Um dos
componentes da ofensiva conservadora em andamento no país, o
projeto “Escola Sem Partido” (ESP, daqui por diante) quer proibir
que os professores discutam questões sociais e políticas
em sala de aula, sob o pretexto de “proteger” os estudantes da
“doutrinação ideológica”. Já vimos
(em texto anterior:
http://politicapqp.blogspot.com.br/2016/07/escola-sem-partido-na-verdade-e-com.html)
que os verdadeiros problemas da educação não têm
nada a ver com essa suposta “doutrinação”, e que os
professores têm que lidar com uma série de problemas (a
começar pelos salários de fome, falta de estrutura nas
escolas, superlotação das salas, sobrecarga de
trabalhos burocráticos, etc.), antes de sequer poder pensar no
conteúdo a ser lecionado. O qual, por sua vez, não é
uma “doutrina”, mas o resultado do acúmulo dos debates nas
ciências naturais e sociais.
Na
verdade, sob o pretexto de impedir que os professores tomem partido
(o que na verdade nem acontece, pois a esmagadora maioria da
categoria docente está esmagada pelos problemas acima), o ESP
já está ele próprio sendo partidário e
assumindo uma determinada visão de mundo. Ao tentar negar que
os professores discutam questões sociais e políticas
com os alunos, o ESP defende uma posição, o
liberalismo. Como corrente de pensamento, projeto de sociedade e
prática política, o liberalismo já está
estruturado e atuando há séculos (já tendo
inclusive adquirido a roupagem de neoliberalismo), e o ESP não
traz nenhuma novidade ao tentar reforçá-lo.
A
essência do liberalismo é a negação da
história como um processo de auto construção
humana e a defesa de uma concepção abstrata e imutável
de humanidade. Segundo o liberalismo, o homem é e sempre foi
egoísta, individualista, competitivo e calculista “por
natureza”. A sociedade não passa de um ajuntamento de
indivíduos competitivos, cada um procurando maximizar o seu
lucro. O papel do Estado não é senão garantir,
por meio da força policial e da ordem jurídica, a
defesa da propriedade que os indivíduos adquirem por meio do
“seu trabalho” e das trocas realizadas no mercado.
Essa
concepção de humanidade começou a ser formulada
na Inglaterra, nos séculos XVII e XVIII, quando os pensadores
da burguesia inglesa apresentaram as ideias e práticas da sua
classe social como se fossem o modelo “normal” e “natural” de
toda a humanidade. Na época, a burguesia (a inglesa
principalmente, e a de outros países ainda em menor grau)
praticava a exploração do trabalho escravo em suas
colônias, o tráfico de escravos, a pirataria, o comércio
internacional, a expropriação das terras dos
camponeses, a exploração dos artesãos em
manufaturas, acumulando por esses meios o capital necessário
para o lançamento da Revolução Industrial (fim
do século XVIII). Para disfarçar essas atividades com o
véu da “natureza humana”, os pensadores burgueses
elaboraram a ideia de que a busca de cada um pelo seu enriquecimento
pessoal (cada um oferece mercadorias e serviços aos outros, em
troca do dinheiro que precisa para adquirir as mercadorias e serviços
que os outros fornecem) resulta automaticamente no bem estar
coletivo, por obra de uma “mão invisível” do
mercado.
Essa
ideia do indivíduo egoísta e da mão invisível
continua sendo a base da concepção liberal da economia,
política e sociedade até hoje (por mais que se tenha
depois reconhecido a possibilidade de algumas “falhas de mercado”,
desequilíbrios, etc., que seriam supostamente solucionáveis
por uma “gestão” adequada). Acontece que todos os
pressupostos dessa concepção foram negados pelo
desenvolvimento das ciências sociais a partir do século
XIX. A começar pela constatação de que não
existe uma “natureza humana” imutável. O homem não
é individualista “por natureza”, porque não é
coisa nenhuma por natureza. A humanidade não possui uma
“essência” natural e imutável. Ao contrário,
o homem faz a si mesmo por meio de escolhas, que estão
delimitadas pelos resultados das escolhas de gerações
anteriores. A humanidade constrói a si mesma, mas não
de acordo com puras vontades e ideias, e sim confrontando-se com as
condições materiais herdadas de gerações
anteriores.
