25.10.16

É preciso uma política para além do voto




O resultado do primeiro turno das eleições municipais de 2016 caiu como uma bomba sobre os setores que tinham alguma esperança na recuperação do PT depois daquilo que chamam de “golpe” (para entender porque usamos “golpe” entre aspas e não defendemos o PT, ver textos anteriores, como: http://politicapqp.blogspot.com.br/2016/09/fora-austeridade-nenhum-direito-menos.html). A derrota nas eleições municipais consolidou a perda de espaço do partido, resultante da política austericida de “ajuste” contra os trabalhadores, que afastou a sua base eleitoral da última década. Ao mesmo tempo que esse eleitorado se distanciou, do lado oposto foi organizada uma forte oposição antipetista por meio do massacre midiático e judicial dos últimos dois anos, que teve como ponto mais alto (ou baixo) a remoção de Dilma da presidência.
Derivando ainda do balanço do primeiro turno, apresentamos como anexo deste texto algumas reflexões correlatas sobre os seguintes pontos: 1º) o tamanho numérico da derrota eleitoral petista, 2º) a questão do eleitorado “pobre de direita”, 3º) o fato de que, a rigor, não existe “esquerda” e “direita” e sim classes sociais, e 4º) os limites históricos do reformismo; para contemplar quem tiver a preocupação de ir além do tema principal, mas colocadas em separado e ao final, para não atrapalhar os leitores que querem ir direto ao ponto.

Uma luz no fim do túnel...
Se o resultado das eleições municipais refletisse apenas a “despetização” do Estado, essa questão não teria o menor interesse. Afinal, de qualquer forma, os burocratas do PT estão com a sua vida resolvida, ao contrário da classe trabalhadora. O problema é que essa despetização vem acompanhada de uma ofensiva reacionária contra tudo aquilo que é identificado como “esquerda” (o anexo 3 explica porque também usamos “esquerda” entre aspas): sindicatos, greves, movimentos sociais, ocupações, feminismo, cotas para negros, defesa da população LGBT, etc. Tudo isso foi embalado num mesmo pacote, como sendo “coisa do PT”, que portanto deve ir para o lixo. A despetização do Estado se torna dessa forma um problema para os trabalhadores, mas não porque significa que devêssemos defender o PT, e sim porque temos que tirar lições de como esse partido foi defenestrado para repensar a construção de novas organizações da nossa classe.
Essa manobra oportunista das forças reacionárias de identificar os movimentos sociais com o PT para desacreditá-los todos em bloco foi facilitada pelo papel do próprio PT como direção dos movimentos nas últimas décadas, ao transformá-los em aparatos para sustentação dos seus dirigentes, descolados ou até opostos às lutas (como no caso dos sindicatos da CUT, principais organizações da classe no Brasil, ultraburocratizados e pelegos). O maior crime do PT, portanto, foi ter desacreditado o conjunto das lutas sociais (e seus organismos como instrumentos de ação coletiva para resolução dos problemas da nossa classe), de modo que as lutas agora precisarão ser retomadas num contexto muito mais difícil, em que a classe patronal exige o aprofundamento do ajustes contra os trabalhadores.
Nesse contexto difícil, surge a disputa do 2º turno da eleição municipal no Rio de Janeiro, com Marcelo Freixo do PSOL aparecendo como uma espécie de luz no fim do túnel para esses setores de “esquerda” que se assustaram com o tamanho da catástrofe do PT. Em massa, as organizações socialistas e pessoas preocupadas com o “golpe” e com o que está por trás dele declaram seu apoio mais ou menos crítico ao candidato do PSOL, contra um oponente da Igreja Universal. O principal argumento em favor dessa campanha é a necessidade de enfrentar a ameaça reacionária crescente no país. Em nome dessa necessidade, boa parte das organizações socialistas relativiza o critério do recorte de classe e de um programa efetivamente socialista, ausentes na campanha do PSOL, para fazer unidade em termos eleitorais com um setor “democrático” e “progressista” contra o reacionarismo.

Os argumentos em defesa da candidatura Freixo
Os setores socialistas que estão aderindo à campanha de Freixo (mais conhecido fora do Rio de Janeiro como o alter-ego do personagem Fraga do filme Tropa de Elite 2) muitas vezes reconhecem os vários problemas dessa campanha de um ponto de vista socialista, tais como: o PSOL não tem um programa de ruptura com o capitalismo (que de resto não é possível em escala municipal); não discute temas nacionais e sociais gerais (rebaixando-se à despolitização típica das pautas municipais); tem um histórico de alianças com partidos empresariais de aluguel; já recebeu doações empresariais para suas campanhas; admite candidatos oportunistas do tipo Erundina (ou seja, faz quase qualquer coisa para obter mais votos e mandatos); em sua campanha não faz a denúncia da democracia burguesa (e portanto reforça a ilusão de que se pode mudar fundamentalmente a realidade por meio do voto, em detrimento da necessidade de organização para a luta); etc. Mesmo reconhecendo tudo isso, as organizações socialistas entendem que o voto crítico se justifica em função de uma conjuntura excepcional.
