recebe como salário, ou seja, do que o valor necessário para cobrir a sua sobrevivência. Durante uma parte da jornada ele trabalha o suficiente para produzir um valor equivalente ao dos bens e serviços de que precisa para sobreviver, e é pago por esse trabalho na forma de salário. Mas o trabalhador não trabalha somente até esse ponto, ele continua trabalhando depois de já ter gerado o valor do próprio salário. Nessa segunda parte da jornada ele trabalha de graça. Ele continua gerando produtos e serviços, que são apropriados pelo patrão, que os vende no mercado, e recebe assim, ao final, um valor muito maior na venda dos produtos do que o valor inicial que investiu em matérias primas, máquinas, salários, etc.
Ou seja, não existe salário justo, todo salário é um roubo. Todo trabalhador é roubado diariamente, porque seu trabalho gera um valor maior do que aquele que recebe como salário. Esse valor maior é chamado de mais valia, e é a fonte do lucro dos patrões. Ao contrário do que dizem os mitos conservadores, ninguém fica rico por se esforçar no trabalho. A origem de toda a riqueza dos ricos é a apropriação de trabalho não pago. É o roubo sistemático, cotidiano, silencioso e implícito que todo assalariado sofre. Esse roubo diário, a exploração do trabalho, é o alicerce fundamental da sociedade capitalista, o fato básico, elementar, de onde deveria se iniciar qualquer discussão. Mas, convenientemente para os exploradores, o fato básico da exploração é jogado para debaixo do tapete por toneladas de ideologia (falsas explicações da realidade social) inventadas por acadêmicos, jornalistas, religiosos, políticos, publicitários, roteiristas, e uma vasta laia de parasitas intelectuais regiamente pagos para fazer esse serviço sujo. Sem entender a exploração não se entende nenhum fenômeno social, como a desigualdade, cuja origem não está no mérito dos indivíduos, mas na exploração de uns pelos outros.

Origem das desigualdades e o papel do Estado
O mercado não é uma competição em que todos saem iguais na linha de largada, é uma disputa viciada desde o início, porque uma parte dos competidores saiu em condições de vantagem. O filho de um patrão tem sempre melhores condições de concorrer (por uma vaga em universidade, concurso, etc.) do que o filho de um trabalhador. A consequência disso é que uns tendem a continuar sendo patrões e outros tendem a continuar sendo trabalhadores. Ou seja, a diferença entre “pobres” e “ricos” não é uma diferença de grau, em que se pode ir passando aos poucos de um nível para o outro, como se estivéssemos avançando milímetros numa régua. É uma diferença de natureza, de forma de ser, de relação social, que origina classes sociais separadas por um abismo. Existe uma classe exploradora (que vive da mais valia gerada pelos outros) e uma classe de explorados (trabalhadores assalariados que geram mais valia). A origem dessa diferença está no passado histórico distante, em que trabalhadores rurais e urbanos foram expropriados (roubados) dos seus meios de produção (suas terras, ferramentas, oficinas) e foram forçados a trabalhar para os patrões.
Se existe uma classe social de grandes empresários e super-ricos, é porque seus ancestrais em algum momento do passado usaram a força para obrigar os outros a trabalhar. Os exemplos de gente que “começou de baixo” e ficou rico são raras exceções, um caso entre milhares, que fazem a imensa maioria dos milhões de trabalhadores acreditar que também tem alguma chance de competir. A quase totalidade dos ricos e super ricos que controlam a economia dos países descende de membros dessa mesma classe social. Da mesma forma, alguns países são ricos e outros são pobres porque lá atrás, em algum momento da História, alguns países foram invadidos por outros, saqueados, tiveram suas populações nativas exterminadas ou escravizadas, etc. Nós vivemos até hoje as consequências dessa história de violência e espoliação, e seguimos sendo espoliados todos os dias.
Quando dissemos que foi usada a força, estamos nos referindo à força do Estado, a instituição mãe de todas as instituições, e detentora do monopólio do uso da força armada (só o Estado pode ter armas, não a população). Seja na forma de monarquia, de ditadura, de república “democrática”, o Estado, por meio das forças armadas, polícia, prisões, etc., exerce esse monopólio da força sempre em favor dos patrões e contra os trabalhadores. É o que vemos em todas as greves, protestos, ocupações, etc., em que a polícia está de prontidão para defender a propriedade privada dos meios de produção e o lucro.
Além do uso da força, o Estado cumpre um papel econômico, ao arrecadar impostos, que são descontados das diferentes classes sociais (em geral os ricos pagam menos e os pobres pagam mais). Com esses impostos os governos supostamente deveriam prover serviços que são da utilidade de todos. Mas o que vemos, no caso do Brasil, por exemplo, é que algo em torno de 45% da arrecadação federal (ou seja, R$ 978 bilhões em 2014, e mais do que isso em 2015, conforme http://www.auditoriacidada.org.br/) é usado para pagar uma tal de “dívida pública”, uma dívida fraudulenta (originada na ditadura militar, um regime ilegal, além de que nós trabalhadores nunca pegamos esse dinheiro emprestado), que consome fortunas todos os anos, mas mesmo assim não para de aumentar, justamente porque os juros da dívida são definidos por um comitê formado pelos próprios credores. Recentemente o BC anunciou que não iria subir os juros na proporção que o “mercado” gostaria e foi ameaçado com o fogo do inferno pelos chacais da imprensa (não que a redução dos juros fosse fazer alguma diferença, pois é necessário cancelar a totalidade dessa dívida espúria).

