27.2.17

O "Escola Sem Partido", o liberalismo e a falácia da neutralidade



Um dos componentes da ofensiva conservadora em andamento no país, o projeto “Escola Sem Partido” (ESP, daqui por diante) quer proibir que os professores discutam questões sociais e políticas em sala de aula, sob o pretexto de “proteger” os estudantes da “doutrinação ideológica”. Já vimos (em texto anterior: http://politicapqp.blogspot.com.br/2016/07/escola-sem-partido-na-verdade-e-com.html) que os verdadeiros problemas da educação não têm nada a ver com essa suposta “doutrinação”, e que os professores têm que lidar com uma série de problemas (a começar pelos salários de fome, falta de estrutura nas escolas, superlotação das salas, sobrecarga de trabalhos burocráticos, etc.), antes de sequer poder pensar no conteúdo a ser lecionado. O qual, por sua vez, não é uma “doutrina”, mas o resultado do acúmulo dos debates nas ciências naturais e sociais.
Na verdade, sob o pretexto de impedir que os professores tomem partido (o que na verdade nem acontece, pois a esmagadora maioria da categoria docente está esmagada pelos problemas acima), o ESP já está ele próprio sendo partidário e assumindo uma determinada visão de mundo. Ao tentar negar que os professores discutam questões sociais e políticas com os alunos, o ESP defende uma posição, o liberalismo. Como corrente de pensamento, projeto de sociedade e prática política, o liberalismo já está estruturado e atuando há séculos (já tendo inclusive adquirido a roupagem de neoliberalismo), e o ESP não traz nenhuma novidade ao tentar reforçá-lo.
A essência do liberalismo é a negação da história como um processo de auto construção humana e a defesa de uma concepção abstrata e imutável de humanidade. Segundo o liberalismo, o homem é e sempre foi egoísta, individualista, competitivo e calculista “por natureza”. A sociedade não passa de um ajuntamento de indivíduos competitivos, cada um procurando maximizar o seu lucro. O papel do Estado não é senão garantir, por meio da força policial e da ordem jurídica, a defesa da propriedade que os indivíduos adquirem por meio do “seu trabalho” e das trocas realizadas no mercado.
Essa concepção de humanidade começou a ser formulada na Inglaterra, nos séculos XVII e XVIII, quando os pensadores da burguesia inglesa apresentaram as ideias e práticas da sua classe social como se fossem o modelo “normal” e “natural” de toda a humanidade. Na época, a burguesia (a inglesa principalmente, e a de outros países ainda em menor grau) praticava a exploração do trabalho escravo em suas colônias, o tráfico de escravos, a pirataria, o comércio internacional, a expropriação das terras dos camponeses, a exploração dos artesãos em manufaturas, acumulando por esses meios o capital necessário para o lançamento da Revolução Industrial (fim do século XVIII). Para disfarçar essas atividades com o véu da “natureza humana”, os pensadores burgueses elaboraram a ideia de que a busca de cada um pelo seu enriquecimento pessoal (cada um oferece mercadorias e serviços aos outros, em troca do dinheiro que precisa para adquirir as mercadorias e serviços que os outros fornecem) resulta automaticamente no bem estar coletivo, por obra de uma “mão invisível” do mercado.
Essa ideia do indivíduo egoísta e da mão invisível continua sendo a base da concepção liberal da economia, política e sociedade até hoje (por mais que se tenha depois reconhecido a possibilidade de algumas “falhas de mercado”, desequilíbrios, etc., que seriam supostamente solucionáveis por uma “gestão” adequada). Acontece que todos os pressupostos dessa concepção foram negados pelo desenvolvimento das ciências sociais a partir do século XIX. A começar pela constatação de que não existe uma “natureza humana” imutável. O homem não é individualista “por natureza”, porque não é coisa nenhuma por natureza. A humanidade não possui uma “essência” natural e imutável. Ao contrário, o homem faz a si mesmo por meio de escolhas, que estão delimitadas pelos resultados das escolhas de gerações anteriores. A humanidade constrói a si mesma, mas não de acordo com puras vontades e ideias, e sim confrontando-se com as condições materiais herdadas de gerações anteriores.