A
história é exatamente esse processo de auto construção
da humanidade, que convergiu para uma história universal por
meio das contribuições de inúmeros povos e
civilizações. Durante milênios esses diversos
povos desenvolveram modos de vida que não tiveram nada a ver
com o “modelo” do individualismo egoísta dos liberais
(comunidades naturais, aldeias, vilas, feudos, tribos, etc.,
prevaleceram na maior parte da história). Isso não
significa que tais modos de vida fossem perfeitos ou harmônicos
(o homem também não é “coletivista por
natureza”, porque não é coisa nenhuma “por
natureza”, sempre é o que é, o que quer que seja,
como produto da história), mas com certeza a existência
de formas de sociabilidade muito mais coletivas invalida
categoricamente o mito liberal do individualismo.
Outro
mito é o de que a “mão invisível” do mercado
proporciona “automaticamente” o bem estar de todos por meio do
empenho de cada um em perseguir seu interesse pessoal. Essa
harmonização das necessidades sociais pelo
funcionamento automático do mercado nunca passou de uma
suposição, que nunca se confirmou na história.
Ao contrário, o mercado proporcionou um extraordinário
enriquecimento para alguns e uma amarga miséria para a grande
maioria (vide “O Capital no século XXI”, de Thomas
Piketty, um defensor do capitalismo que teve a honestidade de coletar
dados comprovando o aprofundamento da desigualdade social ao longo
dos séculos). Isso porque o mercado não é um
espaço de compra e venda de “produtos e serviços”
entre iguais para satisfazer as recíprocas necessidades. No
mercado capitalista os produtos não se trocam em função
do seu valor de uso (capacidade concreta de atender a uma necessidade
humana determinada), mas para realizar o seu valor de troca, a medida
abstrata do trabalho social médio neles contido. Essa medida
abstrata, o dinheiro, busca ampliar a si mesmo: dinheiro
transformando-se em mais dinheiro por meio da produção
de mercadorias, essa é a verdadeira essência do mercado.
O
mercado é também o lugar em que se encobre a
desigualdade entre as classes, já que o trabalho social não
é uma atividade praticada por indivíduos avulsos, mas
por classes sociais. As classes sociais fundamentais são os
capitalistas (proprietários de meios de produção)
e trabalhadores (vendedores de força de trabalho). O
trabalhador vende a mercadoria força de trabalho por um valor
(o salário) que é sempre menor do que o valor que o seu
trabalho gera para o capitalista. Durante uma parte da jornada o
trabalhador gera em produtos o valor equivalente ao que recebe como
salário. Mas a jornada de trabalho não se encerra nesse
ponto, e o trabalhador continua produzindo, gerando um valor a mais,
que é apropriado pelo capitalista, dono dos meios de produção.
Esse valor a mais (chamado de mais valia) corresponde a trabalho
consumido na produção de uma quantidade adicional de
mercadorias, cujo valor excede o dos salários, e que não
é pago ao trabalhador, mas apropriado gratuitamente. Essa é
a fonte do lucro dos capitalistas, que se realiza quando efetivam a
venda dos produtos no mercado.
Então,
no capitalismo, ninguém enriquece com o “seu trabalho”,
conforme o mito liberal, mas com a exploração do
trabalho alheio não pago. A concepção liberal de
uma sociedade composta de indivíduos “iguais” existe para
ocultar a realidade da divisão da sociedade em classes. Por
isso, é fundamental para o liberais combater a organização
dos trabalhadores quando se reúnem para lutar por seus
interesses imediatos (melhores salários e condições
de vida) e históricos (fim do trabalho assalariado, produção
voltada para as necessidades humanas e gerida socialmente). Para
combater a organização dos trabalhadores, o liberalismo
adota várias estratégias, e uma delas é
justamente exigir a “neutralidade” nas ciências sociais e
na educação. Ao exigir neutralidade, o liberalismo quer
impedir que cientistas sociais e educadores tomem partido em favor
dos trabalhadores (o que na verdade é muito raro de acontecer,
ao contrário do que diz o mito da “doutrinação”).
E ao mesmo tempo, o objetivo é esconder que a classe
capitalista já está organizada e goza de grandes
vantagens contra os trabalhadores.
O
Estado, a religião, a imprensa, são instituições
que estão em ação permamentemente em favor da
classe capitalista. Diariamente essas instituições
praticam ações e produzem ideias que forçam os
trabalhadores a aceitar o “seu papel” na sociedade. O pensamento
liberal não reconhece esse fato (porque não pode
reconhecer a existência de classes), e ao mesmo tempo exige que
o outro lado, os trabalhadores (que ele também não
reconhece como classe), não possa se organizar. Sindicatos,
partidos, movimentos sociais, não podem ter um projeto
vinculado aos interesses da classe trabalhadora. As únicas
instituições e partidos aceitáveis são
aquelas que aceitam os pressupostos do modo de produção
capitalista, da extração de trabalho não pago
(mais valia), da produção voltada para o lucro e não
para as necessidades humanas, da apropriação privada do
lucro, etc. Tudo o que se contrapõe a isso é tratado
como terrorismo, subversão, vandalismo, radicalismo, utopia,
etc.
