10.12.16

Sobre a descriminalização do aborto


No dia 29/11 uma decisão do Supremo Tribunal Federal absolveu médicos por terem realizado um aborto antes do 3º mês de gestação. Como se trata de um julgamento da mais alta corte do país, com efeito vinculante sobre instâncias inferiores, na prática descriminalizou-se o aborto no país antes do 3º mês. Note-se que a decisão foi tomada em favor de uma ação que visava inocentar os médicos e funcionários de uma clínica, não como um reconhecimento do direito da mulher. Dessa forma, a decisão está longe de garantir o atendimento adequado para que o procedimento seja feito sem risco no sistema de saúde público, ele apenas permite que os envolvidos sejam inocentados em ações judiciais futuras. Ainda será preciso uma luta imensa para que esse direito seja plenamente garantido.
Mesmo porque, imediatamente depois do julgamento, os setores reacionários que são maioria no Congresso se articularam para iniciar um movimento visando modificar a legislação, de modo a neutralizar a decisão do STF. O debate então se espalhou por toda a sociedade, polarizando o país entre os contrários e favoráveis à decisão, e aqui apresentamos uma contribuição. Em meio a tantos retrocessos e ataques contra os direitos e condições de vida do conjunto da população (como a PEC 55 votada em primeiro turno no Senado na mesma semana e o anúncio da Reforma da Previdência), essa rara decisão sensata do STF precisa ser defendida da pressão reacionária, pelos seguintes motivos:

1. Da forma como está estabelecida, a proibição do aborto é desigual e injusta para com metade da população, a metade feminina. A mulher está proibida de abortar, mas o homem não está obrigado a se responsabilizar pela criança que gerou. Independentemente da continuidade ou não do relacionamento que deu origem à gravidez, a responsabilidade pela criança gestada tinha que ser dos dois envolvidos. Essa responsabilidade não pode recair apenas sobre a mulher, pelo simples fato biológico de que ela carregará as consequências da relação no próprio corpo na forma de uma gestação. A gestação não existira sem a participação dos dois, portanto os dois tinham que ser igualmente responáveis pelas consequências. Mas isso não acontece, e a sociedade hipocritamente absolve os homens e condena as mulheres obrigando-as a arcar sozinhas com a gravidez.
O abandono masculino está plenamente legalizado e acontece aos milhões (5,5 milhões de crianças não possuem sequer o nome do pai na certidão de nascimento, conforme http://exame.abril.com.br/brasil/brasil-tem-5-5-milhoes-de-criancas-sem-pai-no-registro/), de modo que esses milhões de bebês se tornaram um encargo exclusivo das mães. Além disso, o simples ato do registro não obriga os pais a dividir cuidado, sustento e preocupação com os filhos, como é socialmente exigido das mães. Para além dos milhões de homens que nem sequer registram os filhos, há outros tantos ou muitos milhões mais que se omitem e se ausentam completamente. Ressalte-se ainda que o abandono masculino é muito mais cruel do que o aborto, porque atinge um ser humano já vivo, capaz de sentir e pensar, que sofrerá as consequências pelo resto da vida, enquanto que o aborto antes do 3º mês atinge fetos ainda em formação, que nem sequer sentem nem pensam.
O mero pagamento de pensão alimentícia (quando acontece regularmente) ou visitas periódicas está muito aquém do necessário para compensar o volume de tempo e esforço que é exigido da mãe. Por quê continua sendo considerado “natural” que a mãe tenha toda a responsabilidade com os filhos, ou não só isso, que seja carinhosa, amorosa, faça sacrifícios pessoais, financeiros, de tempo, etc., em favor dos filhos, de uma forma que não é exigido dos pais? Por quê o tratamento é assim desigual? Só há duas formas de se reparar essa injustiça: ou se obriga os pais a ter igual responsabilidade na criação dos filhos, ou se autoriza o aborto para as mulheres, dando a elas o direito de também se desresponsabilizar com o resultado de uma relação sexual, como os homens já fazem.
Alguns vão dizer que há pais que são excelentes ou “melhores” que certas mães, mas eles são justamente a exceção que se destaca porque contrasta com a regra geral que é a omissão masculina. Outros vão dizer que nem todas as mães cumprem assim tão fielmente com os “seus deveres”, nem todas são assim tão responsáveis, cuidadosas, amorosas, etc., com seus filhos. Mas isso justamente ilustra o fato de que muitas mulheres e jovens não querem, não estão preparadas e não têm condições de serem mães, e deveria lhes ser permitida a alternativa de interromper a gravidez antes de gerar um filho que não poderão criar, como é permitido aos homens fugir do problema covardemente.

