27.9.16

A esquerda e as eleições: sucumbindo à miséria do possível



Praticamente dois anos se passaram desde as eleições gerais de 2014 e já estamos novamente defrontados com um novo processo eleitoral, dessa vez para os cargos municipais. Ao longo desses dois anos, infelizmente, praticamente nenhuma lição foi tirada pela esquerda do processo de decomposição do projeto petista de conciliação de classes e gestão do capitalismo. Até agora não foi feito um balanço sério e uma reorientação estratégica, de modo que os mesmos erros estão sendo cometidos novamente. As mesmas táticas são adotadas outra vez para o processo eleitoral, sem uma reflexão sobre como essas táticas estão em contradição com os objetivos estratégicos, e mais servem para nos afastar deles do que para nos aproximarmos.

A queda da URSS e a crise da alternativa socialista
O projeto de conciliação de classe e gestão do capitalismo já era a linha majoritária do PT na década de 1980 e se impôs de maneira indisputada na década de 1990, a partir da queda da URSS e do Muro de Berlim. A partir daquele momento assumiu-se o discurso do "fim da história", "fim do socialismo", "fim do proletariado", etc., de modo que a convivência e "aperfeiçoamento" do capitalismo era tudo o que restava, e todos os que pensavam diferente foram expurgados do PT. O abandono da luta pelo socialismo em escala global levou a derrotas materiais e ideológicas colossais, das quais ainda não nos recuperamos: a mundialização do capital, a abertura comercial, a desregulamentação da circulação de capitais, as privatizações, a reestruturação produtiva, as terceirizações, os planos de "ajuste" econômico, etc. Os quais foram completados com a ideologia da "globalização", da democracia (burguesa) como "valor universal", do individualismo, da meritocracia, etc. A desacumulação de forças da classe trabalhadora foi imensa e custará muito para ser revertida pelas novas gerações que estão entrando na luta.
Para reverter esse quadro, é preciso construir uma compreensão correta dos acontecimentos e da situação histórica, começando pela trajetória da luta pelo socialismo. A URSS e demais países que seguiram o seu "modelo" não eram socialistas, e sim formas de transição interrompida que partiram de rupturas reais do capitalismo, mas tiveram a transformação barrada, e retornaram ao capitalismo. Esse processo de transição interrompida, suas contradições e a posterior restauração capitalista nunca foram completamente entendidos pela esquerda, de modo que não foi possível até hoje retomar o projeto socialista. Muitos setores da esquerda mantém a sua filiação ao socialismo apenas como uma declaração formal de princípios, mas sem a capacidade de identificar os passos concretos necessários para recolocar nos trilhos a luta pelo socialismo.
Muitas organizações socialistas sequer reconhecem a desacumulação de forças e a necessidade de reconstruir as mediações organizativas da classe, desde os locais de trabalho, os microcosmos da reprodução social, as diversas esferas de atividade, que abrangem da relação entre os sexos até a arte e a cultura. A maior parte ainda raciocina como se bastasse à esquerda se divulgar para a classe como "direção revolucionária" para romper com o capitalismo, sem que a classe em si mesma esteja minimamente organizada.

O erro de acreditar na própria mentira
Do lado petista essa preocupação com a reorganização da classe para a ruptura do capitalismo já tinha sido abandonada a décadas quando o partido chegou ao governo. Sequer havia a preocupação de organizar a classe para lutar por melhorias mínimas dentro do capitalismo, pois se supunha que a disseminação dessas "melhorias" viria de cima para baixo por obra e virtude de uma gestão competente do Estado e que assim se garantiria uma base eleitoral permanente para o PT. Mas ao contrário dos mitos do "fim da história", o capitalismo continua sendo um sistema inviável, eivado de contradições, gerador de misérias, guerras, violência, devastação ambiental, etc. A alternativa para a humanidade continua sendo socialismo ou barbárie, por mais que a gestão petista e outros charlatães no mundo inteiro tenham tentado vender a ilusão de um capitalismo "bom para todos". Assim, o capitalismo segue gerando novas crises, e a gestão petista se mostra incapaz de contorná-las (porque não há mesmo como contorná-las, e o capitalismo não deve ser gerido, mas destruído).
A inevitável demissão dos gestores petistas pelos seus patrões na Fiesp, Fenaban, CNA, etc. em algum momento iria chegar, e quando chegou, encontrou os trabalhadores desorganizados para a luta (situação que os dirigentes vindos do PT e de seus satélites nos movimentos sociais como CUT, UNE, MST cultivaram por décadas). E encontra também setores das camadas médias da população envenenadas pela pregação onipresente da mídia, igrejas, partidos da direita tradicional, de que sindicatos e movimentos sociais são coisas de “vagabundos” e "vitimistas" (negros, mulheres, LGBTs) que querem viver às custas de esmolas, prontamente dispensadas pelos demagogos e corruptos do PT. Tal foi o resultado do projeto petista de conciliação de classes e gestão do capitalismo: a desorganização da nossa classe, a desmoralização dos organismos e métodos de luta e a hegemonia de concepções reacionárias nas camadas médias da população e em boa parte dos trabalhadores (doutrinados por televangelistas e apresentadores de TV).