A história é exatamente esse processo de auto construção da humanidade, que convergiu para uma história universal por meio das contribuições de inúmeros povos e civilizações. Durante milênios esses diversos povos desenvolveram modos de vida que não tiveram nada a ver com o “modelo” do individualismo egoísta dos liberais (comunidades naturais, aldeias, vilas, feudos, tribos, etc., prevaleceram na maior parte da história). Isso não significa que tais modos de vida fossem perfeitos ou harmônicos (o homem também não é “coletivista por natureza”, porque não é coisa nenhuma “por natureza”, sempre é o que é, o que quer que seja, como produto da história), mas com certeza a existência de formas de sociabilidade muito mais coletivas invalida categoricamente o mito liberal do individualismo.
Outro mito é o de que a “mão invisível” do mercado proporciona “automaticamente” o bem estar de todos por meio do empenho de cada um em perseguir seu interesse pessoal. Essa harmonização das necessidades sociais pelo funcionamento automático do mercado nunca passou de uma suposição, que nunca se confirmou na história. Ao contrário, o mercado proporcionou um extraordinário enriquecimento para alguns e uma amarga miséria para a grande maioria (vide “O Capital no século XXI”, de Thomas Piketty, um defensor do capitalismo que teve a honestidade de coletar dados comprovando o aprofundamento da desigualdade social ao longo dos séculos). Isso porque o mercado não é um espaço de compra e venda de “produtos e serviços” entre iguais para satisfazer as recíprocas necessidades. No mercado capitalista os produtos não se trocam em função do seu valor de uso (capacidade concreta de atender a uma necessidade humana determinada), mas para realizar o seu valor de troca, a medida abstrata do trabalho social médio neles contido. Essa medida abstrata, o dinheiro, busca ampliar a si mesmo: dinheiro transformando-se em mais dinheiro por meio da produção de mercadorias, essa é a verdadeira essência do mercado.
O mercado é também o lugar em que se encobre a desigualdade entre as classes, já que o trabalho social não é uma atividade praticada por indivíduos avulsos, mas por classes sociais. As classes sociais fundamentais são os capitalistas (proprietários de meios de produção) e trabalhadores (vendedores de força de trabalho). O trabalhador vende a mercadoria força de trabalho por um valor (o salário) que é sempre menor do que o valor que o seu trabalho gera para o capitalista. Durante uma parte da jornada o trabalhador gera em produtos o valor equivalente ao que recebe como salário. Mas a jornada de trabalho não se encerra nesse ponto, e o trabalhador continua produzindo, gerando um valor a mais, que é apropriado pelo capitalista, dono dos meios de produção. Esse valor a mais (chamado de mais valia) corresponde a trabalho consumido na produção de uma quantidade adicional de mercadorias, cujo valor excede o dos salários, e que não é pago ao trabalhador, mas apropriado gratuitamente. Essa é a fonte do lucro dos capitalistas, que se realiza quando efetivam a venda dos produtos no mercado.
Então, no capitalismo, ninguém enriquece com o “seu trabalho”, conforme o mito liberal, mas com a exploração do trabalho alheio não pago. A concepção liberal de uma sociedade composta de indivíduos “iguais” existe para ocultar a realidade da divisão da sociedade em classes. Por isso, é fundamental para o liberais combater a organização dos trabalhadores quando se reúnem para lutar por seus interesses imediatos (melhores salários e condições de vida) e históricos (fim do trabalho assalariado, produção voltada para as necessidades humanas e gerida socialmente). Para combater a organização dos trabalhadores, o liberalismo adota várias estratégias, e uma delas é justamente exigir a “neutralidade” nas ciências sociais e na educação. Ao exigir neutralidade, o liberalismo quer impedir que cientistas sociais e educadores tomem partido em favor dos trabalhadores (o que na verdade é muito raro de acontecer, ao contrário do que diz o mito da “doutrinação”). E ao mesmo tempo, o objetivo é esconder que a classe capitalista já está organizada e goza de grandes vantagens contra os trabalhadores.
O Estado, a religião, a imprensa, são instituições que estão em ação permamentemente em favor da classe capitalista. Diariamente essas instituições praticam ações e produzem ideias que forçam os trabalhadores a aceitar o “seu papel” na sociedade. O pensamento liberal não reconhece esse fato (porque não pode reconhecer a existência de classes), e ao mesmo tempo exige que o outro lado, os trabalhadores (que ele também não reconhece como classe), não possa se organizar. Sindicatos, partidos, movimentos sociais, não podem ter um projeto vinculado aos interesses da classe trabalhadora. As únicas instituições e partidos aceitáveis são aquelas que aceitam os pressupostos do modo de produção capitalista, da extração de trabalho não pago (mais valia), da produção voltada para o lucro e não para as necessidades humanas, da apropriação privada do lucro, etc. Tudo o que se contrapõe a isso é tratado como terrorismo, subversão, vandalismo, radicalismo, utopia, etc.