Segundo essa leitura, na atual conjuntura, de certa forma, o 2º turno no Rio de Janeiro se tornou uma disputa nacional entre as forças reacionárias que querem aproveitar a derrocada do PT para facilitar o ataque aos trabalhadores, de um lado, e as forças que, de outro lado, mesmo por fora do PT, querem encontrar uma alternativa para enfrentar esses ataques. A importância simbólica dessa disputa teria portanto tido o efeito de unificar o conjunto das forças que atuam em nome da classe trabalhadora, nos termos que definimos por exemplo em nosso texto sobre o 1º turno (ver: http://politicapqp.blogspot.com.br/2016/09/a-esquerda-e-as-eleicoes-sucumbindo.html). A disputa eleitoral carioca teria se tornado um fato central da luta de classes nacional, motivando uma unificação das forças socialistas e democráticas (informal, improvisada e precária, mas real), justificando assim a relativização dos critérios de classe e programa.
Além disso, não é preciso nenhum esforço para mostrar o quão nefasta é a candidatura do bispo Crivella, apoiado por todo o arco das forças reacionárias da cidade, desde o crime organizado, milícias, partidos saudosistas da ditadura, igrejas, cartolas do futebol, etc. Derrotar essas forças reacionárias no terreno eleitoral se impõe como uma espécie de questão de honra. Um voto em Freixo, mesmo com todos os limites apontados em termos de um critério socialista, é também um voto contra Crivella e o reacionarismo.

...ou trem na direção contrária
Entretanto, mesmo colocados todos esses elementos, e nos solidarizando com esse sentimento da necessidade de derrotar o reacionarismo, somos forçados a colocar em discussão algumas questões mais profundas. O fato de que o principal terreno de disputa tenha se transferido para a campanha eleitoral não pode ser tomado senão como uma medida do tamanho da derrota das organizações socialistas e da perspectiva dos trabalhadores, independentemente do resultado das eleições. O ponto de partida dessa discussão tem que ser o reconhecimento da atual fragilidade da classe trabalhadora no que se refere aos enfrentamentos da luta de classes real. O fato de que os sindicatos estejam ocupados por pelegos e burocratas da CUT (e Farsa Sindical, CTB, UGT, etc.) e portanto incapazes de desencadear uma greve geral contra os ajustes (e que as forças de oposição no movimento sindical sejam incapazes de incidir sobre a base das categorias para forçar a greve geral) tem que ser tomado como índice do quanto estamos recuados.
Isso para não falar no restante dos movimentos sociais, de luta pela terra, por moradia, feministas, anti-racistas, indígenas, estudantis, etc. Mesmo somando-se todos esses movimentos, mais as oposições sindicais combativas, partidos e organizações socialistas e anarquistas, ainda assim estamos falando de uma força minoritária na sociedade diante do governo federal, Congresso, Judiciário, entidades patronais, mídias, igrejas, “think tanks” reacionários, etc. A classe patronal e seus capangas estão unificados e dispostos a passar o rolo compressor. É preciso partir desse reconhecimento para dimensionar corretamente o tamanho da tarefa que têm pela frente as forças socialistas, em termos de esforço para recontruir a organização da classe e sua consciência. Tendo dimensionado isso, podemos colocar as eleições municipais no seu devido lugar.
Mesmo que Freixo hipoteticamente vença a disputa eleitoral, isso não significa que as forças reacionárias que se unificaram contra ele estarão derrotadas no terreno que realmente conta, no dia a dia da reprodução social. O crime organizado, as milícias, as igrejas, os cartolas do futebol, etc., todos eles continuarão existindo e impondo seu poder militar, econômico, social e cultural sobre a cidade do Rio (como fazem no restante do país), independentemente de quem seja o prefeito eleito.