O PT cumprindo o seu papel
O impeachment veio, apesar das bravatas do PT. A luta contra o "golpe" reuniu um outro setor das camadas médias da população preocupado com a ofensiva reacionária e setores minoritários dos trabalhadores. Essa "luta" foi travada por meio de atos de rua (nos fins de semana e fora do horário comercial) e memes nas redes sociais. A massa dos trabalhadores não se colocou em luta, pois se encontra desorganizada, despolitizada, alienada e prostrada pelos ataques vividos sob a gestão do PT. Sem estar acostumado ao dia a dia da luta de classes, ninguém no improvisado movimento contra o "golpe" considera estranho que a CUT, maior central sindical país, com mais de 3.000 entidades filiadas e 23 milhões de trabalhadores representados, seja incapaz de convocar uma greve geral, nem mesmo para enfrentar um suposto "golpe" de Estado.
Não é apenas que a CUT não queira, ela não seria capaz. Não seria capaz porque durante décadas a central se acostumou a um sindicalismo "cidadão", de colaboração de classe, sem combatividade para enfrentar os ataques, e deseducou os trabalhadores que era sua função organizar. E a CUT não quer, porque o objetivo do PT não é enfrentar um "golpe" de Estado, é se colocar como alternativa eleitoral "de esquerda" para os setores democráticos nas camadas médias da população e assim voltar a ocupar espaços na gestão do Estado. O Brasil entra assim, com algumas décadas de atraso, no circuito dos países em que “esquerda” e direita se alternam no governo, como as únicas alternativas disponíveis, sendo que na prática aplicam o mesmo programa de governo de “austeridade” contra os trabalhadores e prodigalidade para o capital.
Na sequência da luta contra o "golpe" veio o movimento pelo "Fora Temer", com a mesma base social de setores democráticos das camadas médias, universitários, intelectuais, celebridades e setores minoritários de trabalhadores. Na ausência da luta de classes real, ou seja, uma greve geral, com paralização da produção e circulação de mercadorias, enfrentamento direto aos interesses vitais do capital, o "Fora Temer" se limita a constituir base eleitoral para a volta do PT à gestão do Estado (coligado em mais de 1.400 municípios com os mesmos "golpistas" do PMDB, PSDB, DEM, etc. que o derrubaram...).