Além de negar a essência do processo histórico, a auto construção da humanidade, o liberalismo precisa também negar a história concreta. É preciso ocultar a história real de como o capitalismo se construiu como um sistema de hierarquia, conflito e dominação. É preciso negar que os países ricos, e dentro deles, as camadas sociais superiores, enriqueceram por meio do saque da riqueza dos países pobres e da exploração dos seus trabalhadores. É preciso negar que existiu um processo de genocídio, saque e pilhagem no continente americano, negar que existiu o sequestro, escravização e discriminação dos negros, negar que existe a tentativa de impor a submissão das mulheres por meio das infinitas armadilhas do patriarcado, é preciso negar que há violências contra LGBTs, etc. É preciso negar que tudo isso existiu, para seguir reproduzindo o mito de que os problemas sociais (miséria, violência, opressão, discriminação, ignorância, etc.) são na verdade problemas individuais. Se os problemas são individuais, as soluções tem que ser também individuais. Quem quer “chegar lá” tem que se esforçar, e portanto, quem já chegou lá supostamente tem o mérito de ter se esforçado.
O que todos esses mitos liberais que estão por trás do ESP “esquecem” de dizer é que não há mais vagas para ficar rico. A crise do sistema capitalista se agrava cada vez mais. Ela não pode ser solucionada e se torna cada vez mais difícil de ser administrada, por mais que se alimentem os mitos sobre as virtudes da “gestão”. Desemprego, miséria, violência, devastação ambiental, tudo isso não para de se multipicar. Esses sintomas da crise não podem ser enfrentados sem o enfrentamento das suas causas profundas, que estão na própria lógica do sistema capitalista. Para evitar que o sistema seja questionado, os seus defensores querem banir qualquer possibilidade de crítica e reflexão. Por isso, desenvolvem iniciativas como o ESP. Querem evitar que as novas gerações tenham acesso ao conhecimento histórico e ao pensamento crítico. Querem impedir a elaboração de saídas coletivas para a humanidade, mesmo que isso signifique uma queda sem fim no abismo da ignorância, miséria, ódio e violência.
O ESP não defende portanto a “neutralidade”, já que tal coisa é impossível numa sociedade dividida em classes. O ESP tem um partido muito bem definido, mas quer ocultá-lo, uma vez que o que ele defende é a perpetuação da barbárie capitalista. A ideia de se dizer “sem partido” tem o objetivo de negar que a sociedade está dividida em partidos, que são a representação das classes sociais. Esse projeto precisa negar que os partidos defendem classes sociais determinadas (porque precisa negar que existem classes, como dissemos). Os únicos partidos aceitáveis são os que defendem a continuidade do capitalismo.
Um partido como o PT, por mais que tenha “trabalhadores” no nome, só pode chegar ao governo quando se compromete a garantir os interesses de banqueiros, latifundiários, industriais, empreiteiras, etc., com um marketing demagógico de favorecer os pobres. Quando esse partido não consegue mais cumprir essa função, acaba sendo descartado com requintes de cinismo: em nome da corrupção, que todos os partidos patronais sempre praticaram. E de brinde, os adversários do PT ainda levam a chance de desmoralizar todas as organizações de trabalhadores. Sindicatos, movimentos sociais, associações, coletivos, movimentos feministas, ati-racistas, LGBTs, etc., todos são tratados como sócios da corrupção do PT. Todos são apresentados como co-participantes de uma operação demagógica de aliciamento dos trabalhadores, dos negros, mulheres, juventude, índios, LGBTs, etc., por meio do discurso de “vitimismo”. Todas as lutas sociais são tratadas pelo ESP como farsas a serviço do PT.
Desmoralizar as lutas sociais foi o maior crime do PT, muito pior do que a corrupção. Para combater o ESP e a ofensiva coservadora em geral, é preciso operar uma ruptura radical com o PT, fazer uma crítica profunda do seu legado e projeto, e construir uma nova pauta e referências para os movimentos sociais. Na luta de classes não existe “neutralidade” possível. É preciso tomar partido da construção de uma nova sociedade e uma nova humanidade, pois do lado de lá os defensores do ESP já estão defendendo ferozmente o partido da exploração e da opressão.




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