As eleições existem justamente para produzir a ilusão de que é possível travar algum enfrentamento sem lutas sociais reais, e com isso conseguem exatamente o efeito de esvaziar as lutas. É preciso refletir sobre o significado da posição de se defender a vitória de Freixo em nome de uma luta simbólica, mesmo que nacionalizada, contra o reacionarismo. O fato de que essa disputa seja simbólica precisa ser entendido no sentido de que o simbólico é tão somente o oposto semântico daquilo que é efetivamente material, concreto, real. No terreno da disputa material, concreta, real, no processo de reprodução social, nos locais de trabalho, estudo e moradia, no microcosmo de cada atividade social, as forças reacionárias ainda terão que ser enfrentadas.
E mesmo uma hipotética administração do PSOL poderá fazer muito pouco ou nada em relação a isso, pois estará muito ocupada gerindo a máquina da prefeitura carioca. A Carta aos Cariocas (“Compromisso com o Rio” lançado pela campanha de Freixo nesta segunda-feira dia 24/10, e disponível em http://www.marcelofreixo.com.br/compromisso) não deveria deixar dúvidas a respeito dos rumos de um hipotético governo Freixo. O enfrentamento real seguirá tendo que ser feita, praticamente no mesmo patamar, recomeçando do zero, quase como se a disputa eleitoral na prática não tivesse existido.
Não pode deixar de ser discutido o fato de que os militantes do PSOL ou o próprio Freixo não possam sequer subir os morros cariocas, pois o poder efetivo nesses locais é exercido pelo crime organizado (e quando falamos de crime organizado, as milícias e as forças policiais, apodrecidas até a medula pela corrupção são apenas mais uma das facções em disputa). Esse problema não poderá ser enfrentado sem um movimento, necessariamente nacional, pela descriminalização das drogas, políticas efetivas de redução de danos, reforma do sistema penal, desmilitarização das polícias, etc. A campanha eleitoral não está batendo de frente com essa questão, mas contornando-a. Se as questões sociais mais sérias não são enfrentadas em suas causas mais profundas, por mais complexas e demoradas que sejam as soluções, de que serve todo o esforço da campanha? Se a campanha (e a hipotética gestão da prefeitura, baseada no compromisso citado) não servem para acumular as forças necessárias para esse enfrentamento mais profundo, de que adianta fazer a campanha?

Revolução ou reforma
A questão espinhosa que se coloca então, no fundo dessa polêmica, é a da estratégia de longo prazo mais adequada para enfrentar as mazelas da sociedade capitalista. Ou se tem a posição de que tudo o que se pode fazer é lutar contra essas mazelas por meio das opções pré-definidas e delimitadas da democracia burguesa (políticas públicas a serem aplicadas por gestores que terão que ser eleitos), ou se tem a posição de que a alternativa ao capitalismo precisa ser construída desde o princípio em oposição ao Estado e suas instituições, enraizando-se na base da classe trabalhadora e em todas as suas esferas de atividade.
A posição de que uma revolução socialista não está colocada na agenda histórica para o momento imediato, e de que tudo o que se pode fazer é lutar defensivamente contra o aprofundamento da barbárie (crime organizado, feminicídio, LGBTfobia, racismo, retrocessos nos salários e direitos trabalhistas, etc.), tendo como instrumento algumas políticas públicas limitadas; é uma posição perfeitamente legítima. Dessa posição alguns deduzem que a única alternativa viável de ação é a obtenção de mandatos eletivos para lutar por políticas públicas mais favoráveis. Essa dedução reformista, embora não seja a única possível (também é possivel lutar por políticas públicas por meio da pressão externa de movimentos sociais organizados, que podem ser anticapitalistas ou não, sem a obtenção de cargos públicos, desde que haja movimentos organizados para isso, o que constitui na verdade o centro da questão), é bastante coerente com a escolha se engajar na campanha de Freixo.
Mais tortuoso é o raciocínio daqueles que querem se engajar na campanha de Freixo, mas ao mesmo tempo seguem dizendo que perseguem um projeto socialista. Não é coerente de forma alguma dizer que a alternativa da luta eleitoral (mesmo que seja para eleger Freixo neste momento de importância simbólica excepcional) é somente algum tipo de “desvio temporário” em relação ao “verdadeiro objetivo”, que supostamente seguiria sendo o de organizar a revolução. As organizações socialistas que adotam esse discurso estão sendo desonestas, pois a estratégia reformista e a revolucionária são excludentes. Uma vez que se opta pelo caminho de disputar algum espaço no interior do Estado, não é mais possível voltar atrás.