A esquerda sem rumo
Diante dessa situação de desorganização dos trabalhadores, desmoralização dos seus organismos e métodos de luta e hegemonia de concepções reacionárias nas camadas médias da população e em parte dos trabalhadores, alguns setores da esquerda, como PSOL, PCB e PCO aderiram ao "Fora Temer", capitulando mais ou menos abertamente a esse operativo do PT de voltar à gestão do Estado. A única força representativa dentro da esquerda brasileira que não capitulou ao PT foi o PSTU, mas por conta de um erro simétrico e talvez até mais grave do que os demais. Mais além do que o restante da esquerda, o PSTU vai tão longe na desconsideração da necessidade de organização independente da classe que muito antes do "Fora Temer" já estava defendendo o "Fora Todos", inclusive no mesmo momento em que setores da burguesia que impulsionaram a ofensiva reacionária estavam defendendo o "Fora Dilma". Ou seja, o PSTU não capitulou ao PT, mas na prática capitulou à oposição burguesa. Tal é o seu grau de menosprezo para com a organização e consciência da classe.
O fato de que a classe trabalhadora esteja desorganizada e seja incapaz de derrubar Temer ou qualquer governante é desconsiderado por esses setores da esquerda. Pois para eles não é necessária organização da classe para fazer nada, basta a "direção revolucionária" apresentar o caminho. Ao invés de partir da luta de classes real, do enfrentamento entre capital e trabalho, da luta contra o desemprego, a inflação, a perda de direitos, a degradação dos serviços públicos, etc., esses setores partem do Estado e da superestrutura política. Com isso, dizem aos trabalhadores que não é preciso se organizar para enfrentar os problemas (desemprego, inflação, perda de direitos, etc.) por meio de greves, ocupações, bloqueio de ruas, passeatas, etc., basta remover um governante para resolver os problemas.
Na pressa de apresentar uma alternativa para a crise, saltam direto para o poder político e seu símbolo máximo, a presidência ("Fora Temer"), como se essa palavra de ordem "radical" fosse um atestado de combatividade contra o sistema. Sendo que na raiz dos problemas, no solo concreto da reprodução social, nos locais de trabalho, nos bairros, nos espaços moleculares da vida social, nas relações humanas, não houve nenhuma mudança na postura dos trabalhadores, no seu grau de organização e ação coletiva. Sem essa mudança fundamental, a realização do "Fora Temer" seria seguida de eleições gerais, que significariam apenas a legitimação de um novo gestor do Estado do capital. Coisa que a própria burguesia pode providenciar caso Temer não dê sequência ao que Dilma começou. A oposição à Temer e a todos os gestores do Estado a serviço do capital tem que ser feita a partir das lutas concretas, em que a classe se coloca como sujeito, não a partir do Estado, em que a burguesia detém as rédeas.

A reedição das ilusões reformistas
Considerando que a luta pelo socialismo não está colocada para o momento imediato, setores da esquerda defendem que a única luta possível hoje é a defesa de melhorias no interior do capitalismo. Por isso, é justificável ocupar espaços de poder no Estado, mandatos eletivos no legislativo ou mesmo executivo, para "acumular forças" até a ruptura do capitalismo. Mas a questão não é se a luta pelo socialismo está colocada para hoje ou não (não está), e sim se a luta que praticamos hoje conduzirá algum dia e de que forma a uma ruptura do capitalismo. A ocupação de mandatos eletivos no interior do Estado burguês descolada de um processo de organização a partir da base da classe trabalhadora nos aproxima ou afasta desse objetivo? O desvio da força militante para a conquista de mandatos eletivos reforça a crença na organização para a luta ou no Estado burguês? A participação nas eleições está sendo feita a serviço da luta de classes ou a luta de classes está sendo colocada a serviço da obtenção de mandatos eletivos?
Nossa posição é de que a segunda alternativa é verdadeira para as três perguntas. A esquerda insiste em privilegiar a superestrutura do Estado ("Fora Temer" combinado com "vote em mim") ao invés de privilegiar a organização de base para a luta. Dizem que uma campanha eleitoral revolucionária pode servir para educar os trabalhadores. Concordamos que isso é hipoteticamente possível, desde que se cumpram os requisitos de fazer a crítica ao Estado burguês (e não se propor gerí-lo), estabelecer uma delimitação de classe (não fazer alianças com partidos burgueses nem receber dinheiro da patronal), propagandear as lutas e desenvolver a unidade da classe. Vejamos como a esquerda se sai em relação a esses requisitos.
Dentre os partidos de esquerda legalizados, o PSOL é aquele que tem mais representatividade eleitoral, com alguns mandatos parlamentares federais e estaduais. Deve crescer nesta eleição e talvez até conquistar alguma prefeitura. Isso porque o projeto do partido é ocupar espaços no Estado para gerir o capitalismo, com a pretensão de fazê-lo de maneira mais “humana” (o que é na verdade impossível) e supostamente dessa forma encaminhar uma transformação ao socialismo. Com isso, pode dialogar com setores críticos do eleitorado petista. Na prática, trata-se de uma tentativa de reciclar o projeto pestita da década de 1990, com a pretensão de fazê-lo corretamente dessa vez. Dessa forma, a campanha do PSOL não fala em ruptura do capitalismo e denúncia do Estado e da democracia burguesa, mas apresenta diretamente os seus candidatos como melhores gestores para o Estado.
Em eleições passadas o PSOL já aceitou contribuições de empresas para a campanha. Este ano, chegaram a ser montadas coligações em 101 municípios envolvendo partidos como PSDB, DEM, PMDB, PR, PRB, PTB, PSD, PPS, PSC, SD e PP, as quais a direção do partido precisou intervir para que fossem desfeitas, conforme nota do próprio partido. Mas em Porto Alegre, o PSOL está coligado com o PPL, racha do PMDB. Em São Paulo, lançou como candidata Luíza Erundina, figura postiça, sem história no partido, que já foi gestora da prefeitura pelo PT e reprimiu a greve da CMTC, já foi ministra do governo FHC, etc. O histórico, o programa, as campanhas e candidaturas colocam o PSOL como um partido policlassista, sem independência de classe. Além dos seus parlamentares e figuras públicas, abriga algumas correntes no seu interior que possuem inserção militante na luta de classes real e defendem o socialismo, mas participam do partido apenas para captar militantes entre os simpatizantes e se construir. Não possuem influência nos rumos do partido, e na prática não o disputam, permanecendo no seu interior por questões meramente oportunistas de visibilidade.