Além
de negar a essência do processo histórico, a auto
construção da humanidade, o liberalismo precisa também
negar a história concreta. É preciso ocultar a história
real de como o capitalismo se construiu como um sistema de
hierarquia, conflito e dominação. É preciso
negar que os países ricos, e dentro deles, as camadas sociais
superiores, enriqueceram por meio do saque da riqueza dos países
pobres e da exploração dos seus trabalhadores. É
preciso negar que existiu um processo de genocídio, saque e
pilhagem no continente americano, negar que existiu o sequestro,
escravização e discriminação dos negros,
negar que existe a tentativa de impor a submissão das mulheres
por meio das infinitas armadilhas do patriarcado, é preciso
negar que há violências contra LGBTs, etc. É
preciso negar que tudo isso existiu, para seguir reproduzindo o mito
de que os problemas sociais (miséria, violência,
opressão, discriminação, ignorância, etc.)
são na verdade problemas individuais. Se os problemas são
individuais, as soluções tem que ser também
individuais. Quem quer “chegar lá” tem que se esforçar,
e portanto, quem já chegou lá supostamente tem o mérito
de ter se esforçado.
O que
todos esses mitos liberais que estão por trás do ESP
“esquecem” de dizer é que não há mais vagas
para ficar rico. A crise do sistema capitalista se agrava cada vez mais.
Ela não pode ser solucionada e se torna cada vez mais difícil
de ser administrada, por mais que se alimentem os mitos sobre as
virtudes da “gestão”. Desemprego, miséria,
violência, devastação ambiental, tudo isso não
para de se multipicar. Esses sintomas da crise não podem ser
enfrentados sem o enfrentamento das suas causas profundas, que estão
na própria lógica do sistema capitalista. Para evitar
que o sistema seja questionado, os seus defensores querem banir
qualquer possibilidade de crítica e reflexão. Por isso,
desenvolvem iniciativas como o ESP. Querem evitar que as novas
gerações tenham acesso ao conhecimento histórico
e ao pensamento crítico. Querem impedir a elaboração
de saídas coletivas para a humanidade, mesmo que isso
signifique uma queda sem fim no abismo da ignorância, miséria,
ódio e violência.
O ESP
não defende portanto a “neutralidade”, já que tal
coisa é impossível numa sociedade dividida em classes.
O ESP tem um partido muito bem definido, mas quer ocultá-lo,
uma vez que o que ele defende é a perpetuação da
barbárie capitalista. A ideia de se dizer “sem partido”
tem o objetivo de negar que a sociedade está dividida em
partidos, que são a representação das classes
sociais. Esse projeto precisa negar que os partidos defendem classes
sociais determinadas (porque precisa negar que existem classes, como
dissemos). Os únicos partidos aceitáveis são os
que defendem a continuidade do capitalismo.
Um
partido como o PT, por mais que tenha “trabalhadores” no nome, só
pode chegar ao governo quando se compromete a garantir os interesses
de banqueiros, latifundiários, industriais, empreiteiras,
etc., com um marketing demagógico de favorecer os pobres.
Quando esse partido não consegue mais cumprir essa função,
acaba sendo descartado com requintes de cinismo: em nome da
corrupção, que todos os partidos patronais sempre
praticaram. E de brinde, os adversários do PT ainda levam a
chance de desmoralizar todas as organizações de
trabalhadores. Sindicatos, movimentos sociais, associações,
coletivos, movimentos feministas, ati-racistas, LGBTs, etc., todos
são tratados como sócios da corrupção do
PT. Todos são apresentados como co-participantes de uma
operação demagógica de aliciamento dos
trabalhadores, dos negros, mulheres, juventude, índios, LGBTs,
etc., por meio do discurso de “vitimismo”. Todas as lutas sociais
são tratadas pelo ESP como farsas a serviço do PT.
Desmoralizar
as lutas sociais foi o maior crime do PT, muito pior do que a
corrupção. Para combater o ESP e a ofensiva coservadora
em geral, é preciso operar uma ruptura radical com o PT, fazer
uma crítica profunda do seu legado e projeto, e construir uma
nova pauta e referências para os movimentos sociais. Na luta de
classes não existe “neutralidade” possível. É
preciso tomar partido da construção de uma nova
sociedade e uma nova humanidade, pois do lado de lá os
defensores do ESP já estão defendendo ferozmente o
partido da exploração e da opressão.
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