O Estado tem essa lógica, ele existe exatamente para isso, para transferir e imobilizar a luta de classes para o terreno superestrutural da política, invisibillizar a divisão da sociedade em classes e ocultar as suas lutas e mobilizações cotidianas. O politicismo e o superstruturalismo inerente a ele são implacáveis ao tragar para o interior do Estado as mais honestas e comprometidas intenções de transformação. Depois de obter um primeiro mandato, é preciso conseguir a reeleição, e depois é preciso conseguir uma bancada maior, e depois cargos de nível estadual, depois federal, e assim sucessivamente. A disputa eleitoral absorve inevitavelmente e definitivamente os que se dedicam a ela. Não se trata portanto de uma questão moral, de se ter militantes mais ou menos honestos como candidatos, mas de um problema material, estrutural, que diz respeito à lógica profunda da sociedade de classes, do Estado e do capital.

A tentação da superestrutura
Muitas organizações socialistas dizem que “em determinadas condições” a disputa de eleições é necessária para ajudar a avançar a luta. O problema é que não há critério algum para determinar quais são essas “condições” que autorizam a disputa eleitoral, pois o fato é que essas organizações acabam se envolvendo em praticamente todas: ou lançam candidatos ou defendem voto crítico e de alguma forma fazem campanha. Em absolutamente todas as eleições se encontram sofismas para legitimar a posição de que é necessário fazer alguma campanha. Então, efetivamente, não se trata de que “determinadas condições” autorizam disputar eleições como é repetidamente alegado, mas de que objetivamente as organizações se envolvem em todas. Há um inegável desvio eleitoralista profundamente enraizado nas organizações socialistas, que teimam em encontrar pretextos para sempre se voltar para a discussão da disputa no interior do Estado, em absolutamente todas as eleições.
A lógica da disputa de espaços no interior do Estado faz com que as organizações que a adotam passem a girar indefinidamente em torno disso. O vínculo com a luta de classes real, no solo da reprodução social, é cortado irremediavelmente. É espantoso, quase inacreditável, que seja preciso repetir essa advertência ainda hoje, exatamente no momento em que estamos diante do estrepitoso colapso do PT, que acaba de protagonizar epicamente mais um dos muitos fiascos do reformismo em sua caminhada mundial (ver anexo 4 sobre os limites históricos do reformismo). No momento em que o PT acaba de encenar pela enésima vez a tragédia do reformismo, completando o ciclo de uma organização que surgiu nas lutas, para progressivamente se afastar delas, enveredar pela gestão do Estado do capital, passar para o outro lado da trincheira de classe, tornar-se um instrumento do capital contra os trabalhadores e terminar sendo ignominiosamente descartada; a única opção que resta para as organizações socialistas é... eleger um candidato? Começar o mesmo ciclo de novo?
A alternativa para combater o reacionarismo não pode jamais ser a de repetir a estratégia do PT. O que fez diferença para determinar que o PT fosse derrubado, no final das contas, foi a falta de apoio real na classe trabalhadora. De que adianta o PT controlar a CUT, com suas mais de 3.000 entidades filiadas, que nominalmente representam 23 milhões de trabalhadores, se em cada local de trabalho esses milhões de trabalhadores não reconhecem os dirigentes petistas, nem sequer sindicalmente, muito menos politicamente e ideologicamente no sentido mais geral, não se movem pelas ideias que esses dirigentes representam (na verdade, os cutistas não defendem ideias, e sim o seu próprio mandato), não se sentem representados por elas, etc. Ideologicamente, politicamente, o PT não dirige os trabalhadores, e sim dirige administrativamente as entidades sindicais, como cascas vazias (o mesmo vale para os demais movimentos sociais, consideradas as suas especificidades e formas de funcionamento). As organizações socialistas vão pelo mesmo caminho, quando desprezam a tarefa de organizar os trabalhadores a partir da base, a partir dos locais de trabalho, no caso do exemplo sindical, para ter alguma força no enfrentamento ao capital.
Não deixa de ser oportunista o comportamento de praticamente todas as organizações socialistas que, subitamente, nesta conjuntura excepcional, “descobrem” que é preciso apoiar a campanha de Freixo, porque ela supostamente representa uma batalha “fundamental” da luta de classes. É uma forma de desonestidade dessas organizações, já que nunca estiveram construindo o PSOL, e de repente, percebem que é preciso apoiar uma campanha deste partido. Falta seriedade e ao mesmo tempo humildade a essas organizações que se acham no direito de emitir posições (“voto crítico no Freixo!”, ou “somos todos fulano!”) de última hora, num zigue-zague frenético, correndo atrás do próprio rabo, reagindo a cada fato ou factóide. Tentam alcançar alguma visibilidade superestrutural, sem ter a preocupação de que essas posições emitidas estejam enraizadas em algum setor da classe trabalhadora. Mais grave do que isso, não conseguem desenvolver uma estratégia própria, independente das pautas, calendários e armadilhas impostas pela classe capitalista e seu Estado.