2. Uma segunda injustiça na proibição do aborto está no fato de que mesmo probido ele continua sendo praticado aos milhões, mas com mais riscos para algumas mulheres do que outras. Uma pequena parte das mulheres, as que tem mais recursos financeiros, podem fazer aborto de maneira mais segura e discreta (claro que nunca de forma 100% segura, já que não há como responsabilizar os médicos em clínicas clandestinas, mesmo as mais caras), mas a grande maioria, as mulheres e jovens pobres, são obrigadas a fazê-lo de maneira ainda mais precária, sujeitas a mortes e sequelas, que acontecem aos milhões. Estando proibido ou não, o aborto será feito. A proibição apenas pune as mulheres, principalmente as pobres. A descriminalização criará a base para que se possa exigir legalmente o tratamento adequado para que se possa evitar mortes, sequelas e sofrimentos para milhões de mulheres. Trata-se de um problema de saúde pública, de defesa da vida das mulheres, não de moral.

3. Além de ser injusta, a proibição do aborto é extremamente hipócrita, porque é feita em nome da “defesa da vida”. Antes de pensar na vida dos que ainda não nasceram, não se pensa na vida dos centenas de milhões, ou mesmo bilhões, que já estão nascidos e vivem hoje em meio à miséria, fome, violência, doenças, ignorância, barbárie, catástrofes. E isso num mundo que possui plenas condições para prover uma vida de conforto e realização para todos, mas não o faz porque está estruturado de maneira profundamente injusta. Quem está realmente preocupado com a vida tem que lutar para mudar esse mundo, para melhorar as vidas dos que já estão vivos, antes que possa receber mais vidas.
Toda a histeria em “defesa da vida” deveria estar engajada numa luta real para acabar com as injustiças desse mundo, acabar com a pobreza, com a fome, com as doenças, etc. Para isso, é preciso lutar por mudanças sociais muito profundas e que exigirão esforços enormes. Para não falarmos em uma revolução de fato, que exigiria medidas com as quais nem todos ainda concordam, há uma série de outras mudanças possíveis e necessárias: é preciso acabar com o desemprego (reduzindo a jornada de trabalho sem redução de salário, por exemplo), garantir direitos para todos, acabar com a sonegação de impostos que faz com que os pobres paguem muito mais do que os ricos, acabar com o parasitismo financeiro do sistema da dívida pública que asfixia os países pobres (quase todo o montante das dívidas é ilegal, abusivo), garantir financiamento público para educação, saúde, moradia, transporte, etc., acabar com as consequências da mudança climática e da poluição do ar, das águas, do solo, acúmulo de lixo, etc., que atinge principalmente os países pobres, etc.
Medidas desse tipo exigiriam um engajamento gigantesco. Quem diz que está defendendo a vida tinha que estar lutando pela implantação dessas medidas, participando de partidos políticos, sindicatos, associações profissionais, movimentos sociais, manifestações, etc., e não apenas destilando platitudes morais sobre a “vida” na internet, eivadas de preconceitos e superficialidade. Participar de atividades religiosas nesse caso não conta, já que essas estão voltadas para “salvar a alma” das pessoas, não melhorar sua vida material. Estamos falando aqui de participação política e social real.
Defender a vida significa defender que todos tenham alimentação, moradia, saúde, educação, emprego, lazer, cultura, meio ambiente saudável, etc. Quando tudo isso for atingido no mundo inteiro, aí sim poderemos debater sobre a “defesa da vida” para os que ainda não nasceram. Sem isso, o que se tem hoje, para a imensa maioria da humanidade, é uma sobrevida miserável, e quando a vida de bilhões de pessoas é esse rosário de misérias e sofrimentos que conhecemos nos países pobres, todo discurso em “defesa da vida. é uma grosseira hipocrisia e não merece o menor crédito.
Para além da hipocrisia inerente a esse tipo de “defesa da vida”, ainda mais bizarro é o caso dos dementes que defendem a vida dos fetos, mas ao mesmo tempo dizem que “bandido bom é bandido morto”. São contra a descriminalização do aborto, mas são a favor da pena de morte, numa contradição verdadeiramente patológica. Querem obrigar as pessoas a nascer e viver, mas em condições as mais precárias e brutais, e quando essas pessoas se transformam em crminosos, querem ter o direito de matá-las. Justifica-se assim a violência policial e o extermínio de jovens pobres, pretos e periféticos, simplesmente porque não se quer conceder o direito das mulheres pobres e periféricas decidir se poderão cuidar daquela vida ou não. Querem tirar o poder das mulheres decidir sobre os fetos que carregam, mas ao mesmo tempo querem dar à polícia e à justiça o direito de decidir sobre a vida de seres humanos formados.
Aquele feto cuja mãe foi obrigada a gestar, mas sem a menor condição de se desenvolver humanamente, sem cuidados, sem afeto, sem moradia, sem acesso à saúde, educação, lazer, etc., submetido a maus tratos constantes da sociedade, privação, brutalidade, etc., se transforma no “bandido”, como se fosse uma raça à parte, não mais humano, que pode ser odiado e morto (isso sem falar no aspecto de que nenhuma autoridade policial e judicial pode ser investida do poder de decidir sobre a morte das pessoas, ainda mais notoriamente corruptas como no Brasil). Um mundo de irracionalidade, sofrimento e violência se reproduz cada vez mais bárbaro, entre outras coisas, além das razões estruturais da miséria, simplesmente porque não se permite que as mulheres decidam sobre a sua condição de gestar ou não os filhos.

