20.2.16

O economicismo no tratamento das assim chamadas "opressões"



O economicismo é um vício tão arraigado na esquerda* que as organizações são incapazes de abordar qualquer questão social de uma outra forma que não seja uma pauta de reivindicações sindicais. A esquerda parte do pressuposto de que o “trabalhador” é o sujeito revolucionário, mas é incapaz de definir o que é o trabalhador hoje, e transformou essa categoria numa fórmula metafísica, na qual tenta encaixar à força a realidade em todos os seus infinitos e multifacetados aspectos.
Há mais de 100 anos, no “Que Fazer?”, Lênin já fulminava os economicistas que achavam que o único assunto que interessava aos trabalhadores eram salários e horas de trabalho. A política revolucionária consistia exatamente em elevar a consciência dos trabalhadores para além do ambiente da fábrica e levá-los a entender e lutar por mudanças na sociedade em geral. Mas fazer uma política revolucionária de verdade como a que foi defendida por Lênin, abrangente e totalizante, é muito difícil. Então, a esquerda tende a regredir para o piloto automático economicista e achar que a única discussão “classista” possível é a que se refere a salários e jornadas de trabalho. Porque “classe trabalhadora” é sinônimo de operário na fábrica com baixos salários e jornadas extenuantes, e não pode ser mais nada além disso. Nessa visão, todas as dimensões da vida do trabalhador fora do seu local de trabalho ficam fora do alcance da esquerda, sob o controle estrito das instituições e da ideologia burguesa, e a esquerda se exime de fazer qualquer coisa a respeito delas.
O trabalhador como uma totalidade humana de relações, que se baseiam no trabalho e na alienação do trabalho sob a forma capitalista, mas que vão muito além disso, desaparece e em seu lugar temos uma vulgar caricatura de “homo economicus”. Ao “trabalhador” pelo qual a esquerda se interessa, supostamente não interessa nenhum outro tipo de questões, como a degradação ambiental, serviços públicos, crime, violência, drogas, polícia e direitos humanos, mobilidade urbana, direitos do consumidor, artes e espetáculos, ciência e tecnologia, esporte e lazer, psicologia e psicanálise, religião e filosofia, sexualidade, saúde, comportamento, padrão de beleza, moda, etc. Supostamente, nada disso passa pela cabeça do trabalhador em nenhum momento. Logo, para a esquerda, nada disso interessa nem mobiliza.
A esquerda reduz o “trabalhador” a um ser cuja vida se reduz a apenas salários, jornada e condições de trabalho. Nessa perspectiva reducionista e rebaixada, não é preciso debater nenhum dos demais aspectos da vida, porque são questões “sem importância” ou “pequeno burguesas”, ou não são “de trabalhador”, não são “classistas”. A esquerda, do alto da sua arrogância, sectarismo, incultura, e auto complacência, considera que essas questões não são dignas da atenção dos “revolucionários”. Não “se rebaixam” a tratar delas. Prefere correr atrás do próprio rabo, dialogar consigo mesma, panfletar a si mesma e pregar para os já convertidos. Enquanto isso, todos os acontecimentos, questões e lutas que não se referem a salários e condições de trabalho podem ser deixadas na alçada de movimentos parciais, específicos, pequeno-burgueses, culturalistas, pós-moernos, etc.