Não existem atalhos
Para as organizações socialistas que não são apenas eleitorais e se mantém atuando na luta de classes real, a única opção diante do reacionarismo não pode ser a de engajar-se oportunisticamente numa disputa eleitoral, como infelizmente fazem em absolutamente todos os casos. Por mais que a revolução socialista não esteja de fato na agenda histórica e no momento imediato, e que seja preciso sim lutar defensivamente contra o aprofundamento da barbárie em todas as suas formas, inclusive no nível de políticas públicas, mesmo assim, disso não decorre que seja preciso se subordinar à lógica da disputa eleitoral. É possível sim reconhecer que as posições reacionárias estão na ofensiva, a classe trabalhadora está no momento realmente imobilizada, as organizações socialistas estão de fato extremamente marginalizadas e minoritárias; e mesmo assim, reconhecendo tudo isso, é possível seguir apostando na organização e na luta independente do Estado e oposta a ele como alternativas.
Não só é possível como é a única escolha viável. É a única forma de construir uma base real para uma futura transição socialista. A questão na verdade não é se a revolução é viável hoje ou não, mas se o que fazemos hoje ajuda a encaminhar a revolução em algum dia do futuro, por mais remoto que seja. O que fazemos hoje não pode reforçar as crenças reformistas no Estado, no direito e nas eleições como instâncias de resolução dos problemas da classe. Por mais que as perspectivas de luta estejam extremamente marginalizadas, não há outra forma de constituir a classe trabalhadora como sujeito revolucionário, classe em si e para si, em luta contra o sistema do capital em todas as suas dimensões, que não seja insistindo na organização de base para a luta.
Ou se luta desde já para que a classe trabalhadora acredite em saídas coletivas para os problemas, desde os mais imediatos (calçamento das ruas, abrigos para mulheres vítimas de violência, construção de escolas, eleição de CIPAs combativas, greves, etc.) até as questões gerais, e se organize para isso de forma independente do Estado e seus partidos e instituições, a partir de cada local de trabalho, moradia ou estudo, cada mínima atividade social; ou não será possível em nenhum momento futuro a luta pela revolução. Não se trata aqui de fazer uma campanha ofensiva pelo voto nulo, como se fosse importante ou prioritário retirar o maior número de votos de pessoas “iludidas” com Freixo, pois isso não faria a menor diferença, à luz do que viemos discutindo. O que estamos buscando fazer é alertar para o fato de que não existe atalho para a revolução: ou se busca enraizamento real na base da classe trabalhadora e em suas lutas como alicerces para uma transição, ou as disputas eletorais e superestruturais, que parecem tão urgentes, em longo prazo não vão construir nada além de novos castelos de cartas.

Anexos

1. O tamanho da derrota do PT
O PT perdeu 61% dos votos que recebeu em relação a 2012. Em número de cidades governadas, caiu de 635 para no máximo 263 (caso vença nas 7 cidades em que ainda vai para 2º turno). Em número de habitantes governados, caiu de 37,9 milhões para 6,1 milhões. O resultado desse massacre do PT foi um crescimento importante do PSDB, que aumentou em 25% a sua votação (dados coletados por Valter Pomar em https://espacoacademico.wordpress.com/2016/10/12/a-esquerda-frente-a-derrota/). Mas quem cresceu mesmo foi o candidato “brancos, nulos e abstenções” (ver https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/10/03/O-que-votos-brancos-e-nulos-as-absten%C3%A7%C3%B5es-e-a-queda-da-participa%C3%A7%C3%A3o-dos-jovens-t%C3%AAm-a-revelar).
Em muitas cidades, o não voto venceu, como em São Paulo (3,095 milhões de votos contra 3,085 de João Dólar, eleito no 1º turno) e Rio (em que teve mais votos do que a soma dos dois candidatos que vão ao 2º turno). Em 22 capitais o não voto estaria em 1º ou 2º lugar. Considerando-se que em São Paulo o milionário João Dólar se elegeu com o discurso de “não político” e “gestor”, um embuste bastante banal, a derrota dos “políticos” tradicionais foi ainda maior. O aumento do número de não votos não pode ser creditado apenas às ausências de domicílio eleitoral, erro no momento do voto, discrepâncias no cadastro do TRE, etc. Afinal, esse contingente de não votos “acidentais” e resiual se mantém constante eleição após eleição. O que temos em 2016 é um aumento do número de abstenções, brancos e nulos por motivo de desencanto.