4. Defender a descriminalização do aborto não significa fazer apologia do aborto, são coisas completamente diferentes. O aborto é a última medida de proteção para a mulher que engravida de forma não planejada, e que não quer ou não pode dar continuidade à gestação. Ninguém pratica aborto por esporte ou somente porque é permitido. Aliás, depois que é legalizado, o número de abortos diminui nos países que adotam essa medida, porque as mulheres têm acesso a acompanhamento médico adequado (ver por exemplo o caso do Uruguai, conforme https://noticias.terra.com.br/mundo/america-latina/uruguai-apos-legalizacao-desistencia-de-abortos-sobe-30,2e4163764976c410VgnCLD200000b1bf46d0RCRD.html ).
Somente os críticos do aborto o confundem propositalmente com método contraceptivo, com a suposição de que as mulheres passarão a engravidar em maior número simplesmente porque o aborto passaria a ser permitido. Essa suposição é inteiramente falsa, não condiz com a realidade de países onde a prática é legalizada. O aborto é sempre a última medida, antes disso é necessário educação sexual para prevenir e contraceptivos para não engravidar. Mas em caso de gravidez não planejada, é preciso que haja aborto seguro para proteger a vida e a saúde da mulher.
O receio de que o número de gestações e abortos aumente em função da descriminalização esconde em muitos casos uma concepção reacionária sobre a sexualidade da mulher. Muitos dos que querem proibir o aborto o fazem porque encaram a gravidez como castigo e querem punir mulheres que ousaram ter uma vida sexual ativa, como se tivessem que ser castigadas por fazer aquilo que todos os homens fazem. Trata-se de mais uma forma de hipocrisia e de controle patriarcais sobre a vida das mulheres, disfarçado de preocupação moral com a vida dos fetos.