Quantidade e qualidade
Se isso é muito grave no que diz respeito à situação do “trabalhador” em geral e às formas de organizá-lo para lutar contra o capitalismo, é muito mais grave no que se refere aos chamados setores “oprimidos” da sociedade. Pois assim como não interessam para a esquerda as diversas dimensões da vida do trabalhador fora da fábrica, também não interessam, consequentemente, a relação entre os sexos, o patriarcado, o machismo, racismo, LGBTfobia. Essas questões somente são debatidas ou incorporadas de alguma forma devido à teimosia, persistência e heroísmo de alguns militantes mulheres, negros e LGBTs. Quando esses militantes, num esforço hercúleo, conseguem convencer a maioria das organizações em que participam a incluir alguma de suas pautas na discussão, isso acontece de maneira deformada, rebaixada, restrita, como uma concessão que a maioria “ortodoxa” faz, como se fosse mais um item da pauta economicista. Essa é a única língua que a esquerda consegue falar.
A esquerda trata as “opressões” sofridas por mulheres, negros e LGBTs como se fossem uma mera dimensão quantitativa adicional que em determinados casos se acrescenta à exploração do “trabalhador” (aquele ser que existe quando adentra a porta da fábrica, e não fora dela) em geral. De acordo com esse raciocíno, o “trabalhador em geral” é explorado, e os oprimidos são aqueles trabalhadores que são “um pouco mais explorados”. E esse “um pouco mais” de exploração é a única coisa que a esquerda consegue entender como uma possível definição de “opressão”. Os “oprimidos” são setores que são “explorados em dobro”, por isso merecem alguma consideração, algum espaço a mais nas pautas. “Opressão”, segundo essa lógica, não é nada mais do que isso.
A única forma da esquerda entender mulheres, negros e LGBTs é como seres que são oprimidos porque são mais explorados, recebem os menores salários e trabalham nos piores empregos. Logo, eles merecem um capítulo a mais na pauta de reivindicações do sindicato. A esquerda reivindica um tanto para o trabahador, e “um pouquinho mais” para os “oprimidos”. E com isso a consciência dos esquerdistas fica tranquila por haver tratado da questão das “opressões”. Uma atitude unilateral, condescendente e paternalista, que está muito longe de ser suficiente para atacar a especificidade e a profundidade das opressões.
É verdade que mulheres, negros e LGBTs recebem os piores salários e trabalham nos piores empregos, mas a “opressão” está muito longe de se resumir a apenas isso. O grau adicional de exploração dos “oprimidos” não é apenas causa da opressão, mas também, dialeticamente, conseqüência. As “opressões”, ou seja, o machismo, o racismo e a LGBTfobia surgem e se multiplicam para além do local de trabalho e dizem respeito a questões que vão muito para além de salários e jornadas de trabalho. São relações que atravessam todas as dimensões da vida dos oprimidos, dentro e fora do local de trabalho, no cotidiano, na família, no casamento, na cama, na educação, no transporte público, na vivência cultural, etc.
“...unidade do diverso” - (Marx)
A opressão não é (apenas) um “quantum” adicional de exploração que se acrescenta à cota de exploração “normal” que determinados setores da população sofrem enquanto trabalhadores. É muito mais do que isso: um conjunto de violências, agressões, discriminações, subestimações, sofrimentos que agravam determinados setores da população (em função de diferenças de gênero, etnia, orientação sexual, nacionalidade, religião, língua, etc.) em diversos aspectos da sua vida, nos seus locais de trabalho e para além deles, nos espaços públicos e privados. Sendo assim, precisam de respostas específicas.
A esquerda precisa entender o quanto as “opressões” não são uma mera dimensão quantitativa adicional da exploração, mas uma dimensão qualitativa que afeta a totalidade da vida dos oprimidos, se quiser mobilizar também esses setores. Na visão simplista da esquerda, os “trabalhadores” estão por definição e a priori unidos aos “oprimidos”, as mulheres, negros e LGBTs, na luta contra a burguesia, o capitalismo e o Estado. Na realidade, o machismo, o racismo e a LGBTfobia estão arraigados no interior da própria classe trabalhadora, e na verdade atravessam todas as classes sociais.
É a própria classe trabalhadora que também reproduz cotidianamente o machismo, o racismo e a LGBTfobia como parte das suas alienações. São os próprios trabalhadores que tem que ser reeducados para superar a opressão. A começar pelos próprios militantes de esquerda, que acham que essas questões não são importantes (já que na maior parte dos casos não conseguem sequer encaixá-las na pauta dos sindicatos). No caso do machismo, por exemplo, ele tem que ser combatido fazendo os homens aprender a cozinhar, lavar roupa e cuidar dos filhos, na mesma proporção em que as mulheres, e fazendo as mulheres ler filosofia, desenvolver a oratória e dirigir reuniões políticas, da mesma forma que os homens o fazem. É preciso dissolver as hierarquias baseadas em papéis sociais de gênero. E da mesma forma em relação às demais opressões, que precisam de medidas específicas, e ao mesmo tempo transversais e totalizantes.