Trata-se de uma migração do voto petista para o desalento eleitoral. E isso não necessariamente quer dizer que há um avanço na combatividade desse eleitorado, já que boa parte dos não votantes não está realmente procurando opções para se organizar e mudar a realidade. Ao contrário, está achando que não é mais possível mudá-la, nem por meio do voto, como pensava antes, nem muito menos por qualquer outro meio (ação direta, greve, manifestação, abaixo-assinado, associativismo, etc.). Resumindo, parte dos eleitores do PT nos últimos anos migrou para o PSDB (e parte destes como “voto castigo” ao PT, não por crença no “programa” do PSDB) e a maior parte migrou para o não voto.

2. A questão do “pobre de direita”
Na ressaca da derrota, muitos dos apoiadores do PT identificaram o fenômeno da migração do eleitorado que havia votado em Haddad em 2012 para a candidatura de João Dólar este ano. Em especial, os votos da periferia, que “se esperava” que seguiriam sendo dados ao PT. Cunhou-se então a expressão “pobre de direita” para dar nome a essa migração, como se fosse um caso particular e extraordinário, uma espécie de aberração exclusivamente brasileira e paulistana. A concepção que está por trás dessa expressão é de que o “pobre” deveria saber que o seu voto tem que ser necessariamente dado ao PT, como se esse eleitorado devesse ter algum tipo de fidelidade ao partido. Os ricos e a classe média votam no PSDB, e os “pobres” votam no PT, é o que seria a narrativa “correta” e esperada das eleições, e o fato de neste ano os “pobres” não terem se comportado como esperado foi motivo de espanto e decepção.
O que esta concepção está dizendo é que quando os “pobres” deixam de votar no PT e parte deles vota no PSDB (e uma parte na verdade maior vai para os brancos, nulos e abstenções), o erro é dos eleitores e não do próprio PT. São os eleitores que “erraram” ao não saber reconhecer qual é a sua “verdadeira opção”, e não o partido. Tal concepção expressa dois problemas sérios. Primeiro, uma visão paternalista do eleitorado, em que os “pobres” não pensam por si mesmos, não fazem suas escolhas com base nas suas referências, e têm que ser guiados por alguém para decidir. Essa visão não quer reconhecer que os “pobres” rejeitaram em massa o partido, porque não se viram contemplados pela gestão petista. As maquiagens de Haddad na prefeitura (das quais as ciclovias e a redução da velocidade de trânsito nas avenidas se tornaram o maior símbolo), que chegaram a ser festejadas por alguns mais alucinados como atestado da “melhor gestão da história da prefeitura”, não significaram absolutamente nada para a massa desse eleitorado pobre, que continua sofrendo com o transporte público caro, demorado e lotado, o trânsito parado, poluição, etc., para além dos problemas mais gerais do desemprego, suacateamento dos serviços públicos, etc.
Então, o eleitorado “pobre” aplicou um massivo voto castigo ao PT, que os petistas simplesmente não querem reconhecer como merecido, e para isso inventam a ficção do “pobre de direita” para se autodesculpar. Que esse voto castigo tenha sido dado em parte com alguma expectativa de que João Dólar fará um governo melhor, expectativa essa que será também amargamente frustrada, não vem ao caso. Pois isso não pode servir para ocultar o fato de que foi o próprio PT que construiu esse abismo em relação ao seu eleitorado antes cativo. Tanto no nível federal (em que os “pobres” não se entusiasmaram em favor do impeachment, mas também não se moveram de forma alguma para defender o mandato de Dilma) quanto no municipal ou mesmo parlamentar, o PT fez questão de seguir governando para a classe patronal, os bancos, empreiteiras, agronegócio, etc., com quem buscou fazer acordos até o último minuto para se sustentar, com a promessa de seguir aprofundando o ajuste. Foi o PT que virou as costas para a classe de quem esperava votos.
O segundo problema dessa concepção que explica a derrota eleitoral por meio do misterioso surgimento do “pobre de direita” é que ela esquece a questão elementar de que o pobre sempre é “de direita”. Em outras palavras, como disseram Marx e Engels, “a ideologia dominante numa determinada sociedade é sempre a ideologia da classe dominante”. Seria uma aberração se os “pobres” não fossem “de direita”. Como poderia ser de outra forma? Afinal de contas, quem está organizando os “pobres”? Com certeza o PT não está (pois não pode permitir que suas reivindicações autênticas se manifestem, ou pior ainda, que os “pobres” se auto-organizem como sujeitos independentes para lutar por elas, e se voltem contra o projeto do partido de gestão para o capital). Como o PT poderia querer ter o voto dos “pobres”?