Passe Livre sem mágica
Voltando então ao debate sobre o transporte público, esse serviço evidentemente possui um custo, que é o da aquisição de ônibus (ou vagões), combustível (ou eletricidade), manutenção dos veículos (e trilhos), salário dos funcionários, obras, reparo de acidentes, etc. O valor pago em passagens deveria ser o suficiente para cobrir esse custo, e ainda, para formar um fundo de reserva a ser aplicado, por exemplo, em melhorias (ônibus ou trens novos e de melhor qualidade, fontes de energia limpas) ou na ampliação da rede (construção de novas linhas, estações, etc.). Entretanto, além do custo de operação do serviço e do fundo de reserva, uma parte da arrecadação é desviada para formar o lucro dos proprietários. Essa parte da arrecadação, portanto, é completamente inútil, estéril. Se não existisse a propriedade privada das empresas de transporte urbano, o valor das tarifas deveria ser ajustado apenas para cobrir apenas o seu custo de operação (e do fundo para investimentos em melhorias), e não para garantir o lucro dos empresários.
O ponto de partida da discussão sobre o custeio do transporte urbano deveria ser este: qual o custo da sua operação e dos investimentos necessários para a sua melhoria (os quais chamaremos de custo real) e qual o plano estratégico para essas melhorias, a ser decidido coletivamente pelos usuários, e não como garantir o lucro de empresários privados. Mas esse ponto é justamento o que nunca é discutido. O poder público, a prefeitura e o governo do estado, partem de um pressuposto, o preço apresentado pelos empresários do setor, e dizem para a sociedade que é preciso aumentar as tarifas. Haddad e Alckmin estão lá para garantir o lucro dos empresários, e não o serviço de transporte público para a população.
A primeira medida então, para resolver o problema de financiamento do transporte público, é expropriar as empresas de ônibus, trens e metrô, e colocá-las sob controle social, com fóruns coletivos para decidir sobre o seu funcionamento, com acesso público total aos seus custos, decisão mediante voto da população organizada em conselhos de usuários sobre o planejamento estratégico em melhorias, etc. Sem essa parcela inútil do total arrecadado com tarifas que é desviada como lucro dos empresários, teríamos o valor real do transporte público. Resta como uma questão a ser investigada descobrir o tamanho dessa parcela desviada como lucro. Abrir as planilhas de custo das empresas de transporte possivelmente nos revelaria algumas surpresas, sobre quanto os empresários embolsam e quanto investem no serviço. Qual é a proporção de cada fatia?
Outra questão importante é que, como inadvertidamente deixou entrever o próprio Haddad, não é preciso nenhuma mágica para conceder o Passe Livre. Na mesma ocasião em que fez essa asquerosa declaração debochando dos protestos contra o aumento, o prefeito de São Paulo disse que o custo para implantação do Passe Livre seria de R$ 8 bilhões, o equivalente a toda a arrecadação do IPTU do município. Supondo-se que essa conta esteja correta (ou seja, esquecendo-se que uma parte desse valor não se refere ao custo real do transporte, mas na verdade corresponde a uma fatia inútil desviada como lucro dos empresários, que não deveria existir), a prefeitura teria que conseguir arrecadar mais R$ 8 bilhões para subsidiar o transporte público gratuito, e manter os demais serviços em funcionamento. De onde tirar esses R$ 8 bilhões?
Muito simples: aumentando os impostos da classe empresarial. O município de São Paulo é a sede de uma parte importante do capital instalado no país. Bancos, empreiteiras, montadoras, cadeias de varejo, etc., uma quantidade enorme de grandes empresas nacionais e estrangeiras tem suas sedes em São Paulo. Grandes empresários tem suas mansões em São Paulo. Ainda que a competência do município o autorize a cobrar apenas o imposto predial e territorial (IPTU) e os demais impostos sejam de competência estadual e federal, um aumento drástico na alíquota do IPTU faria os empresários devolverem na forma de imposto uma parte da riqueza que roubam diariamente dos trabalhadores na forma de lucro, ou seja, mais valia, trabalho não pago.
Mas para isso seria preciso que o PT rompesse com a classe empresarial para quem governa, o que é impossível. O PT não vai fazer isso, e os trabalhadores organizados, a partir dos locais de trabalho, moradia e estudo, precisam construir um movimento independente, capaz de impor essa e outras reivindicações contra os governos do PT, PSDB, PMDB ou qualquer partido que controle o Estado. Passe Livre, mediante a expropriação das empresas de transporte, sob controle da população organizada em conselhos de usuários, e mediante aumento drástico dos impostos da classe empresarial. Até que façamos algum dia uma revolução para acabar com a propriedade privada, o trabalho assalariado, o Estado e todas as formas de exploração e de opressão.

*Omitimos aqui a discussão sobre as diferenças entre trabalho produtivo e improdutivo, assalariados em geral e classe trabalhadora, trabalho gerador de mais valia, etc., para não alongar demais o texto. Usamos esses termos genericamente.