Por trás do rótulo de “opressões”
É verdade que o machismo, o racismo e a LGBTfobia só podem ser superados com a superação do próprio capitalimo, e isso só pode ser feito pela ação consciente, coletiva e organizada da classe trabalhadora, em uma revolução socialista. Mas para que isso seja feito, é preciso que a classe trabalhadora (e principalmente os revolucionários que querem organizá-la) estejam conscientes de que existem o machismo, o racismo e a LGBTfobia, do que são essas formas de opressão e de como enfrentá-las. É preciso estar consciente da dimensão qualitativa das “opressões”, e não reduzí-las a um aspecto quantitativo adicional da exploração.
Inclusive, usamos até aqui “opressões” entre aspas, desde o título do texto, porque esse é o nome que se dá para o capítulo adicional que se dedica nas pautas sindicais às mulheres, negros e LGBTs, como uma espécie de anexo ou nota de rodapé do conjunto de resoluções. Ao dar esse nome e juntar todos num pacote, a esquerda contribui justamente para mistificar e não entender o que são as opressões. A especificidade da condição da mulher, do negro e dos LGBT desaparece quando todos são incluídos num mesmo pacote com o nome de “opressões”. Por baixo do rótulo de “opressões” dado ao pacote, fica mais fácil fazer com que desapareça o que há de específico na condição de cada um e com que a opressão seja entendida de maneira indevida como mera dimensão quantitativa adicional da exploração. Para evitar esse processo de mistificação, ao invés de usar “opressões” como um pacote de agravamentos quantitativos indistintos que se acrescentam à exploração de determinados setores, é preciso falar separadamente e de maneira específica o que é a opressão sofrida por cada um deles, o machismo, o racismo e a LGBTfobia. É preciso criar um capitulo para cada um.
Para além da dupla jornada da mulher, o machismo é um sistema de opressão que condena a mulher a não ser e reduz o homem a uma determinada forma de ser. Sob o patriarcado, a mulher é o ser que não é (Saffioti). A mulher não pode ser protagonista, sujeito, racional, dona de si e capaz de decidir. O homem, por outro lado, tem que ser competitivo, duro, senhor das decisões e emocionalmente mutilado. O machismo mutila homens e mulheres de diferentes formas, eles como agressores e elas como vítimas. Só com o fim do machismo teremos relações equilibradas e igualitárias entre homens e mulheres. E estarão abertas formas de sensibilidade e realização para ambos os sexos, independentemente dos papéis de gênero hoje existentes.
A luta contra o racismo, por sua vez, enfrenta uma imensa dificuldade para ser “encaixada” numa aboragem classista. A esquerda não consegue unificar raça e classe, porque não percebe que já estão unificados na figura dos trabalhadores negros. Não é possível separar, num trabalhador negro, a parte em que ele é trabalhador e a parte em que é negro. O trabalhador negro é sempre e a todo momento um trabalhador e um negro. A classe trabalhadora é negra e a demanda de igualdade racial é uma demanda dos trabalhadores. A esquerda tem um pavor da luta por reparações para o povo negro, por cotas, ações afirmativas, etc., porque são pautas supostamente “reformistas”, que não atacam o capital e a divisão de classes. Como se a luta por melhores salários e condições de trabalho (ou seja, a continuidade do trabalho assalariado) fosse muito revolucionária! A esquerda não tolera uma gota de “reformismo” no movimento negro, ao mesmo tempo em que se atola no reformismo sindical. Exige que os negros passem direto da favela para os soviets, sem mediações, enquanto que os sindicatos (reformistas na sua natureza e estatizados) são cultuados pelos séculos afora como se fossem o espaço por excelência da emancipação do trabalhador.
A população LGBT, por sua vez, enfrenta a impossibilidade de se realizar sexualmente e ser socialmente aceita, por conta da existência de um modelo de família e de relação sexual estruturado em torno do patriarcado e do machismo. Os LGBTs não se encaixam nos papéis sociais e sexuais designados nem para os homens, nem para as mulheres, e por isso são um “problema” para os conservadores, que querem de qualquer forma neutralizá-los ou normatizá-los, violentando sua orientação sexual e sua forma de ser. Em tempos de polarização social, são a vítima preferencial do fundamentalismo religioso e do fascismo.
Em cada caso específico, as “opressões” dizem respeito a estruturas de poder e formas de dominação que são funcionais ao capitalismo, mas que não se confundem necessariamente e diretamente com a relação de trabalho assalariado. Por isso, precisam ser enfrentados na sua especificidade e no seu aspecto qualitativo, profundo e totalizante, para além de uma pauta meramente econômica e quantitativa. Para lutar contra essas formas de dominação é preciso desenvolver esforços dirigidos, específicos, que se aprofundem na realidade das mulheres, negros e LGBTs, tais como eles são (tal como a esquerda deveria fazer com o “trabalhador” em geral), a partir da base, das demandas concretas, e elevar gradualmente essas lutas a um enfrentamento contra o capital.

*esquerda = setor que defende a transformação da sociedade (ao contrário de “direita”, que defende a sua transformação). Sendo a atual sociedade de tipo capitalista, é de esquerda quem defende o fim do capitalismo e a construção do socialismo. Considerando esse critério, deve ficar óbvio que nem PT, nem PcdoB são de esquerda, já que são administradores do capitalismo (para ser rigoroso, não é esquerda nem mesmo a maior parte do PSOL). Portanto, quando falamos de esquerda, estamos falando de quem defende uma revolução socialista.


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