Na verdade, quem manda nos bairros “pobres” são as igrejas evangélicas e o crime organizado. Quem orienta ideologicamente essa população são as corporações da mídia tradicional, com sua narrativa meritocrática, brutal e irracional da vida social. Como esse eleitorado poderia ter outro tipo de pensamento que não “de direita”? Como poderia ter outros parâmetros e referências para avaliar as opções eleitorais que não os temas da corrupção, eficiência da gestão, etc.? Os petistas que estão decepcionados com os “pobres” por terem votado “errado” querem esconder com essa autocomiseração patética a omissão de quem não fez a lição de casa e esperava que os votos caíssem do céu.
Além do fato da gestão tecnocrática de Haddad não ter feito nenhuma mudança fundamental (não enfrentou as máfias das empresas de ônibus, não aumentou o IPTU da burguesia nacional concentrada em São Paulo, etc.), o PT não fez o trabalho de base, não está presente no dia a dia dos bairros pobres, não está organizando essa população, não está disputando a sua consciência contra a ideologia burguesa, porque não pode se engajar nas batalhas que essa população enfrenta, porque isso exigiria bater de frente com os interesses do capital, dos quais o PT se tornou defensor. Então o PT não fez e não vai fazer a sua lição de casa, e isso não é motivo de surpresa nenhuma. O que é realmente grave e deveria estar sendo discutido ao invés dessa ladainha do “pobre de direita” é o fato, este sim muito grave, que as organizações da “esquerda” também não façam essa lição de casa, como dissemos na parte principal do texto.

3. Não existe “esquerda” nem “direita”
O uso das expressões “esquerda” e “direita” no debate político serve mais para confundir do que para esclarecer, porque deixa em segundo plano a distinção fundamental, que está baseada na divisão da sociedade em classes sociais. “Esquerda” e “direita” são denominações abstratas usadas para rotular pacotes de ideias e programas políticos ao gosto do freguês (igualdade social, direitos humanos, cotas, intervencionismo estatal, etc.), e ainda por cima de maneira relativística. Um determinado partido está “à direita” do outro, que por sua vez está “à direita” de um terceiro, enquanto que mais um outro está “à esquerda” de todos eles, etc. Tudo é relativo e nada tem posição fixa, num deslizamento lateral infinito e indeterminado. Essa escala de gradação geométrica não diz nada sobre a base social real, e mais especificamente, o projeto de sociedade que cada partido defende.
Rigorosamente falando, só existem duas posições políticas possíveis, a defesa da sociedade capitalista existente e a sua superação por uma revolução socialista, em direção ao comunismo. É em relação a esse critério fundamental que os partidos devem ser classificados. Dessa forma, só existem dois tipos de organizações políticas: os partidos empresariais, que defendem os interesses da classe capitalista, e as organizações da classe trabalhadora. No primeiro grupo temos tanto os partidos chamados “de esquerda” como PT, PCdoB, PDT, PSB, PV, REDE, como os da “direita”: PSDB, PMDB, DEM, PTB, PR, PP, PSC. Todos esses são partidos empresariais, partidos da classe capitalista, partidos que defendem a continuidade do capitalismo.
Em relação às organizações da classe trabalhadora, temos somente quatro organizações eleitoralmente legalizadas: PSOL, PSTU, PCB e PCO (e ainda com ressalvas), e uma miríade de pequenas organizações socialistas e anarquistas que atuam na luta de classes sem se apresentar com candidaturas nas eleições (por mais que algumas pateticamente desejem ou embarquem nas candidaturas alheias).
No grupo das organizações da classe trabalhadora eleitoralmente legalizadas, merecem ressalvas o PSOL e o PCO, por motivos diferentes. O PSOL se compõe de várias tendências agrupadas um tanto artificialmente, sendo que uma parte delas são organizações socialistas autênticas, que estão baseadas na classe trabalhadora e defendem propostas efetivamente socialistas. Mas a direção do PSOL está firmemente controlada por um setor eleitoreiro, que dilui o programa do partido e abandona qualquer referência de transformação social para se apresentar como melhor gestor da sociedade capitalista existente e assim obter votos entre as camadas médias da população (não deixa de ser portanto uma contradição que algumas organizações socialistas atuem por dentro do PSOL). O PCO tem uma característica fortemente sectária, de não construir ações conjuntas com as demais organizações da classe, realizar ataques verbais violentos a todas elas, e funcionar na prática como ajudante do PT no movimento sindical.