Votar em protesto?
Em relação às demais organizações, PSTU, PCB e PCO, estão mais preocupadas em se construir do que em usar suas candidaturas como instrumento de luta. Para começar, essas organizações (e também as correntes combativas no interior do PSOL) não são capazes de construir instâncias unitárias para unificar os enfrentamentos da luta de classes real, as greves e processos de luta, em que a classe carece de uma referência de organização. Ao não existir essa referência, não existe um fórum do movimento em que se possa discutir a intervenção nas eleições. Não havendo subordinação da intervenção eleitoral ao processo de luta, os programas e as candidaturas são decididas unilateralmente e em separado pelas direções partidárias, conforme as suas conveniências de projeção das lideranças. Uma intervenção desse tipo não serve para educar os trabalhadores para a necessidade de lutar.
Se no dia a dia da luta de classes as organizações da esquerda não estão unificadas e contribuindo para a construção de uma alternativa dos trabalhadores, é evidente que não o farão nas eleições. Esperar que haja uma candidatura melhor que as outras e que possa cumprir esse papel é inverter a ordem das coisas, ver a intervenção política de cabeça para baixo. O critério para tomada de decisão tem que ser sempre a organização da classe
Se a justificativa da participação dos socialistas revolucionários nas eleições é apresentar um contraponto às candidaturas da burguesia, fazer a denúncia do Estado e da democracia burguesa, apresentar um programa de luta contra o capitalismo e colaborar para o avanço da consciência e organização da classe, as candidaturas da esquerda nessas eleições não cumprem esses requisitos, e a participação delas não se justifica, mais atrapalha do que ajuda. A trajetória do PT, desde o surgimento na luta de classes até a derrocada na gestão do Estado, não deixou nenhuma lição, pois mais uma vez a esquerda desloca sua atividade para a superestrutura do Estado. Ao invés de deixar um legado de avanço na organização e consciência da classe, deixa uma mensagem subliminar de reforço na crença no Estado e na democracia burguesa como instâncias de resolução dos problemas, em detrimento da luta. A mesma crença que precisamos destruir.

As candidaturas do PSOL, PSTU, PCB e PCO, tais como apresentadas nas eleições municipais de 2016, não cumprem os requisitos mínimos de uma intervenção construtiva nas eleições de um ponto de vista socialista. Logo, chamar o voto em qualquer um desses partidos só serve para reforçar a crença dos trabalhadores nas eleições e no Estado. O que representa o oposto daquilo que precisamos desenvolver, o protagonismo da classe a partir da sua organização independente para a luta. Na esteira desse mesmo tipo de participação no processo eleitoral que sucumbe à lógica da democracia burguesa (é preciso necessariamente votar em alguém), uma organização atuante em São Paulo que se notabiliza pelo marketing criativo está fazendo campanha para as candidaturas da esquerda dizendo “vote em protesto”. Mas nem só de marketing vive a esquerda e sim de organização real. Nas eleições, faça qualquer coisa menos votar. Ou, em protesto, não vote.

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