5. O Estado é laico e não pode ter o direito de interferir na vida dos cidadãos com base nas crenças religiosas de uma parte da população, por mais disseminadas que estejam. Mesmo que 99% da população resolva acreditar em duendes, ou no Sr. Spock, ou em Gandalf, o Cinzento, ou em alguém que nasceu de uma mulher virgem, isso não lhes dá o direito de obrigar o restante 1% a viver de acordo com essa crença. Não é porque essa parte da população acredita que o feto já possui alma que a população inteira precisa se submeter a essa crença e proteger a vida dos fetos a qualquer custo, obrigando as mulheres a concluir a gestação de filhos que não poderão criar. Não é porque essa maioria acredita que o dever da mulher é ser mãe que toda mulher está obrigada a ser mãe. Quem achar que é errado abortar, porque ofende a sua religião, que não aborte, mas não obrigue as demais a seguir as regras da sua religião.
Cada um deve ter o direito de viver de acordo com as suas crenças, mas sem obrigar os demais a seguí-las. Quem quer divulgar as regras da sua religião, que o faça a quem está disposto a ouvir e seja capaz de convencer por métodos de persuasão racionais, não pela força. Aliás, quem realmente acredita na própria religião não precisa perder tempo tentando convencer os outros daquilo que considera verdade, precisa acreditar que essa verdade vai se impor e se provar verdadeira, pois do contrário não seria verdade. E antes de qualquer outra coisa, o convencimento verdadeiro só acontece por meio do exemplo e não por pregação. Então, quem realmente acredita numa religião deve viver de acordo com ela e se tornar exemplo para os demais, e assim fazer com que o sigam, não tentar impor regras aos outros. Nem muito menos usar a autoridade do Estado para impor essas regras.

6. O Estado não pode ter esse grau de interferência na vida privada dos cidadãos, de fiscalizar o útero das mulheres e obrigar que, uma vez engravidando, mesmo que de maneira não planejada, se tornem mães. O Estado não pode ter o poder decidir o que o indivíduo faz com seu próprio corpo, desde que não prejudique a vida de outros. Desde usar drogas (que é diferente de abusar de drogas e cometer crimes por conta do uso de drogas) a abortar um feto, nada disso interfere na vida de outro ser humano, e portanto não poderia ser criminalizado.
Por outro lado, se adotarmos o princípio de que a sociedade não pode interferir no comportamento de ninguém, desde que esse comportamento não prejudique a outrem, consequentemente torna-se preciso decidir em que momento um feto se torna “alguém” cuja vida passaria a ser de interesse da sociedade proteger. Mas ressaltamos que só consideramos esse princípio válido para uma sociedade que tenha condições de realmente proteger a vida dos seus integrantes. Portanto, essa consideração somente seria válida para uma sociedade que no mínimo tenha passado pelas reformas que mencionamos no ponto 3, não para a sociedade atual, que não respeita a vida de ninguém.
Nessa sociedade hipotética, que tivesse condições de proporcionar uma vida minimamente humana para todos, seria preciso, sim, estabelecer um critério para definir a partir de que momento um feto passa a ser considerado humano, já que nesse momento a defesa da sua vida passa a ser de interesse da sociedade. Um feto na véspera do parto não é um simples feto, não é a mesma coisa que um feto no 3º mês de gestação, já é um bebê humano viável e semiconsciente. A questão a ser respondida então é: a partir de que momento um feto deixa de ser um simples feto? Conforme as pesquisas científicas, os primeiros indícios de atividade cerebral consistente com aquilo que consideramos pensamento ou consciência não acontecem antes do 6º mês de gravidez (ver por exemplo o artigo de Carl Sagan e Ann Druyan, disponível em https://espacosevolutivo.wordpress.com/2013/07/17/aborto/, o qual apresenta uma série de outros elementos relevantes para esse debate).

Mas para não ficarmos num terreno puramente hipotético, discutindo sobre o que deveria fazer uma sociedade que tivesse condições de proporcionar uma vida decente para seus integrantes, e lidando com a sociedade que temos em mãos, o princípio a ser reafirmado é de que o Estado não pode ter o direito de interferir na decisão das mulheres sobre seu próprio corpo. Ainda assim, a presente decisão do STF que estamos discutindo abrange apenas abortos realizados antes do 3º mês, o que dá uma margem bastante segura para que se possa considerar que não há nada além de um punhado de células nos fetos abortados, muito distante de um ser com consciência e portanto com direitos. Dessa forma, o direito que deve ser protegido aqui é o das mulheres de decidir sobre seu próprio corpo.

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