Dessa forma, restam PSTU e PCB como organizações mais autenticamente baseadas na classe trabalhadora, mas cada um também com uma série de outros problemas (ver por exemplo: http://politicapqp.blogspot.com.br/2016/07/a-queda-do-muro-de-berlim-da-esquerda.html). De modo geral, o que unifica praticamente todas as organizações socialistas e baseadas na classe trabalhadora é essa fixação superestrutural na disputa de eleições, tanto para o Estado como, em menor escala, para sindicatos e entidades, como se isso substituísse a disputa real, pela organização da classe e sua consciência, em escala microscópica e local. Quem optar pelo caminho, mais longo e mais difícil, que é o da organização dos trabalgadores a partir da sua base, vai se tornar a referência para a classe trabalhadora nesse novo ciclo histórico pós-PT. Quem insistir nessas velhas práticas superestruturais vai desaparecer com o próprio PT.

4. Limites históricos do reformismo
O reformismo no início do século XX mantinha a promessa (irrealizável) de chegar ao socialismo por meio de melhoras graduais no capitalismo. À medida em que chegávamos ao fim do século XX, abandona-se qualquer referência ao socialismo e as forças reformistas se conformam com a mera gestão do capitalismo, com o pretexto de humanizá-lo (o que também é impossível). Por fim, na virada do século, todas as siglas do reformismo estão engajadas em contra-reformas, ajustes, medidas de “austeridade” e desmonte do estado de bem estar social, qualquer que seja o grau que ele tenha alcançado em cada país (no Brasil nunca chegou a existir de fato), administrando melancolicamente a barbárie capitalista.
No capítulo brasileiro dessa triste novela, a degeneração do PT que mencionamos de passagem no texto, surgindo como uma organização baseada na classe trabalhadora para se transformar num partido empresarial e gestor dos interesses do capital, não pode ser interpretada apenas como um caso de traição pessoal de seus dirigentes (é isso também, com todos os detalhes sórdidos da corrupção, locupletação com os fundos de pensão, etc., mas não só isso), pois o elemento fundamental, estrutural, é a inviabilidade da opção reformista de buscar melhorias duradouras no interior do capitalismo, na atual conjuntura histórica. O capitalismo vive seu momento de crise esturural (conforme aponta Mészáros), em que não são mais possíveis reformas ao estilo do “welfare state” das décadas de 1950 e 60. Todos os partidos que chegam à gestão do Estado são forçados a adotar medidas de “austeridade” e contra-reformas neoliberais.
Na impossibilidade de mudanças duradouras, tudo o que os governos sociais-liberais ou reformistas-de-contra-reformas podem fazer é tentar explorar momentos conjunturalmente favoráveis no mercado mundial, como os progressistas da América Latina fizeram na década passada, para recapitalizar o Estado e adquirir a margem para algumas medidas redistributivas e assistenciais, completadas com o acesso ao consumo. Foram essas as medidas que sustentaram o PT no governo federal por alguns mandatos, até que a cojuntura mundial mudou, a margem de gestão se esgotou e a burguesia veio exigir raivosamente o fim da farra “esquerdista”.
Não foi apenas o PT no Brasil, mas todas as organizações históricas da “esquerda” eleitoral institucional (trabalhismo inglês, SPD alemão, PS francês, PSOE espanhol, etc.) se converteram em sociais-liberais na década de 1990, decepcionando seus eleitores em todos os casos em que chegaram ao governo. Os “progressistas” latino americanos (Lula, Chávez, Kirchner, Correa, Morales, etc.) seguiram na mesma toada na década de 2000. E agora, mais recentemente, a nova “esquerda radical” protagonizou o mesmo espetáculo patético, com o Syriza, na Grécia. Todos, ao chegar ao governo, precisam se comprometer com o pagamento de dívidas públicas que abocanham fatias imensas do orçamento, reduzindo suas margens de gestão, forçando-os a realizar cortes cada vez mais profundos nas políticas sociais, aposentadorias, privatizações, etc. O Estado funciona como órgão centralizador e distribuidor da mais-valia gerada na sociedade, depauperando os fundos públicos que sustentavam raquíticas políticas públicas, e desviando-os em direção aos bancos e especuladores.
Dessa forma, as opções se tornam cada vez mais estreitas. Ou se enfrenta o capital com a força organizada da classe trabalhadora, com medidas de ruptura (não pagamento da dívida pública, estatização do sistema financeiro, taxação de grandes fortunas, controle de capitais, limitação das remessas de lucros, investimento maciço em educação, saúde, moradia, transporte, saneamento, etc., direitos trabalhistas para todos, fim da terceirização e precarização, salário mínimo vital, etc.), ou não vale à pena se apresentar em eleições.